O Kinect à venda nos Estados Unidos: o sensor da Microsoft é a base de muitos projetos de engenharia (Bryan Bedder/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 16 de maio de 2011 às 17h38.
São Paulo — O Google anunciou, na manhã de 1º de abril, uma espantosa ferramenta de e-mail que permite gerenciar o correio eletrônico com simples movimentos do corpo capturados por uma câmera. Piada, certo? Piada. Só que, na tarde do mesmo dia, entusiastas do Kinect demonstravam que o sensor de movimentos da Microsoft pode ser ajustado para interpretar com precisão até os gestos mais estapafúrdios que aparecem na fantasia do Google, como passar um selo imaginário na língua e colá-lo na coxa para instruir o computador a enviar um e-mail.
A pronta resposta à pegadinha de 1º de abril ilustra a avidez com que programadores e engenheiros estão subvertendo a engenhoca da Microsoft e criando uma série de inovações para além do mundo dos games. O que explica o deslumbre com a ferramenta lançada há apenas quatro meses é o fato de tornar trivial uma das funções mais desafiadoras para as máquinas: enxergar o mundo, em três dimensões, em tempo real.
O Microsoft lançou o Kinect para turbinar seu Xbox. Plugado ao console, o sensor de movimentos dispensa joysticks e faz o jogador usar o próprio corpo como controle. Para tanto, o Kinect combina funções de uma câmera digital às de um sensor infravermelho. Enquanto as lentes captam a luz visível, para a geração de imagens coloridas, o sensor emite feixes de radiação infravermelha e mede o tempo de resposta. É um processo análogo ao dos sonares: quanto mais tempo a onda leva para ser percebida pelo sensor, mais longe está o objeto que a refletiu. O cruzamento das informações de cor e profundidade permite a leitura em três dimensões do ambiente.
Barato e genial
Enxergar um mundo em 3D já era possível antes do Kinect. A diferença é o preço. “Por 150 dólares (244 reais, o preço do Kinect nos Estados Unidos), você pode adquirir um aparelho que resolve os maiores problemas da visão de computadores”, diz o designer e programador Joshua Blake, lembrando que antes era necessário pagar no mínimo dez vezes mais por um aparelho com menor capacidade.
Blake é o fundador do OpenKinect, site colaborativo que cataloga programas e instruções para facilitar o uso do dispositivo fora do ambiente do videogame – hacks, no jargão da internet. O site conta com 2.000 desenvolvedores que usam o seu tempo livre para escrever programas e disponibilizá-los gratuitamente para qualquer interessado. Resultado: pululam na internet os mais diversos projetos e demonstrações. São robôs voadores, simulação de instrumentos musicais, contribuições para cirurgias a distância, recursos para o desenho a mão livre (literalmente), guia de orientação para cegos etc.
Questão de tempo
Philipp Robbel, do laboratório de robótica do Massachusetts Institute of Technology (MIT), é um dos entusiastas do Kinect. Robbel desenvolve robôs autônomos e seu foco atual é o resgate de vítimas de desabamentos. Duas semanas após o lançamento do Kinect nos Estados Unidos, ele postou no YouTube o vídeo de um protótipo que consegue mapear em 3D o ambiente, movimentar-se, desviar de objetos e reconhecer gestos de humanos. "Temos outra câmera no laboratório do MIT que fornece uma leitura parecida", compara. "Mas custou aproximadamente 5.000 euros (7.168 dólares, ou 47 vezes o preço do Kinect)"
Usando o código do OpenKinect, os alunos de doutorado do professor Howard Chizeck, da Universidade de Washington, em Seattle, criaram um hack para aprimorar a performance dos médicos em cirurgias a distância. O objetivo de Fredrik Rydén e Howkeye King é transmitir informações táteis aos médicos durante procedimentos remotos, técnica conhecida como haptics, do grego haptikós, ou próprio para tocar.
A estratégia vem sendo estudada há anos, mas a equipe de Seattle acredita que uma versão do sensor da Microsoft poderia torná-la eficiente e barata. "Os médicos que controlam o robô cirúrgico apenas enxergam o que estão fazendo, mas não conseguem sentir a pressão do braço robótico sobre o paciente", explica Chizeck.
Por enquanto, os alunos de Chizeck puderam unicamente demonstrar que o sensor se presta à transmissão de dados táteis. Na experiência exibida no YouTube, uma pessoa pode sentir a superfície de uma mesa localizada em outra sala e, como se ela estivesse materializada à sua frente, passar a mão sobre o tampo - mas não consegue atravessá-lo. Conceito provado, o passo seguinte é tornar o sensor uma miniatura que possa ser introduzida no organismo do paciente. "Daqui para frente, é uma questão de tempo e trabalho, não de obstáculos", diz Chizeck.
Seis dias
Por tradição corporativa, a primeira reação da Microsoft aos hackers foi negativa. Quando o Kinect foi lançado nos Estados Unidos, instituições focadas em projetos eletrônicos e da área de robótica ofereceram uma recompensa no valor de 2.000 dólares para o primeiro programador que encontrasse uma maneira de usar o sensor plugado a um computador – e disponibilizasse na web o código.
Em resposta, a empresa informou que não aprovava a modificação de seus produtos, que havia tomado diversas providências para "dificultar e evitar" os hacks e ameaçou "recorrer às autoridades legais para manter o Kinect inviolável." Seis dias depois, o código foi quebrado. Duas semanas e muitos hacks depois, a empresa mudou sua postura e anunciou que estava animada com o envolvimento da comunidade de desenvolvedores em torno de seu produto.
Como uma forma de reconhecimento, a Microsoft anunciou em fevereiro que pretende lançar, nos próximos meses, um kit para desenvolvedores com as principais informações para operar o Kinect e criar aplicações próprias. "As possibilidades são infinitas. Tecnologia como a do Kinect pode ser mais do que uma ótima plataforma de jogos", reconhece o texto publicado no blog oficial da Microsoft. Evidente, ao contrário do OpenKinect, o kit que a Microsoft anunciou será só para o seu sistema Windows e apenas para uso não comercial.
Da robótica à medicina
De acordo com o professor Marcelo Knörich Zuffo, do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), o Kinect pode ter serventia para todas as aplicações em que o computador precisa ver. A robótica, a segurança e a medicina estão entre os campos que podem tirar proveito disso. Ele lembra que pesquisas nessa área já são feitas há mais de 25 anos. Mas foi o Kinect que fez com que esses estudos despertassem a atenção fora do ambiente de pesquisa.
Segundo o pesquisador, as inovações eletrônicas estão levando cada vez menos tempo para chegar até a população. Diversos produtos, como as TVs 3D, o bluetooth e o mouse sem fio fizeram esse mesmo percurso, do acesso restrito em laboratórios à comercialização. "A distância entre o que temos ensinado em sala de aula e a massificação dessas tecnologias está ficando cada vez menor."