CARL SAGAN: em 1995, o astrônomo lançou um guia contra baboseiras em que defende o uso do pensamento científico / Divulgação
Da Redação
Publicado em 24 de dezembro de 2016 às 07h54.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h43.
David Cohen
Existem três tipos de mentiras, dizia o primeiro-ministro britânico Benjamin Disraeli: as mentiras, as mentiras deslavadas e a estatística. O dito tem o mérito de alertar para um tipo de mentira que se esconde sob o manto do rigor científico. Mas a classificação merece ser ampliada. A começar pela própria frase de Disraeli, que não é encontrada em nenhum de seus escritos e cuja primeira aparição aconteceu anos depois de sua morte em 1881. Ela foi atribuída a Disraeli pelo escritor e humorista americano Mark Twain – o mesmo que disse: “Não é o que você não sabe que lhe traz problemas. É o que você sabe com certeza, e simplesmente não é verdade.” Talvez ele devesse prestar mais atenção a seus próprios aforismas…Se bem que, aparentemente, Mark Twain também não é o autor da frase que lhe é atribuída. Ela aparece nos trabalhos de um contemporâneo menos famoso, Josh Billings.
Citações equivocadas são apenas uma das instâncias em que se pega emprestada a autoridade de alguém para sustentar um argumento. Em tempos de internet, a facilidade de encontrar frases de efeito torna possível angariar aliados de peso em quase qualquer situação. Para ficar em apenas um exemplo: “Juros compostos são a oitava maravilha do mundo. Aquele que os entende, ganha; aquele que não os entende, paga”, disse Albert Einstein. Só que não.
Outra instância de empréstimo de autoridade, também facilitada pela internet, é a pura e simples invenção de notícias, atribuídas a fontes de respeito ou, num caso de mentira ainda mais deslavada, a fontes inventadas. Esse tipo de mentira ganhou um status todo especial na campanha eleitoral americana, em que ativistas disseminaram notícias falsas que supostamente contribuíram para a vitória de Donald Trump.
Não à toa, o termo “pós-verdade” foi escolhido como a palavra do ano pela Universidade Oxford. Refere-se a um ambiente em que a opinião tem peso maior do que os fatos objetivos. Economistas clássicos defendem que, quanto mais informação, mais perfeito é o funcionamento do mercado – qualquer mercado. Isso só vale, porém, para informações verdadeiras. Parece óbvio, mas como alerta Samuel Arbesman no livro Half-Life of Facts (“A meia-vida dos fatos”, numa tradução livre), toda verdade tem prazo de validade. O ovo faz mal para o coração, depois apenas uma parte dele faz mal, depois ele inteiro está absolvido.
A definição de Disraeli, que provavelmente não é de Disraeli, poderia portanto ser ampliada para incluir as verdades que já não são verdadeiras, as mentiras bem-intencionadas, as meias verdades, os raciocínios confusos…
Para defender-se de tudo isso, o astrônomo e divulgador científico Carl Sagan lançou em 1995 o guia contra baboseiras O Mundo Assombrado pelos Demônios, em que defende o uso do pensamento científico e faz uma lista de falácias contra as quais devemos nos vacinar. Uma das recomendações de Sagan é entender um pouco de estatística. Ele cita, por exemplo, que o presidente americano Dwight Eisenhower ficou pasmado ao descobrir que metade dos cidadãos de seu país tinha uma inteligência abaixo da média. Em sua pregação pela racionalidade, Sagan segue uma linha de pensamento milenar, que inclui iluministas, céticos, racionalistas, iniciada provavelmente pelo filósofo grego Sócrates, aquele que só sabia que nada sabia – e, justamente por isso, era o mais sábio dos homens (por não ter certezas, ele evitava a segunda metade do aforisma de Mark Twain/Josh Billings).
Números e palavras
O avanço da internet e a crescente complexidade da vida criaram oportunidades para expandir, resumir ou atualizar os preceitos de Sagan. É isso o que faz o psicólogo e escritor Daniel Levitin, professor de psicologia na escola de negócios Haas, da Universidade da Califórnia em Berkeley, no livro A Field Guide to Lies and Statistics: A Neuroscientist on How to Make Sense of a Complex World (“Um guia de mentiras e estatísticas: conselhos de um neurocientista para entender um mundo complexo”, numa tradução livre). Levitin divide as mentiras em dois campos: números e palavras. A primeira parte de seu livro é uma introdução à estatística, com foco em casos do mundo real. Digamos, por exemplo, que você seja o executivo-chefe da Apple e as vendas do iPhone tenham caído. Como apresentar esses números aos investidores? Eles certamente não vão gostar de um gráfico em que a linha de vendas cai, em vez de subir. A solução é apresentar um gráfico de vendas cumulativas – em vez das vendas de cada trimestre, a venda total até aquele trimestre. Foi o que fez Tim Cook em uma apresentação em 2013. A linha de vendas cumulativas está sempre subindo (embora suba menos do que antes).
Para disfarçar mais um pouquinho, você ainda pode brincar com os eixos e com a escala. Se quer frisar que o Brasil caiu demais no Pisa, o teste de educação internacional, apresente a pontuação a partir dos 300 pontos. Assim, a queda de 391 para 377 pontos em matemática parecerá maior do que se a barra começasse do zero. Outra forma de ludibrio comum é afirmar que quatro em cada cinco dentistas recomendam esta ou aquela pasta de dentes. A impressão é que a marca citada é bem superior às demais. Na verdade, a pesquisa permite que os dentistas recomendem mais de uma marca – e várias apresentam nível de recomendação similar.
Levitin narra que, após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, aumentou o medo dos americanos de viajar de avião. O resultado foi que, nos meses seguintes, o número de acidentes fatais nas estradas cresceu, porque mais gente viajou de carro – um meio de transporte menos seguro que o avião. Em linhas gerais, Levitin recomenda o uso da lógica, a busca de informações de boas fontes, a revisão de pares e o pensamento crítico. O duro é que essas atitudes são resultado de uma postura de vida, não uma ferramenta que você possa pegar na gaveta quando surgir algum problema. Até porque, sem esse hábito do pensamento crítico, você sequer vai perceber que existe um problema.
Para o leitor comum, o livro pode ser uma revelação. Nessa era de tantas informações, mal temos tempos de digeri-las. O maior recado de Levitin é que vale a pena gastar algum tempo para examinar as informações e os informantes.
“O pensamento crítico não é algo que você use uma vez, com um assunto, e depois esqueça”, diz ele. “É um processo ativo e contínuo. Requer que nós pensemos como Bayesianos, atualizando nosso conhecimento conforme cheguem novas informações.” O guia de Levitin está longe de esgotar o assunto, mas pode ser um bom início de processo.