Fábrica da Foxconn em Shenzhen: cidade é conhecida pelos locais de iPod City (Voishmel/AFP Photo)
Da Redação
Publicado em 31 de maio de 2012 às 17h02.
São Paulo - Durante minhas últimas férias, no final de 2011, viajei à China para atravessá-la desde Pequim, a capital ao norte, até Hong Kong e Shenzhen, no sul do país. No meio do roteiro, passei por Xangai e Guilin, esta última uma cidade do interior rural do país, local onde nem todas as casas possuem acesso à água encanada e a pobreza da população torna fácil entender por qual razão milhões de chineses deixam suas vilas, todos os meses, para tentar a vida em fábricas como as da Foxconn.
Ao longo das próximas semanas, vou postar aqui no Trending Blog, o que vi no mercado chinês. Desde as feiras de produtos falsos vendidos sem nenhum constrangimento nos shoppings verticais, a história do empreendedor conhecido como ´Steve Jobs chinês´ até a visita aos laboratórios de empresas de alta tecnologia, como a Huawei, que desenvolve patentes para as redes móveis 4G. Neste primeiro post, compartilho como foi visitar a principal planta industrial da Foxconn no mundo, no extremo sul da China.
Shenzhen é uma cidade de trabalhadores. Desde às seis da manhã, quando começam os primeiros turnos nas fábricas da cidade até a alta madrugada, tudo o que se vê na capital dos eletrônicos é trabalho.
No distrito de Langhuo, a 20 quilômetros do centro da cidade, enormes complexos fabris produzem eletrônicos que levam as marcas de gigantes da tecnologia, como Apple, Acer, HP, Dell e Motorola.
Um estudo do governo da província de Guandong estima que 30 bilhões de dólares foram derramados em Shenzhen, só por companhias estrangeiras, desde que a cidade tornou-se uma SEZ, siga para “zona econômica especial”.
Impostos baixos, menor burocracia para empreender, oferta de terra, câmbio desvalorizado, energia abundante, frouxas regras ambientais e infraestrutura logística impecável são os trunfos de uma SEZ. A todos estes fatores, soma-se um ingrediente poderoso, capaz de desequilibrar a balança da competição internacional a favor da China: um mercado de trabalho com mão de obra farta, barata e impedida de organizar-se livremente.
“Na China, os contratos de emprego permitem jornadas de até 60 horas semanais, o que equivale a trabalhar 10 horas por dia, de segunda a sábado, descontado o tempo gasto em pausas para refeições ou para ir ao banheiro”, conta Jiahui Huang, diretora da organização China Labours Watch, grupo de defesa dos trabalhadores criado em Nova York, mas que possui representação em Shenzhen. Esse limite, no entanto, é frequentemente desrespeitado. Segundo Jiahui, são fartos os relatos de jornadas superiores a 70 horas semanais por salários mensais de 1100 yuans, ou menos de 400 reais, já inclusos todos os bônus por horas extras.
Visitei a mais famosa das indústrias de Shenzhen, o complexo da fabricante de iPads e iPhones, Foxconn. Chamada de iPod City pelos moradores locais, a região justifica o apelido. O conjunto de construções que forma a unidade fabril reúne 15 galpões dedicados às linhas de produção, além de prédios-dormitórios, silos de armazenamento de peças e áreas de lazer, como piscina, quadras de esporte, refeitórios e supermercados. Quem vive na iPod City tem acesso até a um canal exclusivo de televisão, a Foxconn TV, que transmite sua programação para um milhão de trabalhadores espalhados pela China continental. Deste total, 450 mil espectadores vivem na planta de Shenzhen, maior instalação da Foxconn no país.
Fechada para a imprensa desde sua inauguração, a iPod City permitiu visitas pontuais de agências de notícias e publicações americanas após uma dezena de trabalhadores cometer suicídio dentro de suas dependências. O jornalista americano Joel Johnson, que já escreveu para publicações como Gizmodo e Wired, visitou o complexo em janeiro de 2011. “Na época, eles estavam realmente interessados em mostrar como são as coisas em seu campus”, contou-me Joel, por e-mail.
Procurada em outubro de 2011, a Foxconn respondeu que tours guiados não são mais permitidos. “Infelizmente, este tipo de visita não será possível”, me explicou Samantha Chen, diretora de relações públicas da Foxconn. A negativa abriu a possibilidade de uma forma mais arriscada (porém mais autêntica) de explorar a iPod City, um tour livre de guias que preparam previamente o que pode ser visto.
A partir do portão Oeste da fábrica da Foxconn, onde um vigilante solitário que aparentava não ter mais que 16 anos cochilava sob um calor de 33 graus, iniciamos nossa jornada pelo complexo industrial. Nesse ponto, não há roletas controlando o acesso e o grande fluxo de trabalhadores torna difícil monitorar a entrada e saída de não funcionários. Era domingo quando INFO visitou o complexo fabril e, embora fosse o dia da folga semanal dos operários, ao menos três galpões funcionavam plenamente, onde se viam funcionários embalados em aventais brancos enfileirados em linhas de produção.
O que mais chama a atenção de qualquer laowai, como são chamados os estrangeiros na China, que cruza os portões da Foxconn é a visão de redes antissuicídio. Elas cercam absolutamente todos os prédios da iPod City e são especialmente reforçadas no terraço dos edifícios, onde são fechadas nas laterais e no topo, como numa quadra de tênis ou futebol. As redes foram construídas há dois anos, depois que o número de funcionários que se atirou de janelas e terraços superou a casa da dezena.
Oficialmente, o governo chinês admite 17 suicídios nas fábricas da Foxconn e os imputa a razões íntimas dos trabalhadores. Num complexo onde chegam a viver quase meio milhão de pessoas, o fato de algumas delas se matarem é quase uma imposição estatística.
Para Debby Chan, diretora da SACON, ONG dedicada a denunciar abusos contra trabalhadores, que visitei em Hong Kong, é admissível que algumas mortes tenham ocorrido em função de problemas pessoais.
Debby vê, no entanto, gravíssimos problemas nos métodos de produção da Foxconn e responsabiliza tanto a Apple quanto sua parceira chinesa pelas mortes em Shenzhen.
“Aqui, como em outros países da Ásia, a ocorrência de suicídios é mais alta que a média mundial, mas nas fábricas da Foxconn a recorrente humilhação e a superexploração levam os trabalhadores a situações-limite”, diz Debby. Entre as mortes registradas na iPod City está a do operador Sun Danyong, 25 anos, acusado de perder um protótipo do iPhone 4. Sun teria sido agredido e ameaçado por seguranças um dia antes de se atirar da janela de seu quarto.
Há ainda casos de operários que sobrevivem às quedas. Liu Wen, uma garota de 17 anos, tornou-se símbolo desse grupo. Liu migrou do norte do país para trabalhar na Foxconn. Sem experiência anterior e sem dominar totalmente o mandarim – na China há dezenas de línguas vivas, faladas por 56 etnias – cometeu erros em série, o que a obrigou a abrir mão de horas de almoço e descanso para compensar a baixa produtividade. Exausta, humilhada e pela primeira vez na vida vivendo longe da família e de amigos, Liu entrou em crise quando, por um erro burocrático, seu primeiro salário não foi depositado em sua conta.
“Ao falhar com o compromisso de mandar dinheiro para casa, como tinha prometido ao migrar, Liu entrou em desespero. Sem apoio e num momento impensado, jogou-se do quarto andar do prédio em que vivia”, conta Debby, que colhe relatos de trabalhadores fazendo entrevistas nas portas de fábrica em Shenzhen. Socorrida, a jovem Liu sobreviveu. A queda deixou a garota paraplégica, tornando-a inválida para o trabalho na Foxconn. De acordo com Debby, Liu retornou à sua vila natal, onde vive com os pais.
Embora más condições de trabalho e suicídios na China sejam apontados como rotina por grupos como a SACON e China Labors Watch, os episódios ocorridos na Foxconn despertaram a atenção do mundo. Debby atribui a visibilidade que o caso ganhou na mídia internacional ao fato de os suicídios terem acontecido nas plantas industriais de uma empresa que atende a Apple, globalmente celebrada como um ícone da inovação.
Shenzhen é uma cidade de profissões estranhas – A repercussão internacional fez Apple e Foxconn reagirem. Por semanas, Terry Gou, CEO e fundador da Foxconn, deixou sua sala em Taipei, em Taiwan, sede global da companhia, para dar expediente em Shenzhen e acompanhar de perto melhorias nas condições de trabalho dos operários. Terry recebeu pessoalmente jornalistas de agências internacionais de notícias e os levou para visitar dormitórios novos, equipados com ventiladores e televisão, conhecer os refeitórios e a piscina disponíveis no complexo. Os operários receberam, ainda, um aumento de 30% em seus salários e o número de horas extras que cada trabalhador pode fazer foi limitado.
Preocupado com as notícias que recebia na Califórnia, Steve Jobs pediu que seu homem de confiança, o então diretor de operações Tim Cook, conhecesse pessoalmente o fornecedor chinês.
Cook cumpriu a ordem de Jobs em junho de 2010 e visitou não só a problemática Foxconn, mas também uma dezena de fábricas menores que, de alguma forma, compõem a cadeia de suprimentos da Apple. O executivo, que substituiria Jobs definitivamente na função de CEO em agosto de 2011, realizou entrevistas com mil trabalhadores chineses, acompanhado de “especialistas em prevenir suicídios”, uma estranha profissão que floresce no polo tecnológico chinês. Esses profissionais, em geral especialistas em psicologia e psiquiatria, são treinados para identificar pessoas com tendências depressivas e mapear os fatores que levam jovens saudáveis a saltar janela abaixo. Das reuniões de Cook com esses experts surgiu a ideia de abrir o centro de apoio psicológico que funciona 24 horas por dia no complexo da Foxconn e criar programas para melhorar a autoestima dos operários.
Em sua jornada investigativa à China, Cook descobriu uma coleção de abusos e ilegalidades em fornecedores da Apple, como fábricas que empregavam dezenas de garotos com menos de 16 anos, idade mínima para o trabalho remunerado, segundo as leis chinesas. Muitas indústrias foram banidas da lista de parceiros da Apple e, por iniciativa de Cook, relatórios periódicos com “termos de responsabilidade dos fornecedores” passaram a ser publicados no site Apple.com. No último documento, há recomendações aos parceiros comerciais chineses para que “deem mais poder de decisão aos funcionários” e “gerenciem conflitos entre operadores e supervisores”.
De acordo com Debby Wang, da SACON, trabalhadores que aparentam estar estressados demais ou exibam pouca sociabilidade são agora alvos de observação e sessões compulsórias de psicanálise nas fábricas da Foxconn. Debby diz ainda que alguns operários considerados “potenciais suicidas” são obrigados a assinar um contrato comprometendo-se a não se matar, fato negado pela Foxconn. Por mais heterodoxos que possam parecer os métodos de prevenção, a conjunção de apoio psicológico, redes físicas de proteção e melhorias nas condições de trabalho deram certo e o número de mortes na iPod City desabou.
A superexploração, no entanto, pode ter apenas mudado de lugar. Instalações da Foxconn em cidades longe da costa, como Chengdu e Yanta tornaram-se os novos polos de mortes e denúncias de maus tratos.
As organizações independentes afirmam que o boom no consumo de iPhones e iPads obrigou a Foxconn a expandir muito rapidamente suas instalações e, nas novas fábricas do interior do país, trabalhadores são alocados em complexos cujos refeitórios e dormitórios ainda não estão prontos e obrigados a trabalhar em galpões sem ventilação apropriada.
Há relatos de operadores que dormem no chão, ao lado das máquinas onde trabalharam o dia todo ou urinam em canteiros de terra fofa, enquanto banheiros não ficam prontos.
Em maio de 2011, um acidente na planta industrial de Chengdu voltou a lançar luzes sobre a Foxconn. Um galpão onde iPhones são polidos explodiu, matando duas pessoas e ferindo outras 16. As razões do incêndio não foram esclarecidas, mas a principal suspeita é que o excesso de partículas de alumínio suspensas no ar tenha facilitado uma combustão espontânea.
“Se há tanto metal no ar a ponto de gerar explosões, imagine o impacto que isto tem na saúde dos trabalhadores e dos vizinhos das fábricas”, questiona Debby, da SACON.
Caminhando por entre as alamedas da Foxconn, em Shenzhen, é possível perceber que há um esforço real para melhorar as condições de trabalho. As ruas são limpas, arborizadas e há fontes ornamentais espalhadas pelo complexo.
Os refeitórios são amplos e bem iluminados e há diferentes opções de restaurantes, desde aqueles que servem tradicionais pratos chineses até lanchonetes que vendem hambúrgueres e espaguete. Os vestiários são simples, mas limpos e espaçosos.
Os lavatórios ficam subitamente cheios a cada intervalo nas linhas de produção. Jovens apressados fazem fila na porta dos banheiros para lavar os rostos e mãos. Após refrescar-se, usam o escasso tempo livre para ouvir música com fones de ouvido. São pouquíssimas as conversas entre eles e o vaievém entre as linhas de produção e as áreas de descanso é organizado e silencioso.
Não há sirene que marque o início e o fim de um intervalo e todos parecem saber exatamente a hora de regressar a seu posto, ainda que muitos retardem em alguns segundos esse momento para dar uma última tragada em seus cigarros, um hábito comuníssimo entre os operários.
Nesse mesmo dia, dezenas de jovens não escalados para o plantão, jogavam futebol com uniformes completos. Meias, calção, camiseta e chuteiras são fornecidas pela Foxconn. Entre as unidades de produção e os dormitórios, há mercadinhos e padarias que vendem iogurtes, pães, produtos de limpeza e sucos de frutas a preços, em média, 50% mais baratos que no centro de Shenzhen, indicando que há algum subsídio da fábrica para a compra de itens de primeira necessidade por seus funcionários.
Até uma pequena feira de eletrônicos acontece dentro dos portões da Foxconn, onde operários podem comprar ou vender tocadores de MP3, smartphones de segunda linha e videogames portáteis.
Próximo do portão norte, há uma LAN house usada pelos trabalhadores para acessar a web e entrar em contato com suas famílias. Na entrada da LAN, cartazes em mandarim incentivam os trabalhadores a postar mensagens positivas sobre “como é sua vida na Foxconn” e prometem bônus no salário para os “melhores depoimentos”. Uma placa menor convida os usuários a participar de um quiz online sobre segurança no trabalho. Quem tiver alto nível de acertos, ganha brindes da fábrica.
Do lado de fora da Foxconn, as ruas não se diferenciam muito de qualquer outra zona industrial do mundo, com carros velhos estacionados, homens deitados no chão à sombra de árvores e muitos bares tocando música pop e servindo álcool. Às quatro da tarde, não foi difícil reconhecer nos pequenos botecos que vendem garrafas de cerveja por 4 yuans (o equivalente a R$ 1,30) quem eram funcionários da iPod City. A maior parte deles deixa o trabalho ainda vestindo as camisas polo branca com o logo do empregador bordado em azul que compõe seus uniformes no dia a dia.
De sete abordagens que fiz nesses bares, em apenas uma delas foi possível conversar com os trabalhadores. Em todos os casos, a intérprete me apresentou como um pesquisador brasileiro em viagem à China e perguntou se eu poderia fazer algumas poucas perguntas. As recusas foram justificadas pela “falta de tempo” ou simplesmente com a frase “não tenho nada a dizer”. No entanto, dois rapazes de 18 e 20 anos, que bebiam chá quente juntos, aceitaram conversar. O mais jovem, chamado Zang, disse trabalhar entre 10 e 12 horas por dia e não pareceu incomodado com isso. “Já estou acostumado. Não gosto quando tenho de ficar muitas horas em pé ou quando me sinto observado de perto pelo supervisor. De qualquer forma, é um bom emprego”, disse o garoto, que trabalha há dois anos na Foxconn e espera comprar uma moto em 2012.
Yan, 20, está há três anos em Shenzhen e, antes de entrar na Foxconn, passou por outras duas fábricas da cidade. “Minha família ficou muito assustada quando eu contei que trabalharia aqui, pois eles sabem dos suicídios que aconteceram na Foxconn, mas eu não me importo com isso e tenho um trabalho que não é bom, mas também não é ruim”, disse. Yan lamentou apenas o valor de seu salário. “Infelizmente aqui na China os únicos que ganham dinheiro são as pessoas que trabalham para o governo”, afirmou em um tom de voz exaltado e aparentemente despreocupado de que outras pessoas no bar ouvissem suas queixas.
Yan e Zang disseram que os próprios operários pedem para fazer mais horas extras, a fim de engordar seus rendimentos, confirmando o discurso oficial da fábrica. No auge da crise dos suicídios, porta-vozes da Foxconn argumentaram que qualquer hora extra é feita voluntariamente e asseguraram que nenhum trabalhador é penalizado por se recusar a trabalhar além de sua jornada regular. “Nós temos grande responsabilidade com o mais de um milhão de pessoas que empregamos na China, mantemos contratos apenas com pessoas maiores de idade e oferecemos um competitivo pacote de benefícios e remuneração a nossos colaboradores”, informou a fabricante, em breve nota.
Um estudo da consultoria francesa Alternatives Économiques mostra que a eficiência e o baixo custo das fábricas chinesas são um pilar fundamental na recente ascensão da Apple, alçada em 2011 pela primeira vez ao posto de empresa de tecnologia mais valiosa do mundo. A análise estima em 180 dólares o custo total, para a Apple, de produção de um iPhone 4, descontados investimentos de pesquisa e projeto na Califórnia. Deste total, apenas 7 dólares é o valor adicionado pelas fábricas chinesas. Em artigo assinado por Marc Chevallier, analista da Alternatives Économiques, a consultoria afirma que se iPhones e iPads fossem montados na Europa e Estados Unidos seu custo explodiria e seria impraticável vender os gadgets por valores como 199 dólares ou 499 dólares, respectivamente. Preços mais elevados reduziriam a adoção em massa desses produtos, o que prejudicaria não só os lucros da divisão de hardware da Apple como também as receitas geradas pelo iTunes e pela AppStore, uma vez que a plataforma iOS seria sensivelmente menos popular.