Depois do arquivamento dos projetos de lei antipirataria, Sopa e Pipa, vem à tona o Acta, tratado similar de abrangência global. (Mario Tama/Getty Images)
Gabriela Ruic
Publicado em 27 de janeiro de 2012 às 07h05.
São Paulo – Janeiro se confirma como um mês conturbado para internet. Desde o começo do ano, a web foi afogada por uma onda de protestos contra dois projetos de lei então em pauta no congresso americano, Sopa (Stop Online Piracy) e Pipa (Protect IP Act). Houve ataques de hacktivistas contra sites do governo e até um apagão na internet, coordenado por sites como Wikipedia e Reddit, que ficaram 24 horas fora do ar.
Depois destes episódios, Washington finalmente cedeu às pressões do público e cancelou a votação destes projetos na semana passada. Mas quando a internet pensou que poderia respirar aliviada, um novo, mais abrangente e possivelmente mais rigoroso projeto de lei veio à tona nos últimos dias, o Acta (Anti-Counterfeiting Trade Agreement).
O tratado tem como objetivo criar padrões internacionais para o combate da falsificação de bens e a pirataria na web. O que significa que a discussão sobre medidas antipirataria agora deixa os corredores do congresso norte-americano e ganha dimensões globais.
O Acta é visto como uma regulamentação mais protecionista e rigorosa que seus similares, Sopa inclusive, e tem sido duramente criticado por diversas entidades e ativistas que militam a favor da privacidade e liberdade na rede. E o primeiro ponto de protesto diz respeito à maneira sigilosa com a qual o tratado foi concebido e também o fato de ter sido negociado por um grupo fechado de países - Estados Unidos, Canadá, União Europeia (UE) e Japão entre eles.
O que se sabe sobre o Acta
Apesar de ainda não contar com uma versão final, sabe-se que o Acta é parecido com o Sopa, ao menos no que diz respeito à internet. “E isso não é mera coincidência, uma vez que os EUA tem muita influência sobre o tratado”, explica André Mello e Souza, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Entretanto, além de ser mais abrangente que seu primo americano, os mecanismos de implementação e punição são ainda mais rigorosos.
Uma das disposições prevê que o acordo transforme servidores de internet em vigilantes da rede. Servidores serão obrigados a fornecer dados privados de usuários suspeitos para detentores de direitos autorais. Para que isso aconteça, é preciso que o detentor apresente justificativas razoáveis que mostrem a tal infração.
Mas é justamente nesse ponto que existe uma pegadinha: o Acta não define qual seria essa justificativa, o que traz implicações diretas para a privacidade na internet.
Além da web
O acordo também prevê medidas que podem ser tomadas por autoridades alfandegárias, explica Souza. E isso pode significar a fiscalização e apreensão de bens como mp3 players e notebooks. Basta a existência de suspeita de que tais bens possam contar com conteúdo que viola direitos autorais.
Outro ponto também de preocupação é no que este tratado pode afetar cargas e mercadorias em trânsito. Um exemplo é o que aconteceu com o Brasil, há cerca de dois anos, quando a Índia enviou ao país um carregamento de medicamentos genéricos. A carga acabou retida na Holanda, pois infringia as leis daquele país.
Como tudo começou
As negociações do texto começaram formalmente em 2008 e na época a discussão de fato ficou restrita a este grupo fechado. A construção foi conduzida em segredo até meados de 2009. Naquele ano, o Wikileaks trouxe à tona a existência do projeto, então desconhecido pela sociedade civil.
Em 2011, o tratado foi aberto para assinaturas e foi prontamente reconhecido pelos países que participaram das negociações, com exceção da UE. Um tempo depois, contou com a adesão da Austrália, Coreia do Sul, Marrocos, Nova Zelândia e Cingapura.
Esta semana, o Acta foi finalmente assinado por 22 estados membros da UE, em Tóquio. Para que seja efetivamente colocado em prática em território europeu, porém, deve ser ainda ratificado pelo parlamento, o que deve acontecer em junho deste ano.
E o Brasil com isso?
A posição do Itamaraty em relação ao acordo é clara. Em nota oficial à EXAME.com, o órgão diplomático brasileiro declara não reconhecer a legitimidade do Acta. A principal justificativa é que o tratado não foi discutido em âmbito de órgãos multilaterais, como a própria ONU ou OMC (Organização Mundial do Comércio).
O Itamaraty enxerga o Acta como um acordo firmado entre membros de um “clube” pouco transparente e que, portanto, não vai contar com o apoio ou assinatura do Brasil. Ainda no comunicado, o órgão reafirma o compromisso do país com discussões abertas sobre propriedade intelectual e defende que leis internacionais devem ser democráticas.
Enquanto isso, o número de entidades e até mesmo figuras políticas que se posicionam contra a aplicação efetiva do tratado aumenta cada vez mais, mesmo com o texto já assinado. A deputada holandesa Marietje Schaake, que participa do parlamento europeu, expressou em nota oficial a preocupação com a falta de transparência com a qual o acordo foi negociado e os impactos reais que ele terá na liberdade de expressão na web.
Do lado das ONGs, os franceses do Le Quadrature du Net – organização que alerta governos e a sociedade sobre projetos que ameaçam liberdades civis na web – veem a assinatura do acordo pela UE como armadilha para democracia. E, nem mesmo os temidos hacktivistas do Anonymous ficaram de fora do time de críticos ao tratado. Em tuítes recentes, o grupo deixa clara a posição contrária ao acordo e promete retaliações.
Apesar da posição contrária do Brasil, alerta Souza, isso não significa que o país não sofrerá pressões externas para reconhecer o Acta, que pode vir a ser usado como medida coercitiva.