Literatura: Correspondência mantida com Mário de Andrade é destaque na obra (Getty Images)
Da Redação
Publicado em 23 de abril de 2014 às 15h02.
São Paulo – Precioso! Difícil não usar o ponto de exclamação quando se tem à frente A palavra afiada, livro que reúne entrevistas, depoimentos, artigos variados e cartas de Gilda de Mello e Souza (1919-2005), ensaísta, crítica de arte e fundadora da cadeira de Estética no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Fruto de anos de dedicação e trabalho criterioso de Walnice Nogueira Galvão, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o livro, agora publicado, reúne textos que estavam dispersos e até mesmo ignorados.
“Em 2006, uma das três filhas de Gilda e Antonio Candido de Mello e Souza, a Ana Luisa Escorel, dona da editora Ouro sobre Azul, no Rio de Janeiro, me procurou. Ela vem reeditando, ao longo dos anos, toda a obra do pai e da mãe, além de outras coisas. Como eu havia sido muito amiga de Gilda e feito uma longa entrevista com ela para uma revista da faculdade – entrevista que a própria Gilda considerava a melhor que havia dado na vida –, a Ana Luisa me perguntou se eu não gostaria de reunir e editar as várias entrevistas concedidas pela mãe. Eu, que era muito fã dessas entrevistas, disse imediatamente que sim”, relatou Galvão à Agência FAPESP.
“Aos poucos, procurando aqui e ali, fui juntando várias entrevistas. Como eu digo na introdução, a Gilda não guardava as coisas direito, não era narcisista ao ponto de organizar arquivos sobre tudo o que fazia. Ao contrário, assim que acabava de fazer algo, ela perdia o interesse, e já se voltava para o próximo projeto. Assim, algumas dessas entrevistas foram encontradas em lugares absolutamente inesperados. À medida que trabalhava, fui achando muitas outras coisas também: uma série de pequenos artigos e alguns grandes, que ninguém sabia que existiam; e dez cartas dela ao Mário de Andrade, que são um verdadeiro tesouro. Então, eu procurei a Ana Luisa e o Antonio Candido, relatando tudo o que estava conseguindo e pedindo a aprovação deles para fazer um livro em três partes: as entrevistas; os textos esparsos; e as cartas a Mário de Andrade. Eles concordaram, e isso foi ótimo, porque o livro ficou muito mais rico do que havíamos imaginado inicialmente”, prosseguiu Galvão.
Com lançamento agendado para 23 de abril, no Centro Universitário Maria Antonia, em São Paulo, A palavra afiada vem acrescentar-se a outras obras publicadas de Gilda, como A moda no século XIX (1952), O tupi e o alaúde (1979), Exercícios de leitura (1980), O espírito das roupas (1987) e A ideia e o figurado (2005).
Uma trajetória pioneira
Nascida em São Paulo, em 24 de março de 1919, no seio de uma família tradicional, mas criada no interior do estado, em uma fazenda em Araraquara, Gilda de Mello e Souza, cujo sobrenome de solteira era Moraes Rocha, foi uma pioneira em vários sentidos. Uma das primeiras mulheres a estudar na USP, foi aluna de alguns dos famosos professores da chamada “Missão Francesa” – Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss e Jean Maugüé –, bacharelando-se em Filosofia em 1940.
Uma das primeiras a conciliar os compromissos familiares com a carreira intelectual, iniciou-se no magistério como assistente de Bastide, na cadeira de Sociologia I, em 1942. Convidada por João Cruz Costa (1904-1978) a transferir-se para o Departamento de Filosofia em 1954, fundou a cadeira de Estética, na qual ensinou até se aposentar, em 1973.
Sua tese de doutorado, orientada por Bastide e apresentada em 1950, foi recebida com estranhamento e velado desdém no meio acadêmico, pois tratava de um tema – a moda – considerado fútil nos marcos estreitos do pensamento dominante na época. Somente um quarto de século mais tarde o assunto receberia o devido reconhecimento intelectual, quando Roland Barthes publicou Système de la mode (Sistema da Moda), em 1976.
“Na tese, a autora procede a uma exegese das roupas femininas, em contraste com a vestimenta masculina, lendo-as como organizações de signos com base em funções sociais e psicológicas. E, sobretudo, como mostra, servindo a dois propósitos: enfatizar a oposição entre os sexos e simbolizar as barreiras de classe”, escreveu Galvão no prefácio de A palavra afiada.
Entre 1969 e 1972, em um dos períodos mais sombrios da história política brasileira, Gilda, movida por um sentimento de dever, assumiu a chefia do Departamento de Filosofia da USP, duramente atingido pela perseguição ditatorial após o golpe militar de 1964, e, mais ainda, depois da promulgação do Ato Institucional número 5, em dezembro de 1968. “Ante um departamento acéfalo e repentinamente desorganizado pelas cassações que o mutilaram, Gilda, mesmo que a contragosto, acabaria por se encarregar da chefia, de 1969 a 1972. Em sua gestão, enfrentou e venceu não poucas nem pequenas batalhas”, afirmou Galvão no prefácio.
A onipresença de Mário de Andrade
Em seu período de estudos na então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, Gilda participou de um pequeno círculo de jovens brilhantes, que viria a fundar a revista Clima em 1941 e exerceria mais tarde enorme influência na vida intelectual do país. Eram seus companheiros de grupo e amigos inseparáveis Antonio Candido de Mello e Souza, Decio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Ruy Coelho e Lourival Gomes Machado, entre outros. As características sociais, psicológicas e culturais desse grupo são saborosamente descritas por Gilda na entrevista que concedeu a Walnice, sem dúvida um dos pontos mais altos de A palavra afiada.
Com Antonio Candido, ela se casou em 1943. Desse casamento, que perdurou por mais de seis décadas, até a morte de Gilda, em 25 de dezembro de 2005, nasceram suas três filhas: Ana Luisa Escorel, designer e editora de livros, Laura de Mello e Souza e Marina de Mello e Souza, ambas historiadoras e professoras do Departamento de História da USP.
Mas a grande presença – praticamente a onipresença – de A palavra afiada é a de Mário de Andrade. O autor de Pauliceia Desvairada (1922), Amar, Verbo Intransitivo (1927), Macunaíma (1928), e tantas obras definidoras ou redefinidoras da cultura brasileira, era primo do pai de Gilda. Ele frequentava pontualmente a fazenda de Araraquara em suas férias. E, quando ela veio estudar em São Paulo, hospedou-se na casa dele, que morava com a mãe, tia-avó e madrinha de Gilda, e com outros parentes.
Esse homem, muitos anos mais velho, e que, na época, já era uma celebridade nacional, tornou-se uma espécie de mentor intelectual da jovenzinha. Mas a relação que ela estabeleceu com ele, da qual as dez cartas publicadas em A palavra afiada dão testemunho exemplar, não foi a da discípula deslumbrada e intimidada pelo mestre incontestável. Ao contrário. Foi uma relação cheia de claros e escuros, de nuanças, de meios-tons. A maneira como ela, ainda tão nova, escreve a ele é algo de notável, tanto pela cumplicidade e pela aguda auto-observação, quanto, principalmente, pelo estilo.
Também notável, porém pelo valor testemunhal e pelo humor, é o texto “Mário de Andrade em família”, incluído no livro e resultante de uma palestra proferida por ela no Centro Cultural São Paulo em 1992, por ocasião do 70º aniversário da Semana de Arte Moderna, de 1922.
“A presença do Mário de Andrade no livro é realmente impressionante. Mais impressionante do que eu própria me dava conta”, comentou Galvão. “As cartas cobrem apenas um pequeno período, de 1938 a 1942. Mas foi um período decisivo, quando ela estava escolhendo o que ia estudar, se ia ter ou não uma carreira, o que ia fazer da vida. E o Mário de Andrade teve uma influência incalculável nessa etapa. De certa maneira, ele forneceu as balizas que a guiaram pelo resto da existência – pelo menos do ponto de vista intelectual. E o fez dando-lhe a maior liberdade de escolha. Ele tinha uma frase, que o Marcos Moraes, especialista na correspondência dele, até colocou como título de um livro: ‘orgulho de jamais aconselhar’. Era um mestre no sentido de amparar, com mãos muito cuidadosas, o talento do discípulo, mas para que o discípulo pudesse voar com suas próprias asas.”
Erudição, sutileza e elegância
As qualidades que mais impressionam em A palavra afiada são a erudição de Gilda, a sutileza de suas análises e a elegância de sua expressão. Esses atributos são especialmente relevantes quando se considera que muitos desses textos eram cartas, portanto não destinados à publicação, ou entrevistas, gênero no qual o improviso e as indecisões da expressão oral deixam marcas praticamente inevitáveis. Mas, como enfatizou Galvão, Gilda era uma artista da palavra, tanto escrita quanto falada.
“Ela era extremamente erudita, tanto pela abrangência quanto pela profundidade de suas leituras. Destacava-se também pela sensibilidade e agudeza no estudo das obras de arte. A experiência proporcionada pelo contato direto com a obra de arte era uma das coisas que mais valorizava”, lembrou Galvão. “Houve até um episódio famoso, quando ela foi a Sansepolcro, uma cidadezinha da Toscana, para ver o único quadro de Piero della Francesca (pintor do século XV) que ainda não conhecia, já que havia visto todos os outros. Ela foi de trem a esse vilarejo perdido no norte da Itália e, depois, deu um curso magistral na faculdade sobre a descoberta do espaço no Renascimento.”
Outra entrevista publicada no livro, esta concedida a Carlos Augusto Calil em 1992, sobre o filme Violência e Paixão, de Luchino Visconti, também pode ser assistida no Youtube, o que oferece ao interessado a possibilidade de observar não apenas a agudeza com que Gilda foi capaz de analisar e interpretar esse filme de mestre, mas também a elegância com que se expressava.
“Gilda de Mello e Souza foi uma pensadora sutil e excepcional escritora. A palavra afiada traz textos e entrevistas que até agora não estavam disponíveis, resgatados com gosto e discernimento por Walnice Nogueira Galvão, e chancelados pela leitura de Antonio Candido de Mello e Souza”, afirmou Celso Lafer, presidente da FAPESP. “Todos os que tiveram o privilégio de conviver com ela, eu inclusive, terão nesse novo livro uma renovada oportunidade de ver os seus talentos.”
“Sua tese, O espírito das roupas, é fantástica. E o livro O tupi e o alaúde, que resenhei, é uma grande interpretação da alma de Mário de Andrade, com quem ela teve uma convivência profunda”, acrescentou Lafer.
Ter sido discípula de Mário de Andrade e esposa de Antonio Candido foi, certamente, um extraordinário privilégio. Mas, por outro lado, estabeleceu para ela dois termos de comparação dificílimos – exatamente nas áreas em que procurou atuar, a literatura e as artes. “Penso que ela deve ter lutado muito para se expressar, para se afirmar, tendo diante de si parâmetros desse porte”, refletiu Galvão. “Outras mulheres, mais fracas, teriam desistido. Ela não. E conseguiu conciliar uma brilhante carreira intelectual com uma vida familiar extremamente harmoniosa. Foi uma existência muito completa. E bela.”