WeChat: para os chineses, o aplicativo é o lugar para falar com amigos, pagar contas, planejar trabalhos, postar fotos, comprar coisas e ler notícias (Chesnot/Getty Images)
Carolina Ingizza
Publicado em 27 de setembro de 2020 às 18h02.
Última atualização em 28 de setembro de 2020 às 09h25.
Logo depois das eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos, Joanne Li percebeu que o aplicativo que a conectava a outros imigrantes chineses a havia desligado da realidade.
Tudo o que via no aplicativo chinês, o WeChat, indicava que Donald Trump era um líder admirado e um empresário impressionante. Ela acreditou que esse era o consenso sobre o recém-eleito presidente dos EUA. "Mas então comecei a falar com alguns estrangeiros não chineses sobre ele. Fiquei totalmente confusa."
Li, que morava em Toronto na época, começou a ler coisas mais diversas e foi percebendo que o WeChat estava cheio de fofocas, teorias conspiratórias e mentiras descaradas. Um artigo afirmava que o primeiro-ministro Justin Trudeau, do Canadá, planejava legalizar drogas pesadas. Outro boato alegava que o Canadá tinha começado a vender maconha em supermercados. Um post de uma conta de notícias em Xangai avisava os chineses de que precisavam tomar cuidado para não trazer drogas acidentalmente do Canadá, pois poderiam ser presos.
Ela também questionou o que estava sendo dito sobre a China. Quando um alto executivo da Huawei foi preso no Canadá em 2018, artigos da mídia estrangeira foram rapidamente censurados no WeChat. Seus amigos chineses, dentro e fora da China, começaram a dizer que no Canadá não havia justiça, o que contradizia a própria experiência. "De repente, descobri que falar com outros sobre o assunto não fazia sentido. Parecia que, se eu só tivesse acesso à mídia chinesa, minhas opiniões seriam diferentes."
Li, porém, não tinha muita escolha. Desenvolvido para ser tudo para todos, o WeChat é indispensável.
Para a maioria da população na China, o WeChat é uma espécie de aplicativo faz-tudo: uma maneira de trocar histórias, falar com antigos colegas de classe, pagar contas, fazer planejamentos com colegas de trabalho, postar fotos de férias de causar inveja, comprar coisas e obter notícias. Para os milhões de membros da diáspora chinesa, é a ponte que os liga às coisas de casa, de conversas familiares a fotos de comida.
A vigilância e a propaganda cada vez mais intensas do Partido Comunista Chinês estão no meio de tudo isso. Como o WeChat se tornou onipresente, acabou se transformando em uma poderosa ferramenta de controle social, uma maneira das autoridades chinesas guiarem e policiarem o que as pessoas dizem, com quem falam e o que leem.
O aplicativo chegou até a ampliar o alcance de Pequim para além de suas fronteiras. Quando a polícia secreta envia ameaças no exterior, muitas vezes o faz no WeChat. Quando pesquisadores militares que trabalhavam disfarçados nos EUA precisavam falar com as embaixadas da China, usavam o WeChat, de acordo com documentos judiciais. O partido trabalha via WeChat com seus membros que estudam no exterior.
Como alicerce do Estado de vigilância chinês, o WeChat agora é considerado uma ameaça à segurança nacional nos EUA. O governo Trump propôs bani-lo, além do aplicativo de vídeo TikTok, também chinês. Da noite para o dia, duas das maiores inovações na internet da China se tornaram uma nova frente no amplo impasse tecnológico entre os dois países.
Embora ambos os aplicativos tenham sido agrupados na mesma categoria pela administração Trump, eles representam duas abordagens distintas do Grande Firewall que bloqueia o acesso chinês a sites estrangeiros.
O TikTok, mais conhecido e bem-sucedido, foi projetado para o mundo selvagem fora da censura chinesa; ele só existe além das fronteiras da China. Ao criar um aplicativo independente para conquistar usuários globais, a dona do TikTok, a ByteDance, criou a melhor aposta de qualquer startup chinesa para competir com os gigantes da internet no Ocidente. A separação do TikTok de seus aplicativos primos na China, ao lado de sua grande popularidade, alimentou campanhas corporativas nos EUA para salvá-lo, mesmo que Pequim tenha potencialmente impedido qualquer acordo ao rotular sua principal tecnologia como prioridade de segurança nacional.
Embora o WeChat tenha regras diferentes para usuários dentro e fora da China, ele continua sendo uma rede social unificada que vai além do Grande Firewall. Nesse sentido, o aplicativo ajudou a levar a censura chinesa para o mundo. Sua proibição interromperia milhões de conversas entre familiares e amigos, razão pela qual um grupo entrou com uma ação judicial para bloquear os esforços do governo Trump. Seria também uma vitória fácil para os formuladores de políticas dos EUA que tentam coibir o grande alcance tecnológico-autoritário da China.
Li sentiu a força dos controles da internet chinesa quando voltou a seu país em 2018 para assumir um emprego na área imobiliária. Depois de sua experiência no exterior, ela procurou equilibrar sua dieta de notícias com grupos que compartilhavam artigos sobre assuntos mundiais. À medida que o coronavírus ia se espalhando no início de 2020 e as relações da China com nações ao redor do mundo começaram a se complicar, ela postou no WeChat um artigo da Rádio Ásia Livre, dirigida pelo governo dos EUA, sobre a deterioração da diplomacia sino-canadense, um texto que seria censurado.
No dia seguinte, quatro policiais apareceram no apartamento de sua família, portando armas e escudos de proteção.
Os policiais levaram Li, seu telefone e seu computador para a delegacia local. Ela contou que suas pernas foram presas a um dispositivo de contenção conhecido como cadeira tigre para interrogatórios. Eles perguntaram repetidamente sobre o artigo e seus contatos do WeChat no exterior antes de trancá-la em uma cela durante a noite.
Ela foi liberada duas vezes, mas levada de volta à delegacia para novas sessões de interrogatório. Li disse que um policial até insistiu que a China tinha proteções de liberdade de expressão enquanto a questionava sobre o que ela havia dito online. "Eu não disse nada. Só pensei: qual é a sua liberdade de expressão? É a liberdade de me arrastar até a delegacia e me manter noite após noite sem dormir me interrogando?"
Finalmente, a polícia a forçou a escrever uma confissão e jurar apoio à China, e então a deixou ir.
O WeChat começou como um simples imitador. Sua empresa mãe, a gigante chinesa da internet Tencent, havia conquistado uma enorme base de usuários em um aplicativo de bate-papo projetado para computadores pessoais. Mas uma nova geração de aplicativos para dispositivos móveis ameaçava perturbar seu domínio sobre a forma como os jovens chineses conversavam entre si.
Allen Zhang, o visionário engenheiro da Tencent, enviou uma mensagem para seu fundador, Pony Ma, dizendo estar preocupado com a situação da empresa, que não estava acompanhando as mudanças. Essa mensagem fez surgir uma nova missão, e Zhang criou um canivete suíço digital, que se tornou uma necessidade no dia a dia na China. O WeChat se aproveitou da popularidade das outras plataformas online administradas pela Tencent, combinando pagamentos, e-commerce e mídias sociais em um único serviço.
Ele se tornou um sucesso e acabou eclipsando os aplicativos que o inspiraram. E a Tencent, que lucrou bilhões com os jogos online em suas diferentes plataformas, agora tinha uma maneira de ganhar dinheiro com quase todos os aspectos da identidade digital de uma pessoa – exibindo anúncios, vendendo coisas, processando pagamentos e facilitando serviços como a entrega de alimentos.
Desenvolvido para o mundo fechado de serviços de internet da China, a única falha do WeChat ocorreu fora do Grande Firewall. A Tencent fez um grande esforço de marketing no exterior. Para usuários não chineses, criou um conjunto separado de regras. As contas internacionais não enfrentariam censura direta e os dados seriam armazenados em servidores no exterior.
Mas o WeChat não tinha o mesmo apelo sem os muitos serviços disponíveis apenas na China. Parecia mais simples fora do país, como qualquer outro aplicativo de bate-papo. Os principais usuários no exterior, no fim, seriam os integrantes da diáspora chinesa.
Para notícias e fofocas, a maioria das informações vem de usuários do WeChat dentro da China e se espalha para o mundo. Enquanto as redes sociais têm uma miríade de bolhas que reforçam diferentes tendências, o WeChat é dominado por uma bolha gerenciada por um superfiltro, que se aproxima das narrativas oficiais de propaganda.
"As bolhas no WeChat não têm nada a ver com algoritmos – elas vêm do ecossistema fechado da internet e da censura da China. Isso as torna piores do que as de outras mídias sociais", disse Fang Kecheng, professor da Escola de Jornalismo e Comunicação da Universidade Chinesa de Hong Kong.
Fang notou pela primeira vez as limitações do WeChat em 2018, quando era aluno de pós-graduação na Universidade da Pensilvânia e dava aulas em um curso online de alfabetização em mídia para jovens chineses.
De fala mansa e mergulhado nas câmaras de eco da mídia dos EUA e da China, Fang esperava alcançar a maioria dos chineses curiosos dentro da China. Um grupo inesperado começou a seguir as aulas: imigrantes chineses e expatriados que vivem nos EUA, no Canadá e em outros lugares.
"Parecia óbvio. Como estavam todos fora da China, para eles deveria ser fácil entender a mídia estrangeira. No seu dia a dia, eles a veriam e a leriam. Percebi que não era o caso. Eles estavam fora da China, mas seu ambiente de mídia ainda estava inteiramente lá, suas informações vinham de contas públicas no WeChat", afirmou Fang.
Nos cursos, Fang indicava artigos de agências como a Reuters, além de exercícios que ensinavam os alunos a analisar os textos – para forçá-los a fazer distinção entre comentários de especialistas e fontes primárias.
Em uma aula em 2019, ele alertou sobre as barreiras ao fluxo de informações: "Agora, as paredes estão ficando cada vez mais altas. A capacidade de ver o exterior vai se complicando. Não só na China, mas em grande parte do mundo."