PROTESTO CONTRA O BLOQUEIO DO TELEGRAM, EM ABRIL: o avião de papel é símbolo do serviço de mensagens que conseguiu evitar a censura do governo russo (Tatyana Makeyeva/Reuters)
Da Redação
Publicado em 14 de julho de 2018 às 08h16.
Última atualização em 14 de julho de 2018 às 09h28.
MOSCOU – Fundador e presidente-executivo da quarta maior empresa de software de segurança na internet do mundo, o empresário russo Eugene Kaspersky está acostumado a ter notícias ruins. Desde que deixou de lado a patente de tenente-coronel do exército soviético e se transformou num dos mais astutos criptologistas do planeta, em 1989, ele acompanha a disseminação de vírus pela internet. Todos os dias, toma conhecimento de cavalos de troia, spywares, backdo-ors, keyloggers, rootkits, adwares e outras pragas digitais cada vez mais sofisticadas, criadas para infestar computadores, tablets ou telefones celulares. Mas, desde outubro do ano passado, Kaspersky tem outros problemas para se preocupar: enfrenta a pior crise desde que fundou sua companhia, em 1997, a Kaspersky Lab, uma empresa com 400 milhões de clientes e faturamento anual de 688 milhões de dólares.
A crise começou há cerca de três anos quando hackers a serviço do governo israelense revelaram ter indícios de que a companhia russa espionava mensagens da National Security Agency (NSA), a agência de segurança nacional americana, e estava usando ferramentas para bisbilhotar as atividades de agentes dos Estados Unidos. As autoridades israelenses alertaram o go-verno americano, que começou a investigar o caso.
Já durante a administração do presidente Donald Trump, o incidente serviu como pretexto para banir o uso dos softwares da Kaspersky Lab nos computadores da administração pública. O argumento era de que os programas pode-riam ser usados para fins de espionagem. A companhia negou qualquer envolvimento e recorreu à justiça americana. Em sua defesa, o próprio Kaspersky escreveu textos divulgados pela empresa dizendo que nunca tinha ajudado nenhum governo a praticar ciberespionagem. “Não conheço as verdadeiras razões por trás das ações do governo dos Estados Unidos e estas acusações não têm fundamento”, disse ele a EXAME.
Mas o estrago estava feito. Programas da Kaspersky Lab também foram proscritos pelos governos do Reino Unido e da Holanda. A Best Buy, a maior cadeia de lojas de produtos de tecnologia dos Estados Unidos, decidiu parar de vender os softwares da companhia russa e ofereceu a substituição por produtos equivalentes, de concorrentes como a Symantec e a McAfee, de graça. No final de maio, a rede social Twitter decidiu que não iria mais aceitar anúncios da empresa russa.
Além de continuar negando qualquer envolvimento com os serviços de inteligência russos, a Kaspersky decidiu ir mais fundo para salvar a reputação de sua empresa. No começo de junho, anunciou a criação de uma sucursal em Zurique, na Suíça. Até 2019, serão movidos para os servidores deste novo “centro de transparência” (como ele batizou a nova estrutura) todos os dados de clientes da Kaspersky Lab dos Estados Unidos, de países da Europa Ocidental, além de Austrália, Singapura, Japão e Coreia do Sul. O código-fonte para os novos programas da empresa também será feito de lá. Uma empresa de auditoria independente fiscalizará as operações. Por enquanto, produtos para o Brasil, demais países da América Latina, África, Índia e Ásia, continuarão a ser feitos em Moscou.
O exemplo da Kaspersky é o caso mais visível do que tem acontecido com a indústria de tecnologia na Rússia numa escala ampla. As companhias do meio digital têm vivido tempos turbulentos, causados tanto por questões geopolíticas quanto por problemas econômicos. Nos últimos quatro anos, a moeda russa, o rublo, sofreu uma desvalorização de quase 50% frente ao dólar e ao euro. Para proteger-se da crise, cidadãos e empresas russas enviaram cerca de 103 bilhões de dólares para o exterior.
Tudo começou em 2014 com a retaliação dos Estados Unidos, países da União Europeia, Cana-dá, Austrália e Japão pelo envolvimento da Rússia na anexação da Crimeia, então parte do território da Ucrânia. A situação piorou em julho do ano seguinte, depois que rebeldes dispararam um míssil de origem russa e derrubaram um avião comercial da Malaysian Airlines, no leste ucraniano.
Como efeito colateral, em maio de 2017, um decreto assinado pelo presidente ucraniano, Petro Poroshenko, restringiu as atividades de companhias de tecnologia russas no território ucraniano. Elas foram acusadas de coletar dados de cidadãos da Ucrânia e os transferirem para seus servidores na Rússia e foram expulsas do país. Foi um baque, considerando que o país vizinho possui cerca de 41 milhões de usuários de internet, um dos maiores merca-dos europeus, também utiliza o alfabeto cirílico e tem boa parte de sua população fluente no idioma russo.
Antes do decreto que proibiu os russos de operarem na Ucrânia, cerca de 24 milhões de ucra-nianos – mais da metade da população – usavam serviços oferecidos por sites russos. Quatro deles – VK, Yandex, OK e Mail.ru – estavam entre os cinco mais populares no país. Todos os dias, cerca de 18 milhões de ucranianos visitam a rede social VK (também conhecida como VKontakte), enquanto o buscador Yandex, um concorrente do Google, processava 25 milhões pesquisas por dia no país.
Antes da encrenca, a fatia do Yandex no mercado ucraniano de serviços de busca era de 63% na Ucrânia. Depois dela, caiu para 25%. Ferramentas como um aplicativo de táxi oferecido também pelo Yandex tiveram de ser abandonadas, para o benefício de rivais como o Uber. Com a proibição das redes sociais russas, o Facebook também aproveitou a brecha e cresceu. A rede social americana tinha 42% do mercado antes das sanções. Depois dela, pulou para 67%.
Para compensar a perda de um mercado com 40 milhões de internautas, o Yandex reaproveitou o pessoal da operação ucraniana e correu para conquistar novos mercados. Em maio des-te ano, o Yandex Taxi, divisão da companhia especializada em serviços de mobilidade, iniciou atividades na Estônia e na Letônia – a primeira investida da companhia em países da União Europeia. Em junho, o serviço também começou a operar na Sérvia, que pode servir como porta de entrada para a região dos Balcãs. “Em vez de nos lamentarmos pelas perdas, decidi-mos acelerar”, diz o armênio Musheg Sahakyan, diretor de desenvolvimento internacional da companhia.
Fundada em 1997 por dois matemáticos, Arkady Volozh e Ilya Segalovich, o Yandex é, ao lado do chinês Baidu, um dos raros serviços de busca concorrentes do Google capazes de fazer frente à companhia americana e liderar o mercado de consultas em um país. Depois de ocupar um espaço considerável no mercado russo, o Yandex procurou se expandir para os países vizinhos que faziam parte da antiga União Soviética e usam o alfabeto cirílico, como Cazaquistão, Bielorrússia, Armênia e Uzbequistão.
Nascido no Cazaquistão, Volozh conheceu seu conterrâneo Segalovitch nas salas da Academia de Matemática de Alma Ata, a principal cidade do país. Durante a fase de transição para o capitalismo após o fim da União Soviética, eles tiveram a ideia de fundar a CompTek, uma em-presa especializada em equipamentos de comunicação.
Em 1997, a própria CompTek saiu de cena para que surgisse o Yandex, que fornecia conteúdo e buscas ganhando dinheiro com a venda de anúncios online. A ideia era similar à do Google: usar estatísticas de visitas dos sites com domínios .su (usado na antiga União Soviética) e .ru (que passou a designar as páginas de internet da Rússia).
No início, o sucesso do Yandex se deveu à sua habilidade para dominar a complexidade do idioma russo no meio digital. Além de um alfabeto diferente dos caracteres latinos, a língua do país tem uma morfologia gramatical recheada de sufixos e declinações, o que era uma barreira eficiente para conter o avanço das empresas estrangeiras. Mesmo o Google, que tem entre seus sócios Sergey Brin, nascido em Moscou e fluente em russo, não se atentou para o fato de que, para uma pesquisa em russo seja precisa, é preciso levar em conta declinações de nomes e adjetivos e conjugações verbais mais complexas. O resultado é que em países em que o idi-oma prevalece, o Yandex domina. No primeiro trimestre de 2018, seu buscador detinha 56% das pesquisas.
Ajudou um bocado o fato de o Yandex não se meter em assuntos polêmicos que desagradem o governo russo e o presidente Vladimir Putin. Desde 2014, a empresa publica nas suas páginas apenas notícias de fontes aprovadas pelo Roskomnazador, órgão do governo russo que controla endereços IP, URLs e nomes de domínio. Em setembro do ano passado, o presidente visitou os escritórios do Yandex.
De menos de 2 milhões em 1999, o número de usuários da rede na Rússia pulou para quase 110 milhões no final de 2017. Apesar da rápida disseminação, demorou para as autoridades locais se interessarem pelo assunto. Até 2012, ano em que aconteceram protestos contra os resultados das eleições parlamentares e contra Putin, não havia nenhuma lei que restringisse o acesso no país.
A partir daí, um arsenal de leis foi adotado para controlar o livre fluxo de informações. Uma das principais medidas foi a criação da agência Roskomnadzor, com a finalidade de cuidar do assunto. “O governo russo entendeu que a internet era forte o suficiente para concorrer com as notícias de TV e a sua propaganda oficial”, disse o russo Artem Kozyuk, executivo da Ros-KomSvoboda, organização não-governamental que monitora a liberdade de expressão na in-ternet russa.
O Parlamento russo aprovou leis mais rígidas que aumentaram os mecanismos de censura. Em 2015, com base nesta legislação, 216 processos foram abertos por “extremismo”, vinte vezes mais do que oito anos antes. Sites como o LinkedIn e aplicativos como o WeChat foram bloqueados ao se recusar a cumprir com as novas regras.
As normas ficaram ainda mais duras com a obrigação de os provedores de internet guardarem também conteúdo gerado pelos clientes, incluindo mensagens. Foi com base nestas leis, que no final de abril, as autoridades russas anunciaram que o aplicativo Telegram (uma espécie de WhatsApp russo) estava proibido e ficaria inacessível no país. Só que não.
“Por sete dias a Rússia tentou banir o Telegram, bloqueando 18 milhões de endereços IP, mas fomos capazes de sobreviver à mais agressiva tentativa de censura da internet da história”, escreveu em sua página no Twitter, Pavel Durov, o criador do aplicativo. A estratégia do go-verno russo não deu certo porque Durov começou a usar as nuvens de outras empresas, como Google, Amazon, Apple e Microsoft para continuar funcionando.
Hoje exilado em Dubai, depois de adquirir a cidadania de Saint Kitts e Nevis (após doar 250 000 dólares ao governo da pequena ilha no Caribe), Durov é uma lenda entre as empresas de tec-nologia russas. Ele é o criador da mais popular rede social russa, a VK. Como aconteceu com o Facebook de Mark Zuckerberg, a rede social criada por Durov nasceu nos tempos em que ele frequentava a faculdade de Tradução e Filologia em Inglês na Universidade de São Petersbur-go.
Junto com o irmão Nikolai, programador como ele, Durov criou o SPBGU.ru, um fórum para ele e estudantes da instituição compartilharem suas experiências e impressões. Em 2006, a rede social foi rebatizada como VKontakte e tornou-se a maior do país, com 240 milhões de usuários. Mesmo com tanto sucesso, a coisa começou a engrossar para ele em 2011, quando recusou-se a bloquear a página de Alexei Navalny, um dos principais opositores de Putin.
Em janeiro de 2014, Durov topou vender 12% das ações da rede social para Ivan Tavarin, presidente da operadora de telefonia celular Megafon, que é controlada pelo bilionário Alisher Usmanov, um empresário e oligarca próximo de Putin. Tavarin, por sua vez, vendeu as ações logo depois para grupo de internet Mail.ru, uma empresa que já tinha participação no VK e acabou consolidando o controle acionário sobre a rede social. O Mail.ru já era dono da OK e da Moi Mir, que eram respectivamente a segunda e terceira maiores redes sociais da Rússia. Três meses depois, o fundador Durov foi sacado da empresa. “Fiquei sabendo desta misteriosa de-missão pela imprensa”, escreveu ele. Como uma espécie de prêmio de consolação, recebeu 260 milhões de dólares pelas suas ações na companhia e abriu o Telegram.
Enquanto Durov e o Telegram foram perseguidos, empresas de internet que se mantiveram neutras se deram bem. Em 2001, o Yandex contava com algumas dezenas de funcionários. No final de 2017, tinha duas sedes e 7.445 empregados. Desde o início, sua organização liberal contrasta com a de um país com temperamento formal e regras rígidas. Os edifícios do Yandex e do Yandex Táxi estão situados em bairro de escritórios com prédios modernos, perto do rio Moscou, têm ambientes coloridos e descontraídos. Neste lugar, onde há mesas de xadrez no terraço e não há código de vestimenta, o Google tem um concorrente, que, como ele, está projetando carros autônomos e inventou um assistente de voz para língua russa tão hábil co-mo o Siri, da Apple.
Em maio de 2011, quando lançou suas ações na Nasdaq, a bolsa de empresas de tecnologia, em Nova York, o Yandex conseguiu levantar 1,3 bilhão de dólares, então o maior IPO desde o do Google, em 2004. De lá para cá, a empresa criou novos serviços que a tornaram não apenas uma espécie de Google da Rússia, mas também o Uber russo, a Amazon russa e por aí vai. Em fevereiro deste ano o Yandex Taxi concluiu a fusão de suas operações com o Uber, antes sua rival no mercado russo.
As duas passaram a operar juntas em 187 cidades da Rússia, Cazaquistão, Bielorrússia, Azerbai-jão, Armênia e Geórgia. “Nossos algoritmos, mapas e aplicativos de navegação eram mais efi-cientes e nossa companhia tem recursos abundantes para investir”, diz Musheg Sahakyan, do Yandex Taxi. Para ficar com uma fatia de 36,6% do novo negócio, o Uber topou pagar 225 milhões de dólares. O Yandex colocou 100 milhões de dólares no negócio. “Esta parceria abriu a oportunidade de novos serviços para a nossa empresa, como a entrega de comida”, diz Sahakyan.
Mais dinheiro entrou no caixa do Yandex em abril deste ano, quando o Sberbank, maior banco russo (e cujo governo federal detém 50,1% das ações), investiu 500 milhões de dólares e associou-se à empresa para criar um novo aplicativo de compras pela internet. Segundo um estudo da organização não-governamental holandesa, Ecommerce Fondation, nos últimos quatro anos, a quantidade de russos que adquire serviços e produtos pela internet aumentou 2,6 ve-zes. Em 2017, foram 62,5 milhões de pessoas, que gastaram em média 626 euros cada em compras.
O exemplo do Yandex mostra que dá para ter uma empresa de internet promissora na Rússia e ganhar muito dinheiro. Basta não se envolver em disputas geopolíticas, nem provocar o governo.