O avião-robô israelense Heron será usado pela Polícia Federal brasileira (Reynaldo Ramon / USAF)
Da Redação
Publicado em 22 de agosto de 2011 às 11h34.
São Paulo -- Rio Madeira, em Rondônia. A cada mês, um pequeno avião monitora uma área de 60 quilômetros quadrados no reservatório da usina hidrelétrica de Jirau, em construção desde 2009 na Amazônia. Dentro da aeronave Apoena 1000 não há ninguém. Uma máquina fotográfica digital registra as imagens da região, enquanto cinco câmeras de vídeo, que transmitem em tempo real, permitem o acompanhamento do trabalho a distância por uma central, no solo. O avião precisa de assistência humana só na decolagem e no pouso, feitos por controle remoto. Ao atingir 200 metros de altitude, o piloto automático assume o comando, eleva o equipamento a 1 500 metros e cumpre a rota programada.
Aparelhos que misturam as características de um avião com sistemas inteligentes e automatizados de controle estão mudando a face da aeronáutica. Verdadeiros robôs capazes de voar, eles deram início a uma era em que os seres humanos têm papel coadjuvante no céu. Com tamanhos que podem variar das dimensões de um aeromodelo às de uma aeronave tradicional, os veículos aéreos não tripulados, ou Vants, começam a se popularizar. Muitos modelos podem voar por dezenas de horas seguidas — um stress impensável para um piloto — e trazem modernos sensores de captação de imagem. Seu uso é muito mais barato que o de um satélite.
Na Amazônia, o Apoena 1000, desenvolvido pela XMobots, de São Paulo, em breve terá a companhia do Heron I, da Israel Aerospace Industries (IAI). Duas unidades do modelo importado foram compradas pela Polícia Federal. O Heron I vem equipado com sensores para observação diurna e noturna e com um radar tipo SAR, capaz de fazer imagens em alta resolução sob qualquer condição climática.
Com 16,6 metros de uma asa à outra, o Vant funciona por até 37 horas. Detectar atividades ilegais de desmatamento não será sua única tarefa. A PF adquiriu dois aparelhos com o objetivo de usá-los em qualquer parte do país, em operações tão diversas como a segurança de grandes eventos, o combate ao narcotráfico ou o monitoramento da chamada Tríplice Fronteira.
Afeganistão e Iraque
O interesse por aeronaves não tripuladas explodiu na última década. Com as guerras no Afeganistão e no Iraque, os Estados Unidos intensificaram o emprego dos aparelhos em ações militares. Como não levam pilotos, não há baixas se o equipamento for abatido. No Iraque, aviões-robôs equipados com câmeras de visão térmica sobrevoam vastas regiões, com o objetivo de identificar suspeitos que instalam minas em estradas.
Antes da operação que resultou, em maio, na morte de Osama bin Laden, líder da organização terrorista Al-Qaeda, as Forças Armadas americanas usaram no Paquistão uma aeronave invisível a radares, o RQ-170 Sentinel. Também conhecido como a Besta de Kandahar, seu papel teria sido o de monitorar, em múltiplas missões, a mansão onde Bin Laden vivia, coletando informações sobre o complexo e grampeando conversas, sem despertar suspeitas.
As operações militares têm impulsionado o emprego de aviões-robôs ao redor do mundo. O mercado de Vants deve crescer 155% até 2020, de acordo com relatório publicado este ano pela consultoria Tealgroup, especializada nas áreas aeroespacial e de defesa. Os 5,9 bilhões de dólares destinados a pesquisa e desenvolvimento e também à comercialização de aeronaves não tripuladas em 2011 devem saltar para 15,1 bilhões de dólares em 2020. No Brasil, o uso desse tipo de avião ainda é restrito, mas deve se ampliar por conta da Copa do Mundo, em 2014, e dos Jogos Olímpicos no Rio, em 2016. Pelo menos 13 empresas já vendem modelos por aqui ou pretendem fazer isso em breve.
Uma das primeiras missões com aviões não tripulados das Forças Armadas brasileiras ocorreu em 2007, de modo improvisado. Na época, as tropas que integravam as forças de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti adaptaram câmeras de vídeo em aeromodelos que sobrevoaram a favela Citè Soleil, na capital, Porto Príncipe. O local abrigava um grupo rebelde. “Embora não possuíssem grande autonomia de voo ou sistemas de GPS e de piloto automático, os aviões fizeram dezenas de missões de identificação de atiradores, barricadas e fossos antitanque”, afirma Geraldo Diniz Branco, gerente de projetos do Departamento de Ciência e Tecnologia Industrial do Ministério da Defesa.
Projeto Acauã
Órgãos militares foram pioneiros no desenvolvimento de um veículo aéreo não tripulado no Brasil. Entre 1984 e 1988, o projeto Acauã procurou criar um sistema de controle de Vant e também um alvo móvel para o míssil Piranha. Foram construídos quatro protótipos, operados de modo rudimentar, por radiocontrole. Por falta de verbas, a iniciativa foi cancelada. A idéia só foi retomada em 2005. O Ministério da Defesa encomendou à Finep a criação de um sistema de navegação e controle, com o objetivo de dominar a tecnologia adotada em veículos aéreos não tripulados. O pedido resultou no Projeto Vant, concluído no ano passado.
Além de ganharem um piloto automático e de passarem a voar de modo autônomo, os Acauãs — agora readaptados — começaram a se comunicar com uma estação de solo. O software desenvolvido segue padrões internacionais de certificação. “No avião, não se permite ter uma tela azul. Isso levaria a um acidente”, diz Flavio Araripe d’Oliveira, coordenador do projeto e engenheiro do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA) do Instituto de Aeronáutica e Espaço.
Os pesquisadores agora se dedicam à criação de um sistema capaz de permitir o pouso e a decolagem automatizados, que deve levar dois anos para ficar pronto. “É mais fácil fazer robôs aéreos do que terrestres, porque eles não precisam identificar que estão em uma estrada e desviar de obstáculos em solo”, afirma Oliveira.
Essas tecnologias vão equipar um avião não tripulado de médio porte, o Falcão, que está sendo projetado pela Avibras, em São José dos Campos (SP). A empresa prevê que o protótipo faça o voo inaugural ainda neste semestre e que as primeiras unidades do modelo comecem a ser vendidas em 2013. Provavelmente não haveria tempo para seu uso na Copa do Mundo, mas sim na Olimpíada. “Dois ou três aviões poderiam fazer a vigilância de todo o Rio de Janeiro, com a cidade dividida em setores”, afirma Renato Tovar, gerente do Projeto Vant na Avibras. Mas a disputa por esse serviço vai ser dura.
Legião estrangeira
Especializadas há décadas na produção de aviões não tripulados, empresas israelenses já começam a se instalar no Brasil e a vender seus produtos. Além da IAI, fabricante do Heron I, a Elbit, representada pela AEL Sistemas, produz Vants capazes de competir com o Falcão. Duas unidades de um dos seus principais modelos, o Hermes 450, estão sendo usadas pela Força Aérea em missões de reconhecimento em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A experiência dos israelenses na área começou no início dos anos 1970, na Guerra do Yom Kippur. Não por acaso, hoje o país tem algumas das principais indústrias de aeronaves-robôs do mundo.
O trabalho conjunto com uma empresa israelense foi a solução encontrada pela Embraer para dar seus primeiros passos nesse mercado. Em abril, a companhia assinou um acordo com a AEL e, consequentemente, com a Elbit, que deve resultar na criação de uma nova companhia. Também firmou um termo de cooperação com a brasileira Santos Lab, para a fabricação de veículos aéreos automatizados de pequenas dimensões. “Nossa ideia é exportar. Só o Brasil não viabilizaria um negócio”, diz Gilberto Buffara Júnior, diretor da Santos Lab. A empresa, localizada no Rio de Janeiro, produz o Carcará, usado pelo Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha em missões de reconhecimento. Desde 2004, foram vendidas 40 unidades do aparelho — três delas para a ONU.
Por adotar tecnologia de ponta, um sistema completo de aviação não tripulada de grande porte pode custar mais de 100 milhões de dólares — valor um pouco mais alto que o de um A320, da Airbus, que transporta até 180 passageiros, e quase o dobro do preço de um caça F-18 Super Hornet, da Boeing. Mas, como os modelos mais caros chegam a voar mais de 30 horas seguidas, um Vant consegue fazer o trabalho de quatro aviões normais. “Isso não significa que os pilotos não serão mais necessários. Haverá missões tripuladas, não tripuladas e mistas. A automatização virá para apoiar missões repetitivas, desgastantes ou muito perigosas”, diz Geraldo Branco, do Ministério da Defesa.
Vigilância no campo
Uma das saídas encontradas pelas empresas brasileiras para disputar esse mercado está em produzir modelos mais baratos, com tecnologia nacional. Fabricado pela AGX, de São Carlos, no interior de São Paulo, em parceria com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Sistemas Embarcados Críticos (INCT-SEC), o Tiriba custa entre 30 mil e 60 mil reais. “Alguns componentes eletrônicos não são feitos aqui, mas o software e o design são 100% nacionais”, diz Adriano Kancelkis, diretor da AGX. O sistema de operação e controle do aparelho foi criado por pesquisadores do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (USP).
No lugar de priorizar o mercado militar, a AGX aposta em aplicações civis ou de segurança para o Tiriba. O aparelho pode ser usado, por exemplo, no agronegócio, uma vez que consegue fotografar plantações. As imagens permitem medir desde a quantidade de plantas e ervas daninhas até o volume de solo desocupado. É possível ainda monitorar áreas de risco, verificar as condições de linhas de transmissão de energia elétrica ou detectar crimes ambientais. A Polícia Militar Ambiental do estado de São Paulo estuda o uso da aeronave como apoio na fiscalização, por meio de um programa experimental previsto para durar dois anos.
Embora se pareça com um aeromodelo, o Tiriba tem piloto automático e só precisa de ajuda para decolagem e pouso. O aparelho consegue tirar fotos com altitude nivelada a partir de uma rota programada, sem que a câmera provoque interferência nos sistemas de bordo e faça o modelo cair. “Ao apertar um botão, você gera 30 mil linhas de código”, afirma o professor Onofre Trindade Junior, da USP, um dos pesquisadores responsáveis pelo desenvolvimento da aeronave. Outro modelo, criado por ele em conjunto com Embrapa e AGX, o Arara, é lançado do alto de um carro.
Nos próximos meses, a AGX vai se fundir com a XMobots, que foi criada por ex-alunos da Escola Politécnica da USP. “Temos trabalhado em projetos confidenciais nas áreas de energia e monitoramento ambiental”, diz Giovani Amianti, sócio da companhia. A empresa trabalha ainda para fazer o Apoena 1000 voar na Amazônia a uma distância de até 60 quilômetros da central de controle, sem perder a comunicação. Vants também serão usados em aplicações civis pela FITec, um centro tecnológico sem fins lucrativos com sede no Recife (PE). Em parceria com a companhia elétrica Cemig, de Minas Gerais, está desenvolvendo o FITuav. O avião pode inspecionar linhas de transmissão, mas a ideia é cobrar pelo serviço em vez de vender o sistema.
Obstáculos no céu
Por enquanto, as aplicações civis prevêem o uso dos aviões não tripulados em espaços abertos e distantes das áreas urbanas, por meio de uma autorização temporária emitida pelo Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea). A utilização em cidades ainda é restrita em todo o mundo. “A regulamentação é a maior barreira. Até que isso aconteça, vamos operar no mercado civil com vários receios”, diz Nei Brasil, presidente da Flight Technologies, de São José dos Campos. Ele explica que a tecnologia já está madura, mas há incerteza sobre como os aviões-robôs vão se comportar em ambientes habitados. Os aparelhos podem ser uma ameaça ao tráfego aéreo e à população em caso de pane, por exemplo.
Quando esse nó for desfeito, equipamentos muito pequenos, como o Gyro 500, da Gyrofly, de São José dos Campos, poderão se tornar comuns no céu de grandes cidades. Com quatro hélices, o Gyro 500, ainda um protótipo, servirá para registrar imagens em baixa altitude. “Queremos oferecê-lo para a polícia fazer monitoramento aéreo. É uma câmera estável que voa”, diz Gustavo Penedo Barbosa de Melo, sócio da Gyrofly. Como se trata de um mini-helicóptero, o aparelho pode ficar parado no ar. Emissoras de TV poderiam adotá-lo para tomadas aéreas.
A tendência é que os veículos aéreos não tripulados tornem-se tão comuns quanto os aviões conduzidos por seres humanos. A tecnologia que existe hoje permite a eliminação dos pilotos nas aeronaves tradicionais, mas talvez a humanidade ainda não esteja preparada para uma mudança tão radical. Como mostrou o acidente com o voo 447, da Air France, falhas com sistemas automatizados podem gerar tragédias. Mas nada impede que, dentro de algumas décadas, os Vants se tornem ainda mais seguros do que os modelos usados na aviação tradicional. Você voaria num robô? Pode começar a pensar nisso.