Demi Lovato: Em reality show musical, candidato rebateu crítica da cantora dizendo que ela usa auto-tune (Christopher Polk/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 16 de setembro de 2012 às 19h18.
São Paulo - Nesta semana, a cantora americana Demi Lovato foi espinafrada por um participante do reality show musical X Factor, do qual é jurada. Depois de receber críticas pesadas do júri, ele descarregou a sua ira na ex-estrela da Disney, de quem ouviu que o sonho de cantar, infelizmente, não é para todos. “Sim, é por isso que você usa Auto-Tune”, rebateu o homem. Hoje onipresente nos estúdios de gravação, o Auto-Tune é um programa que permite tornar afinada qualquer cantoria. Ele possibilita, assim, uma espécie de estelionato musical: gente incapaz de acertar uma nota pode, de repente, se apresentar como cantor. Mas não é para sair por aí queimando caixas de Auto-Tune. Produtores consultados pelo site de VEJA garantem: hoje, quem não usa nenhum tipo de correção vocal é exceção. E isso não é necessariamente ruim. O programa pode, sim, ser um aliado da criatividade.
A primeira coisa que se deve saber a respeito do Auto-Tune é que o software pode ser usado de dois jeitos. Inicialmente criado para corrigir pequenos defeitos na voz de um artista, como uma espécie de Photoshop sonoro, o programa passou a ser usado para distorcer e dar um revestimento robótico e metálico aos vocais, criando um efeito que é usado até hoje. Uma das canções que mais ajudaram a popularizar esse uso da ferramenta foi Believe, lançada por Cher em 1998. Na mesma época, reforçando a proposta, o duo eletrônico Daft Punk começou a fazer sucesso com músicas que utilizavam vocoder, outro instrumento que robotiza a voz. Hoje, também se usa o Auto-Tune para produzir efeito cômico numa canção, mas a principal utilização do programa continua sendo estética. O programa e o som metalizado que produz são marcas da geração 2000.
“O mais legal do Auto-Tune é justamente ser explorado ao máximo para criar aquele efeito de voz metalizada, como se você estivesse cantando através de um cano de PVC”, diz Pedro D’Eyrot, integrante do Bonde do Rolê, grupo que mistura funk e pop, e um dos produtores da banda Uó, que surgiu fazendo releituras bregas de músicas pop. “Tem artista que, sem Auto-Tune, não teria carreira. O uso do software deveria vir discriminado na embalagem do CD”, afirma o produtor João Marcello Bôscoli, filho de uma das vozes mais célebres da história da música brasileira, a cantora Elis Regina.
Outro ponto a ser esclarecido sobre o Auto-Tune é que, embora o programa, lançado no começo dos anos 1990 pela empresa americana Antares Technologies, tenha se tornado sinônimo de programa de afinação (assim como Bombril se tornou sinônimo de palha de aço), ele não é o único calibrador de voz, nem o mais usado hoje. A maioria dos músicos e produtores consultados diz usar o Melodyne, desenvolvido pela alemã Celemony em 2001.
Excesso
Capaz de deixar redondas faixas que, sem ele, sairiam do estúdio cobertas de arestas, o Auto-Tune pode ser um grande aliado dos músicos. O problema é que usar o programa tornou-se regra, e não exceção. E toda homogeneização, em arte, é um perigo - ou pelo menos uma chatice. Para se ter uma ideia, no atual top 10 da Billboard, a lista de músicas mais tocadas nos Estados Unidos, todas as músicas usam Auto-Tune. E, em sete delas, o uso é excessivo, com a finalidade de distorcer a voz do artista, não somente afiná-la, caso de One More Night, do Maroon 5, Blow Me (One Last Kiss), de P!nk, e Call Me Maybe, de Carly Rae Jepsen, uma das cantoras que, de tão dependente do recurso, talvez nem existisse sem ele.
“Uso o Auto-Tune para acertar finais de frases melódicas e pequenos detalhes. Mas o uso excessivo de alguns artistas e produtores têm deixado as interpretações sem emoção”, diz Rick Bonadio, produtor de bandas como NX Zero. “A voz perde a naturalidade”, corrobora o DJ e produtor João Brasil, conhecido por seus mashups (mistura de duas músicas).
Além de ser usado em estúdio, o Auto-Tune também tem sido levado para os palcos. Diferentemente do playback, em que uma gravação prévia da música toca ao fundo e o artista apenas a dubla, o “Photoshop da voz” é difícil de ser percebido ao vivo. Mas, por outro lado, é um truque sem graça. “Se você está fazendo uma coisa que qualquer um pode fazer, não tem porque estar em cima de um palco, não é mesmo?”, diz Bôscoli.
Por essas e outras, o programa tem feito vários inimigos nos últimos anos. Um dos mais notáveis é o rapper Jay-Z, que em 2009 lançou uma música chamada D.O.A. (Death of Auto-Tune), na qual proclama a “morte” do programa. Na mesma época, outros artistas apoiaram a causa, como Christina Aguilera e o cantor Michael Bublé, que, ao lado de Adele, estão entre os que não usam o programa e não precisam dele. Embora a música fosse mais uma provocação de Jay-Z ao pop sem graça produzido nos últimos anos, o cantor também é um dos adeptos do programa, e, mais tarde, se associaria a outro rapper, esse sim um amante confesso do software: Kanye West.
"O Auto-Tune é como qualquer outra ferramenta para mim. Alguns produtores parecem não conseguirem trabalhar sem isso, mas existe todo um mercado para isso", diz David Kahne, produtor que já trabalhou com Paul McCartney e Lana Del Rey. "O Auto-Tune é uma ferramenta do mal, mas necessária. Quando eu a uso, tento fazer isso de forma sutil, afinal, não quero que o ouvinte perceba. Com cantores como Kurt Vile, Jay Farrar, J Mascis e Thurston Moore, eu nunca precisei. Geralmente, eles cantam de um jeito muito bonito", afirma John Agnello, que já produziu bandas como Dinosaur Jr. e Sonic Youth.
Diferentemente de Bôscoli e Jay-Z, Mauricio Tagliari, que assina a produção dos discos mais recentes de Nina Becker e Rômulo Fróes e compõe para o cinema e para a publicidade, defende o uso do afinador ao vivo. “Num show, o cantor pode estar com problemas de retorno, sem conseguir ouvir a si mesmo. A pessoa canta bem, mas está numa situação adversa. Aí, o Auto-Tune é válido.”
Auto-Tune no Brasil
No país, muitos artistas declaram não usar programas para correção de voz, mas ser a favor do software. “Os erros e ‘desafinações’ são parte do charme e, às vezes, um take sai mesmo perfeito”, diz Tomaz Paoliello, guitarrista do grupo Garotas Suecas. Opinião similar tem a cantora Lulina, que diz “curtir as imperfeições da gravação”, mas afirma não ter objeção caso seus produtores queiram usar. “Eles têm mais conhecimento técnico do que eu.” Exceção entre seus colegas, a paraense Gaby Amarantos, voz mais proeminente da cena de tecnobrega, admite usar o programa. “Uso para afinar vocais muito agudos para mim. Acredito que todo recurso é bem vindo, desde que utilizado na medida certa.”
Muitos artistas, no entanto, usam Auto-Tune e não sabem, conta o produtor Missionário José, que trabalha com vários nomes da cena independente. “Alguns artistas não gostam de saber que foram ‘afinados’”, diz José, que não revela nomes de quem já afinou a voz. “Isso normalmente é uma espécie de ‘segredo de Estado’.”
Interessante na proposta, mas infelizmente fraco na execução, Recanto, o disco de Gal Costa que Caetano Veloso produziu com Auto-Tune, tem um verso que vale tanto para adeptos exagerados quanto para inimigos radicais do software. “Auto-Tune não basta para fazer o canto andar.” Em outras palavras, não é preciso temê-lo. Mas se o artista não pode viver sem essa muleta, talvez seja o caso de mudar de profissão.