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A malária já não é uma doença negligenciada, diz cientista

Luiz Hildebrando Pereira da Silva explica como seus estudos poderão contribuir para a eliminação quase total da doença na Amazônia nos próximos anos


	Malária: relação do mosquito com populações de cada local é diferente e isso tem impacto na transmissão
 (Getty Images)

Malária: relação do mosquito com populações de cada local é diferente e isso tem impacto na transmissão (Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 10 de junho de 2014 às 11h08.

São Paulo – Referência mundial no estudo de doenças tropicais, o parasitologista Luiz Hildebrando Pereira da Silva foi homenageado com o Prêmio Fundação Conrado Wessel (FCW), um dos mais tradicionais da área de ciência no Brasil.

Ao lado de José Rodrigues Coura (do Laboratório de Doenças Parasitárias do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro), eleito na categoria Medicina, e de Niède Guidon (da Fundação Museu do Homem Americano, no Piauí), escolhida na categoria Cultura, Hildebrando foi selecionado para o prêmio na categoria Ciência, entre 400 personalidades brasileiras que se destacam em suas respectivas áreas de atuação. As indicações foram feitas por instituições de ensino e pesquisa de todo o Brasil a convite da FCW.

Os homenageados foram escolhidos pelo conjunto de suas obras e por desenvolverem trabalhos de caráter social. A cerimônia de entrega da 12ª edição do Prêmio FCW de Ciência, Cultura e Medicina foi realizada na Sala São Paulo, na capital paulista, na segunda-feira (09/06).

Formado em Medicina pela Universidade de São Paulo (USP) em 1953, Hildebrando foi diretor das unidades de Diferenciação Celular e de Parasitologia Experimental do Instituto Pasteur, em Paris.

Após algumas tentativas frustradas de voltar a trabalhar no Brasil durante a ditadura militar, retornou ao país em 1998, após 32 anos de exílio, e fixou residência em Porto Velho (RO), onde ajudou a montar um grupo de pesquisa que vem alcançando resultados promissores no combate à malária.

À frente do Instituto de Patologias Tropicais de Rondônia (Ipepatro), órgão atualmente associado à Fiocruz Rondônia, coordena pesquisas voltadas a descobrir novas drogas contra leishmaniose, malária e outras parasitoses.

Coordena ainda estudos para o desenvolvimento de anticorpos monoclonais usados no diagnóstico e tratamento de doenças como gripe, raiva, hantavirose e febre amarela e na soroterapia contra veneno de serpentes.

Em entrevista à Agência FAPESP, Hildebrando contou detalhes sobre os principais avanços obtidos no combate a doenças tropicais, especialmente a malária, desde seu retorno ao Brasil.

A que o senhor atribui sua indicação ao prêmio da FCW? 

Luiz Hildebrando Pereira da Silva – Acredito que seja ao conjunto do trabalho que temos desenvolvido em Rondônia desde que retornei ao Brasil, em 1998, principalmente no combate à malária. Quando voltei, decidi me instalar na Amazônia, pois considero que há um problema a ser resolvido na região: promover o desenvolvimento socioeconômico da população e, ao mesmo tempo, promover a preservação ambiental. Desde então, conseguimos reunir um excelente time de especialistas que tem permitido conquistas importantes na luta contra a malária.

Como foi o seu retorno ao Brasil e a formação desse grupo de pesquisa?

Hildebrando – Quando ainda dirigia a Unidade de Parasitologia Experimental do Pasteur, havia iniciado certas colaborações com a USP, em Rondônia, por meio do professor Erney Camargo. Nós percorremos toda a Amazônia para descobrir o local em que haveria mais interesse de trabalhar e escolhemos Rondônia por ter altíssima incidência de malária e instalações físicas favoráveis, como o Hospital Cemetron, de Porto Velho.

Foi então estabelecida uma colaboração entre o Instituto Pasteur, a USP e a Secretaria de Estado da Saúde. Alguns anos antes, havia sido criado no interior de Rondônia, pelo doutor Mauro Tada, o Centro de Pesquisa de Medicina Tropical (Cepem). O objetivo inicial do Cepem era testar uma vacina colombiana contra malária.

Depois, o centro foi transferido para Porto Velho e ficou associado à Secretaria de Estado da Saúde. Em torno desse núcleo inicial, formou-se um primeiro grupo de pesquisa que foi reforçado quando eu me aposentei no Pasteur, em 1997, e fixei residência em Porto Velho. Aposentei-me da USP em 1998 e consegui bolsa do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] para vir trabalhar em Rondônia.

Tada e eu ocupamos uma ala do Hospital Cemetron, onde montamos os laboratórios do Cepem destinados às pesquisas sobre malária. Trabalhávamos com recursos do CNPq e do Ministério da Saúde.

Em 2001, montamos, com o apoio do Ministério da Saúde, o Instituto de Pesquisa em Patologias Tropicais (Ipepatro), uma instituição privada sem fins lucrativos, uma ONG ligada ao Ministério da Saúde e ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. Em 2010, o Ipepatro foi associado à Fiocruz Rondônia.

Quais os principais avanços alcançados pelo grupo nesses anos?

Hildebrando – O primeiro foi mostrar que há tipos diferentes de malária. Um que afeta as populações ribeirinhas e outro, os moradores de assentamentos agrícolas. A relação do mosquito transmissor com as populações de cada local é diferente e isso tem impacto no padrão de transmissão.

Além disso, mostramos que os vetores da malária no Brasil são diferentes dos existentes na África, onde a doença está presente desde a origem do homem.

Na África, os principais vetores são o Anopheles gambiae e o Anopheles funestus. Em razão da coevolução com o homem, os mosquitos africanos adquiriram hábitos estritamente domésticos e se comportam de forma similar à do mosquito transmissor da dengue. Já na Amazônia, a chegada do homem é mais recente.

Aqui, o principal vetor é o Anopheles darlingi, que durante milhões de anos sobreviveu alimentando-se de aves, roedores e outros animais. Quando o homem chegou e transformou a natureza, o mosquito passou a contar com uma nova e abundante fonte de alimento – o que favoreceu o aumento da população anofelina principalmente nas proximidades de grandes coleções de água.

Esse processo torna o padrão de transmissão na Amazônia completamente diferente do africano e requer medidas diferentes de controle do vetor. Na Amazônia, a atividade do A. darlingi é tanto extradomiciliar como intradomiciliar e peridomiciliar [no entorno da casa]. Mas verificamos que a transmissão da malária é essencialmente intradomiciliar. Mostramos, portanto, que medidas como a fumigação com inseticidas tinham pouca eficácia no controle do vetor.

Qual seria a melhor forma de controle da doença no caso brasileiro?

Hildebrando – Nossa terceira contribuição relevante no combate à malária foi mostrar a importância das recaídas – nos casos de malária causados pelo parasita Plasmodium vivax – e dos casos assintomáticos na manutenção da transmissão da doença.

Enquanto o parasita Plasmodium falciparum tem apenas um ciclo reprodutivo no fígado e depois segue para os glóbulos vermelhos do sangue [fase em que os sintomas se manifestam e em que o mosquito pode se contaminar ao picar o humano infectado ], o P. vivax produz formas parasitárias que permanecem por mais tempo em sua forma hepática.

Depois de passada a fase clínica da doença, o parasita pode voltar a sair do fígado para o sangue e o paciente tem uma recaída, ou seja, torna-se novamente contaminante. Com base nesse conhecimento, estamos testando uma estratégia de controle conhecida como Selective Intermitent Preventive Treatment (SIPT), que tem reduzindo significativamente os níveis de malária nas localidades-piloto.

Como funciona essa estratégia e onde ela está sendo testada?

Hildebrando – O ensaio está sendo feito no município de Candeias do Jamari – único de Rondônia que entre 2010 e 2011 apresentava um AIP [ anual parasite index] superior a 200, com alta incidência de P. vivax resultante, essencialmente, das recaídas.

Estamos trabalhando nessa área com apoio da Secretaria de Estado da Saúde e do Ministério da Saúde e conseguimos reduzir o AIP para 82 em 2013. A estratégia consiste em, após o tratamento da fase clínica com cloroquina, continuar administrando a droga em dose única semanal durante 12 semanas, em dosagem menor, para evitar a recaída.

A dose usada na prevenção da recaída é a mesma indicada para a prevenção de malária no caso de mulheres grávidas, por exemplo. Além disso, a nossa equipe do Cepem, sob coordenação dos doutores Mauro Tada e Dhelio Batista, está promovendo um ensaio clínico com uma nova droga chamada tafenoquine, do laboratório GSK [Glaxo Smith Kline], capaz de eliminar a forma hepática do P. vivax com dose única.

Outro ensaio clínico com essa droga está sendo conduzido em Manaus, na Fundação de Medicina Tropical. Se os resultados de ambos os ensaios forem positivos, poderemos melhorar muito a prevenção das recaídas, pois o método SIPT usado até agora exige tratamento preventivo por várias semanas.

Como é o tratamento padrão atualmente e de que forma essas novas estratégias podem contribuir para a redução do número de casos?

Hildebrando – Hoje o paciente infectado pelo P. vivax é tratado durante três dias com cloroquina e, nos 14 dias seguintes, deve tomar primaquina. Mas a maioria dos pacientes não completa o tratamento, pois a primaquina é uma droga bastante tóxica, com muitos efeitos colaterais.

Geralmente, os pacientes param de tomar o medicamento quando os sintomas da malária desaparecem com a cloroquina e, então, ocorrem as recaídas.

Se a tafenoquine se comprovar segura do ponto de vista de efeitos colaterais, pois eficaz contra o parasita ela já se mostrou, será possível evitar as recaídas com um tratamento de dose única. A campanha contra a malária, que vinha apenas conseguindo controlar o número de casos, poderia evoluir para, senão uma erradicação, ao menos uma eliminação quase total da doença na Amazônia.

E os casos causados pelo P. falciparum?

Hildebrando – Esses estão diminuindo consideravelmente graças ao advento da droga artemisinina. Há regiões que quase não há casos de malária falciparum. Está até difícil realizar pesquisas com esse parasita

Com base nesse panorama promissor, a malária ainda pode ser considerada uma doença negligenciada?

Hildebrando – Não mais. Mesmo a dengue já conta com tentativas de vacinas. Acho que hoje poderíamos considerar doenças realmente negligenciadas a leishmaniose, a hantavirose e as arboviroses silvestres, das quais se conhece muito pouco. Nosso grupo tem pesquisado algumas drogas promissoras contra leishmaniose.

Que drogas são essas e em que fase de desenvolvimento estão?

Hildebrando – Algumas substâncias extraídas de uma planta amazônica chamada Combretum leprosum se mostraram muito ativas contra o parasita da leishmaniose – particularmente os triterpenos. Mas em testes de toxicidade essas substâncias se mostraram ainda incompatíveis com o uso clínico.

No entanto, continuamos as pesquisas, pois, por meio da nanotecnologia, nós estamos trabalhando em estruturas que podem atuar como carreadoras de drogas, que vão agir diretamente na célula-alvo – o macrófago, no caso da leishmaniose.

Estamos desenvolvendo nanocápsulas que interagem especificamente com os macrófagos e assim conseguimos reduzir muito a dose necessária para a atividade quimioterápica.

Quais outras linhas de pesquisa estão sendo desenvolvidas no Ipepatro?

Hildebrando –Inicialmente, nosso foco era em malária, mas com a vinda de outros pesquisadores, principalmente Rodrigo Stabeli, da USP de Ribeirão Preto, nós nos lançamos em projetos ambiciosos de biotecnologia. Dentro do projeto da Fiocruz, temos uma linha relacionada com anticorpos monoclonais de camelídeos [alpacas e lhamas].

É um setor que está evoluindo muito favoravelmente e já nos consideramos extremamente competentes para isolar esses anticorpos chamados de VHH pela técnica de phage display [expressão em bactérias].

Entramos agora numa fase em que há necessidade de fazer um pré-desenvolvimento industrial e, para isso, é melhor que se tenha uma instituição privada sem fins lucrativos, como o Ipepatro, que pode obter recursos de diferentes origens e, inclusive, associar-se ao setor farmacêutico.

Como atuam esses anticorpos e como eles são produzidos? 

Hildebrando – Os anticorpos de humanos, roedores e demais mamíferos são formados por duas cadeias peptídicas – uma pesada e uma leve – e o sítio de interação específico do anticorpo com o antígeno é formado pelas extremidades das duas cadeias. Já os camelídeos, além desses anticorpos clássicos de mamíferos, têm um outro tipo formado apenas pela cadeia pesada e o sítio de reconhecimento do antígeno é uma única sequência peptídica na extremidade do anticorpo.

Temos a tecnologia para isolar e clonar essa sequência no linfócito e codificar essa interação com o antígeno. A informação é inserida em uma bactéria Escherichia coli, que passa a expressar esses anticorpos que chamamos de VHH.

Os anticorpos VHH podem ser produzidos contra antígenos variados. Nós estamos produzindo VHH contra toxinas de venenos de serpentes e contra alguns vírus, como febre amarela, hantavírus e raiva.

A finalidade é terapêutica? 

Hildebrando – A finalidade pode ser diagnóstica ou soroterápica. Há um grande interesse em soroterapia, pois o anticorpo secretado pela bactéria é uma molécula muito menor que o anticorpo típico de mamíferos e consegue ultrapassar membranas, inclusive a barreira hematoencefálica, que protege o sistema nervoso central. Além disso, ele é mais termorresistente e, portanto, não precisa ser conservado sob refrigeração.

É possível estocar bancos de bactérias que secretam esses anticorpos específicos mesmo antes de eles serem necessários. Podemos, por exemplo, ter anticorpos VHH contra as formas mais virulentas da gripe, como o vírus H1N5 – causador da epidemia de 1918. Já estamos produzindo anticorpos VHH contra certas toxinas do veneno de serpentes.

Não funciona contra todos os antígenos do veneno e sim contra os mais miotóxicos, como a fosfolipase de Bothrops[jararaca] e de Crotalus [cascavel].

Já temos produção em bactéria pela técnica phage display de anticorpos contra a raiva, contra a febre amarela, contra o hantavírus. Os que estão em fase de preparação mais avançada e já têm pedido de patente são os anticorpos contra o hantavírus e contra a fosfolipase de Bothrops e de Crotalus.

Há outros estudos para o desenvolvimento de medicamentos?

Hildebrando – Temos vários produtos promissores, mas ainda nada em fase de ensaio pré-clínico ou clínico e nenhuma patente. Para se ter um padrão de comparação, a única nova droga antimalárica publicada nos últimos três anos foi a spirodolona, produzida por uma associação de dez empresas farmacêuticas suíças e americanas.

Seu desenvolvimento levou vários anos, precisou de diversos ciclos de síntese de compostos químicos ainda não muito bem definidos até chegar a um com efeito reprodutível que pudesse ir para ensaio clínico.

Nossos pesquisadores são bolsistas e não podemos dar para um estudante de mestrado ou doutorado um tema que não esteja próximo do sucesso. Essa parte preliminar de triagem de compostos não gera as publicações necessárias para defender uma tese, então esses estudos de novas drogas estão evoluindo com menor rapidez do que as pesquisas com anticorpos.

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