Usaflex: mudança do perfil do consumidor foi impulsionada pela pandemia (Leandro Fonseca/Exame)
Repórter de Negócios
Publicado em 25 de maio de 2023 às 06h00.
Última atualização em 25 de maio de 2023 às 15h22.
A calçadista gaúcha Usaflex é um bom exemplo de empresa brasileira que passou por um choque de gestão e hoje cresce rápido por ter adotado uma estratégia em linha com tendências globais. Por isso, serve de inspiração para milhões de negócios de pequeno e médio porte também dispostos a competir de igual para igual com concorrentes estrangeiros.
Fundada em 1998, em Igrejinha, cidade de 40.000 habitantes a 90 quilômetros de Porto Alegre, a Usaflex cresceu nos primeiros anos vendendo sapatos femininos com palmilhas ortopédicas, recomendadas por médicos a clientes idosos. O conforto, e não o design, acabou sendo o principal mote comercial da empresa.
Não por acaso, até pouco tempo atrás a Usaflex era chamada por muitos de “fabricante de sapatos da vovó” e crescia sem chamar a atenção de fashionistas. O único canal de vendas eram as lojas multimarcas, onde a exposição da marca era mínima. Comerciais eram raros. “Faça a cliente provar o sapato no pé, ela não vai querer tirar”, dizia o fundador, Juersi Lauck, aos vendedores.
O nicho acabou trazendo bons resultados. Em 2016, o fundo de investimentos paulistano Axxon, focado em negócios de médio porte, comprou 70% da Usaflex. Uma das primeiras medidas foi colocar no cargo de CEO o executivo carioca Sergio Bocayuva, um dos responsáveis pela expansão por franquias da rede de produtos naturais Mundo Verde.
De lá para cá, a receita multiplicou sete vezes — a expectativa é de 610 milhões de reais em 2023. O Ebitda, indicador de lucro descontado de gastos com a operação, impostos e outras despesas, cresceu três vezes e deve bater 80 milhões de reais. De lá para cá, a fatia de clientes acima de 40 anos caiu de 70% para pouco mais de 60%. “A missão é atrair um público mais jovem e deixar a imagem de sapato ortopédico para trás”, diz Bocayuva.
A pandemia inicialmente colocou uma trava na expansão acelerada da Usaflex. Em 2020, o faturamento caiu 60% na comparação com o ano anterior, em razão do abre e fecha do comércio de rua no meio da quarentena. Passada a fase mais aguda da crise sanitária, o negócio voltou a crescer e recuperou o nível pré-pandemia no início do ano passado.
Em boa medida a recuperação a passos rápidos vem do fato de a Usaflex estar focada em calçados confortáveis, um dos queridinhos da moda mundial. Após meses trancados em casa, com pijama e pantufas como uniforme de trabalho, milhões de pessoas estão pouco dispostas a voltar aos moldes dos sapatos de antigamente. Eis algumas evidências.
Nos Estados Unidos, a marca Skechers, de tênis com solados enormes e praticamente sem frufrus, expandiu a receita em quase 20% em 2022, para 7,4 bilhões de dólares. No período, a marca lançou linhas esportivas e em cores vibrantes para jovens. Nessa mesma pegada, a marca contratou a rapper Doja Cat e investiu em influenciadores no TikTok.
Em jogo está o domínio do mercado de “comfort shoes”, como é chamado lá fora o nicho desse tipo de calçado. O setor deve crescer pelo menos 10% ao ano e faturar 47 bilhões de dólares em 2028, de acordo com relatório da consultoria indiana Azoth Analytics. Entre os mercados com maior potencial de expansão para os comfort shoes estão Índia, China e Brasil, diz o relatório.
“Com a pandemia, as pessoas se tornaram mais informais e mais preocupadas com o bem-estar físico e mental”, diz Bruno Portela, professor de marketing da Fundação Dom Cabral. “Na moda, essa tendência foi traduzida em roupas e sapatos mais casuais e confortáveis.” Não à toa, o benefício emocional por trás de decisões de compra, acima inclusive do preço na etiqueta, foi uma das dez tendências de consumo mapeadas pela consultoria global Euromonitor para 2023.
A Usaflex aproveitou a onda global em favor do conforto nos pés por meio de uma arrumação feita desde a chegada de Bocayuva. Numa das frentes, a marca ganhou eficiência operacional.
Há oito anos, praticamente todo o portfólio da marca era personalizável. O cliente podia ajustar a palmilha para o formato mais próximo de seu pé, entre outros ajustes. Por causa da política, a Usaflex fabricava 47.000 modelos diferentes, um número muito acima do padrão nesse mercado, que está na casa dos poucos milhares de modelos. Hoje em dia, uma coleção gira em torno de 3.700 tipos de calçados distintos, cada um com design pensado sob medida.
O lançamento dos pares passou a ter uma campanha ativa de marketing. Recentemente, a atriz e apresentadora Fernanda Lima estrelou a campanha de Dia das Mães da Usaflex, hoje uma marca ativa na televisão e em redes sociais — são 1 milhão de seguidores no Instagram. “Ao todo a companhia pretende investir 100 milhões em marketing até 2025”, diz Bocayuva. Para além de colocar a Usaflex em evidência em campanhas promocionais, Bocayuva liderou a expansão geográfica de lojas franqueadas da marca.
Hoje, são 302 unidades, das quais 22 no exterior — América Latina é a praça mais relevante. Toda semana o executivo reserva pelo menos um dia para visitar franqueados. “Criamos processos para controlar a apresentação dos produtos, segmentando por faixa etária”, diz ele. A meta é chegar a 370 unidades até o fim do ano. Até agora correndo por fora, o comércio eletrônico da marca, criado às pressas para dar vazão à demanda no auge da pandemia, deve responder por 28% das vendas em 2025.
A demanda por comfort shoes impulsionada pela pandemia ajudou a Usaflex a conquistar novos perfis de clientes e, também, abriu o mercado a calçadistas que até pouco tempo atrás tinham uma escala artesanal de produção. Em linha com a receita de Bocayuva, esses negócios ganharam tração após investimentos em redes sociais e num design único para conquistar pés joviais.
É o caso da Mafalda Sapatos, aberta em 2008 a partir de uma loja minimalista da designer Maria Fernanda Sodré na Vila Madalena, bairro boêmio na zona oeste paulistana. Com modelos de botas, sapatilhas e sapatos de salto de couro fabricados à mão, a Mafalda não demorou muito para cair na graça de consumidoras descoladas em São Paulo por causa do conforto. Entre os mais vendidos está um sapato de bico pontudo sem zíper nem cadarços. A aposta num comércio eletrônico digital próprio e num canal de vendas pelo Instagram deu um apelo global à marca.
No ano passado, a Mafalda inaugurou uma segunda loja em Londres e faturou 9,5 milhões de reais. “Comecei com 10.000 reais e uma prateleira de sapatos para vender”, diz Sodré. “Fui crescendo só com o capital de giro.”
A combinação sapato confortável-design autoral-venda online esteve na história da Wishin, fabricante de sapatos femininos fundada pelas empreendedoras Anna e Joana Shin, filhas de imigrantes coreanos estabelecidos em São Paulo, em 2011. Na época, as irmãs formadas em moda e design sentiam falta de modelos confortáveis desenhados por mulheres para mulheres. “Os sapatos femininos eram, em sua maioria, feitos por homens”, diz Anna. “As sapatilhas tinham muitos laços, brilhos e adereços. Queríamos algo mais simples, com design de moda, para usar no dia a dia.”
Nos primeiros anos, boa parte dos clientes encontrava os sapatos em feiras de artesanato, como a da Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, uma das mais prestigiadas de São Paulo. O site veio em 2013. Na pandemia, a marca apostou pesado na comercialização por esse canal, de onde saem hoje 50% das vendas. O restante vem das lojas físicas. São três na capital paulista e uma em Belo Horizonte, inaugurada neste ano. O portfólio atual, ao redor de 450 modelos, rendeu à Wishin um faturamento de 32 milhões de reais no ano passado, quando a empresa dobrou de tamanho.
A expansão de marcas até então conhecidas em públicos muito nichados dos grandes centros brasileiros vem na esteira de um momento excelente para a indústria calçadista brasileira. Por décadas, esse foi um setor acostumado às más notícias. Antes da abertura comercial brasileira dos anos 1990, o país era um exportador de calçados baratos e sem muito design.
A concorrência feroz da China, inclusive dentro do Brasil, fechou fábricas, dizimou empregos e reduziu a produção. Em 2022, o país produziu 849 milhões de pares de sapatos, uma queda de 10% em sete anos, de acordo com registros da Abicalçados, a associação do setor. De 2020 para cá, a indústria dá passos para recuperar o protagonismo global de antes — só que com calçados com design e maior valor agregado. Durante a quarentena, o desabastecimento de insumos fabricados em países asiáticos, sobretudo na China, apavorou empresas no Ocidente. Muitas decidiram trazer para mais perto o rol de fornecedores, num fenômeno global chamado de near-shoring (algo como “produção nas proximidades”, numa tradução livre).
A tendência está por trás de um interesse crescente pelo calçado brasileiro lá fora. Em 2022, 18% da produção brasileira foi exportada, um recorde. O câmbio favorável ao comércio exterior, junto com o maior volume de negócios lá fora, fez o tíquete médio saltar para 37 reais por par de sapato, alta de 18% em 12 meses e bem acima da média histórica, ao redor de 25 reais.
“O número demonstra que temos exportado um produto com maior valor agregado, justamente por seus atributos de conforto, moda e sustentabilidade, que conseguem driblar a mera concorrência no preço, especialmente com os produtos asiáticos”, diz Haroldo Ferreira, presidente executivo da Abicalçados.
Daqui para a frente, há dúvidas sobre o momento confortável vivido por Usaflex, Mafalda, Wishin e outros negócios com foco nos comfort shoes. A pressão das empresas para a volta aos escritórios, por ora, não tem sido acompanhada pela volta ao dresscode de antes da pandemia, mas nada impede que o tema entre na agenda das empresas. Sendo assim, haveria uma guinada para uma moda corporativa mais convencional em detrimento do conforto. O câmbio favorável às exportações pode perder força. O fim da pandemia, e do vaivém nas cadeias logísticas com algum pé na Ásia, pode minimizar o risco de importação da China e levar para lá de novo a demanda internacional. A indústria nacional aposta em ganhar espaço a despeito das incertezas.
Até 2025, a Abicalçados deve promover missões comerciais para abrir mercados em países como Estados Unidos, Alemanha, Emirados Árabes Unidos, Colômbia, Chile e Angola. Em dois anos, o setor estima abrir 50.000 postos de trabalho. O apelo a uma produção sustentável, com pouca pegada ambiental, deve ganhar força como estratégia de marketing, sobretudo para conquistar os clientes mais jovens. Uma coisa é certa: os produtos de companhias que fizeram a lição de casa e souberam aproveitar as tendências globais, como a Usaflex, devem seguir na moda.
As lições de gestão de marcas como Usaflex, Wishin e Mafalda, exemplos do bom momento da indústria calçadista brasileira
GESTÃO PROFISSIONAL
Desde 2016 a Usaflex tem o fundo de investimento Axxon como sócio
Resultado: A entrada de gente do mercado financeiro colaborou para economias que melhoraram a margem do negócio
FOCO NO DIGITAL
Abertas antes da pandemia, a Wishin e a Mafalda Sapatos já tinham nas vendas online o principal canal de vendas
Resultado: O e-commerce representa quase metade das vendas da Wishin e da Mafalda Sapatos
OLHAR GLOBAL
Wishin, Mafalda e Usaflex têm lojas próprias ou de terceiros no exterior
Resultado: As empresas estão menos expostas a variações cambiais e, assim, estão bem posicionadas para investir em inovação