Escritório do Magazine Luiza: após um caso brutal, a empresa criou uma política para proteger as funcionárias (Germano Luders/Exame)
Luciano Pádua
Publicado em 23 de agosto de 2017 às 18h00.
Última atualização em 23 de agosto de 2017 às 18h00.
São Paulo — Durante 13 anos, Denise Neves dos Anjos construiu uma carreira bem-sucedida na rede varejista Magazine Luiza. Aos 37 anos, após cinco promoções, havia assumido em maio a gerência da loja do Parque D. Pedro Shopping, em Campinas. A carreira e a vida de Denise se encerraram abruptamente no dia 2 de julho. Naquele domingo frio, ela foi assassinada pelo marido, que, depois do crime, cometeu suicídio. Um garoto de 9 anos ficou órfão. Foi o desfecho trágico de uma realidade que é conhecida por muitas mulheres brasileiras.
Em janeiro, Denise já havia prestado queixa de agressão na Delegacia de Defesa da Mulher. O ciclo de violência em casa culminou no assassinato. Para Luiza Trajano, sócia e presidente do conselho de administração do Magazine Luiza, foi a gota d’água. Com metade dos quadros da empresa formada por mulheres, ela decidiu que era hora de agir. Criou o Canal da Mulher, uma rede de proteção para as funcionárias com um disque-denúncia. Feito o relato de um ato violento do marido ou companheiro, a empresa garante apoio psicológico e jurídico, mapeia possibilidades de mudança de local de trabalho da funcionária e aciona as autoridades.
A pertinência da iniciativa logo ficou patente: 20 denúncias foram recebidas nos primeiros 30 dias. “Nunca achei que a violência contra a mulher estivesse tão próxima”, diz Luiza. “As empresas não têm só dificuldade em lidar com o tema, elas não foram despertadas para isso. Agora que abrimos as portas, descobrimos mais casos.”
A nova política do Magazine Luiza lança luz sobre o papel das empresas no combate à violência doméstica. Em geral, o assunto é abordado apenas pelo viés dos direitos humanos. Sem dúvida, para uma sociedade que ambiciona ser civilizada, a equidade de gênero é imprescindível, e toda violência é inaceitável.
Mas as agressões contra as mulheres também pesam na atividade produtiva do país. Uma pesquisa da Universidade Federal do Ceará, realizada no ano passado em parceria com o Instituto Maria da Penha e com o Instituto de Estudos Avançados de Toulouse, na França, com 10.000 mulheres que residem nas capitais do Nordeste, concluiu que 27% delas já haviam sofrido algum tipo de violência doméstica emocional, física ou sexual.
Agora, pela primeira vez na América Latina, os pesquisadores cruzaram os dados com informações da vida laboral das mulheres. Assim, puderam separar as que já haviam sofrido violência daquelas que não tinham sido vitimadas e compararam indicadores como tempo de permanência no emprego, faltas e nível salarial de cada grupo. Os resultados são alarmantes.
Tudo começa pela perda de saúde mental. Vítimas de violência apresentam menor capacidade de concentração e de tomada de decisões. É a partir daí que o assunto invade o ambiente de trabalho. Em média, mulheres que sofreram violência no lar ficam 22% menos tempo no emprego do que as que não passaram por isso — em algumas cidades, como Salvador, o tempo é 48% menor. Além disso, os salários são, em média, 10% inferiores. Em Fortaleza, a diferença é de 34%. Essas funcionárias faltam ao trabalho 18 dias por ano por causa de violência. Somente nas capitais nordestinas, são 8 milhões de horas produtivas perdidas por ano.
Numa estimativa conservadora, os pesquisadores José Raimundo Carvalho e Victor Hugo de Oliveira extrapolaram o dado para o Brasil, com base no salário médio das mulheres, e chegaram à cifra de 975 milhões de reais de renda perdida anualmente por causa do absentismo de mulheres que sofrem violência. “É uma questão de racionalidade. Com a diminuição da violência doméstica, as mulheres têm menos problemas de saúde e são mais produtivas. A empresa ganha mais e vai repassar mais para a mulher”, diz José Raimundo Carvalho, professor de economia na Universidade Federal do Ceará e coordenador do estudo. “Ajudar no combate à violência faz sentido não só do ponto de vista humano como também da gestão corporativa.”
As empresas costumam evitar o assunto e raramente têm alguma política a respeito. Uma enquete da consultoria de gestão BTA com 62 presidentes de grandes empresas, feita a pedido de EXAME, mostrou que quase todos eles afirmam ter um papel no combate à violência doméstica, mas apenas 38% das empresas contam com um programa estabelecido. “Ainda somos tímidos para discutir isso nas empresas, que deveriam ser as grandes apoiadoras. Muitas não sabem o que podem fazer”, afirma Regina Madalozzo, professora na escola de negócios Insper e estudiosa do mercado de trabalho para as mulheres. Pelo país, porém, começam a pipocar casos de políticas corporativas bem-sucedidas.
Em Fortaleza, a exportadora de castanhas-de-caju Amêndoas do Brasil implantou em 2009, após uma série de casos, um programa para fornecer informações sobre a violência doméstica, dar apoio psicológico às vítimas e fazer a ponte com as autoridades. No total, 20 mulheres foram acompanhadas. A estratégia rendeu bons frutos. Além de não haver registros de novos casos há dois anos, com o auxílio de outras mudanças de gestão a produtividade das mulheres cresceu 58% no período, de acordo com Sandra Oliveira, gerente de recursos humanos da Amêndoas do Brasil.
Já a fabricante de cosméticos Avon utiliza, desde 2008, seu instituto que promove campanhas sobre o câncer de mama para fazer também a conscientização sobre a violência em casa. Há dois anos, a empresa criou um programa interno para lidar com casos de agressão, treinando médicos e funcionários de recursos humanos e designando uma linha telefônica confidencial para receber denúncias. Uma vez apurado o caso, a empresa provê atendimento psicológico, verifica a necessidade de ir à Justiça e acompanha seu desenrolar.
Agora a Avon prepara supervisores e funcionários para identificar possíveis casos. Até hoje, houve sete registros, num universo de 2 500 funcionárias. “Certamente há mais casos que não conseguimos detectar. Temos de trabalhar a conscientização para que as vítimas se sintam seguras para falar. É um passo de cada vez”, afirma David Legher, presidente da Avon no Brasil.
Esse esforço já acontece há mais tempo pelo mundo. Nos Estados Unidos, onde o custo associado à agressão contra as mulheres é estimado em 8 bilhões de dólares por ano, a empresa de telecomunicações Verizon foi pioneira. Iniciou um programa de prevenção à violência doméstica em 1996.
Ao se envolver com o tema, a empresa percebeu que, se aplicasse as estatísticas nacionais à sua base de empregados, haveria milhares de mulheres dentro da companhia sofrendo violência doméstica. “Calculamos que estávamos perdendo milhões de dólares todo ano com baixa produtividade, absentismo e custos médicos gerados por agressão. Precisávamos fazer mais”, diz James Gerace, porta-voz da Verizon. Assim, a operadora passou a treinar os empregados para identificar sinais de violência doméstica em colegas e saber como agir se precisarem de ajuda. Além disso, remanejou centenas de funcionárias para que escapassem de relacionamentos abusivos.
Na Austrália, empresas como o banco Goldman Sachs, a consultoria Deloitte e a mineradora Rio Tinto mudaram a política sobre afastamento de mulheres que sofrem violência — em vez de descontar os dias parados, agora mantêm o salário. A medida faz parte dos achados considerados mais importantes pelo movimento Homens Campeões da Mudança, que reúne 30 presidentes de empresas do país. Por lá, um estudo da consultoria KPMG estima que a violência no lar custará 3 bilhões de dólares australianos às empresas até 2021.
No Brasil, a Lei Maria da Penha, que tornou crime a violência doméstica, acaba de completar 11 anos. Ela é referência internacional no assunto, mas ainda precisa evoluir. “As pessoas sabem que existe uma lei contra a violência doméstica, mas falta enraizar as políticas públicas pelo país”, afirma Maria da Penha, biofarmacêutica cearense cujo caso de agressão pelo marido inspirou a lei com seu nome. “Para as empresas, é preciso entender que essa violência interfere nos lucros.”
Nos últimos 30 anos, o número de mulheres que trabalham subiu de 40% para 55% no Brasil. As empresas podem ajudar a dar condições para que suas funcionárias se sintam seguras e continuem galgando posições. No fim, todos vão ganhar: o país, as empresas e, acima de tudo, as mulheres.