Manuel Chinchilla, da Philip Morris: missão de abrir o mercado no Brasil (Germano Lüders/Exame)
Denyse Godoy
Publicado em 10 de outubro de 2019 às 05h46.
Última atualização em 16 de outubro de 2019 às 10h43.
A lista das empresas que precisam se reinventar neste início do século 21 é longa. A indústria de alimentos corre para reduzir o açúcar e a gordura da comida. As redes varejistas prestam serviços de marketing e logística para pequenos comerciantes usarem suas lojas virtuais. Mas como se reinventa um produto que, segundo a Organização Mundial da Saúde, mata até metade de seus consumidores, como o tabaco?
É o que a Philip Morris, maior fabricante do planeta, fundada em 1847 em Londres — mas hoje uma empresa americana — e dona de marcas como Marlboro e L&M, tenta descobrir. Em jogo, um mercado global com 1,1 bilhão de clientes e 700 bilhões de dólares de faturamento por ano. No Brasil, além dos 18 milhões de fumantes, há 149.000 plantadores de fumo, fazendo do país o segundo maior produtor e maior exportador mundial. O Brasil é fundamental na reestruturação da Philip Morris — e nos debates sobre o futuro da indústria.
A mudança da empresa por aqui começa pelo endereço. A Philip Morris acaba de transferir a sede de Curitiba para São Paulo. O novo escritório, no bairro de Itaim Bibi, tem decoração colorida, ao estilo das startups. O objetivo é absorver a cultura da inovação do centro econômico do país, segundo Manuel Chinchilla, presidente da Philip Morris Brasil. Contando 26 anos no setor e com passagem por dez países, o hondurenho assumiu a subsidiária brasileira em 2018. Foi incumbido de abrir o mercado para o produto visto pelo setor como a salvação conforme o hábito de fumar perde força: um dispositivo que aquece o tabaco, sem queimá-lo. “Vivemos um momento de transformação. O produto que vendemos hoje faz mal e queremos parar de vender. Estamos investindo muito no desenvolvimento de novas categorias”, diz Chinchilla na primeira entrevista exclusiva no cargo.
Só há um problema. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu a venda de cigarros eletrônicos no Brasil em 2009. Como o produto virou febre nos Estados Unidos e na Ásia, e os brasileiros conseguem trazê-lo de fora ou compram de importadores ilegais, a Anvisa abriu neste ano duas consultas públicas para rediscutir a legislação. Há basicamente dois tipos de cigarro eletrônico, que em geral se parece com uma caneta. Um recebe uma carga líquida de nicotina. O outro tem refil semelhante a um cigarro comum, mas recheado de um tabaco diferente (as folhas de fumo são prensadas em uma bobina, e não picadas). Ambos usam um mecanismo elétrico alimentado por bateria recarregável que apenas aquece a carga soltando um vapor — e não fumaça. Por isso, também são chamados de vaporizadores, ou vaporizers em inglês.
A Philip Morris só fabrica o segundo modelo, batizado de Iqos, que custa cerca de 100 dólares, com recargas no mesmo preço de um maço de cigarros comum. A empresa diz que pesquisas próprias nos últimos 20 anos mostram que é a queima do tabaco no cigarro a culpada por produzir as cerca de 4.700 toxinas que se espalham pelo pulmão do fumante. Já o aquecimento a até 350 graus Celsius libera principalmente nicotina, por isso a Philip Morris oferece o Iqos a quem pretende parar de fumar gradativamente ou reduzir os danos à saúde. De 2000 a 2016, a parcela de fumantes no planeta diminuiu de 27,7% para 20,5%. No Brasil, graças a políticas restritivas, recuou para 9,3% em 2018. Em 2025, 17,7% da população mundial será fumante, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Mas os vaporizadores são de fato menos nocivos do que os cigarros tradicionais? Ainda não há pesquisas independentes que provem. “É bom lembrar que, no passado, as fabricantes também venderam a ideia de que os cigarros light são menos danosos. E não é verdade”, diz Monica Andreis, diretora da organização não governamental ACT Promoção da Saúde. Com mais furos nos filtros, os cigarros light facilitam a penetração de partículas nocivas mais finas nos pulmões. Outro sinal amarelo agora é a atração que os vaporizadores exercem sobre os jovens. A parcela de fumantes americanos no ensino médio subiu de 12% para 21% de 2017 para 2018 com a proliferação dos vaporizadores, especialmente os de carga líquida.
O fabricado pela californiana Juul Labs, parecido com um pen-drive, detém 76% do mercado americano. Cargas com aromas de manga e piña colada são chamarizes para os adolescentes. Mais grave: no mercado negro é possível comprar cápsulas de óleos ilegais, como o tetraidrocanabinol (THC), principal substância psicoativa da maconha. Ela foi relacionada a 78% dos casos de uma misteriosa doença pulmonar que matou 21 pessoas nos Estados Unidos e mandou 1.080 ao hospital desde abril. A agência reguladora Food and Drug Administration pediu em outubro aos usuários para não comprarem refis com THC.
Com a Juul sob ataque, a Philip Morris acelera. A companhia aberta, que tem entre os maiores acionistas os fundos de investimento Vanguard e State Street Global Advisors, conseguiu a liberação para vender o Iqos nos Estados Unidos e iniciou a comercialização neste mês. A empresa está estagnada. A receita de 29,5 bilhões de dólares é praticamente a mesma de 2014. O lucro de 11,8 bilhões de dólares é inferior aos 13 bilhões obtidos há cinco anos — ainda assim, uma alta rentabilidade. Na América Latina, o faturamento, de 3,2 bilhões de dólares, e o lucro, de 1,2 bilhão de dólares, mantiveram-se nos níveis de 2014. O Iqos, vendido em 48 países, já responde por 14% da receita mundial, compensando parte da perda com o cigarro comum. No Japão, a participação de mercado do Iqos é de 16,6%.
Para tentar liberar os cigarros eletrônicos no Brasil, a Philip Morris e seus concorrentes defendem uma regulamentação rígida, como a dos cigarros convencionais. Isso ajudaria a evitar uma epidemia semelhante à vista nos Estados Unidos. É também o caminho, segundo a empresa, para dar novo impulso à Região Sul do Brasil, que concentra a produção de tabaco. A companhia diz que a fábrica na cidade gaúcha de Santa Cruz do Sul, 150 quilômetros a noroeste de Porto Alegre, está operando abaixo da capacidade e poderia abrigar uma linha para produzir o tabaco usado no Iqos. A concorrente Souza Cruz, líder do mercado brasileiro e dona da marca Hollywood, acha que é muito cedo para falar em mudanças. “Não sabemos se e quando a regulação vai mudar”, diz Liel Miranda, presidente da Souza Cruz. “Mas queremos fazer parte da solução.”
Com menos fumantes no mundo, cerca de 37.000 produtores de tabaco sulistas deixaram o setor nos últimos dez anos, diminuindo o número em 20%, e a área plantada em 22%, para 289.000 hectares. Ainda assim, o setor responde por 30% da arrecadação de impostos em cidades como Santa Cruz do Sul. EXAME visitou a região. Os agricultores têm buscado a diversificação, plantando milho e feijão e criando aves. O Ministério da Agricultura pretende lançar até o fim do ano um programa de cultivo de plantas para a extração de óleos essenciais, como alecrim e lavanda.
Vai ser difícil compensar a retração do setor de tabaco. Como a indústria fornece insumos e se compromete a comprar a safra, o fumo tem margem de lucro maior e menor instabilidade. “Defendemos a cadeia do tabaco pelo impacto econômico, mas sabemos que é necessário pensar em alternativas”, diz Angelo Hoff, pró-reitor de extensão e relações comunitárias da Universidade de Santa Cruz do Sul. Procurada, a Anvisa afirma que não estabeleceu prazo para decidir se mudará as normas, mas a indústria espera uma resolução até o fim de 2020. Enquanto isso, os plantadores reclamam da má fama. “Em termos de prejuízo à saúde, as petroleiras também deveriam ser responsabilizadas pelos danos causados pela poluição”, diz Benício Werner, presidente da Associação dos Fumicultores do Brasil. Mais do que buscar outros culpados, a indústria foi atrás de soluções. Falta convencer o governo — e os consumidores.
A parcela de cigarros importados ilegalmente dispara para 57% dos 111 bilhões vendidos em 2019 no Brasil | Denyse Godoy
Com a diminuição do número de fumantes no Brasil, indústrias como a Philip Morris e a Souza Cruz têm reduzido a produção. Mas um segmento desse mercado não para de avançar: o contrabando. A parcela de cigarros ilegais no mercado disparou para 57% dos 111 bilhões de cigarros já vendidos no Brasil em 2019, ante 48% em 2017, segundo um levantamento do Ibope para o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco).
A maior parte do material contrabandeado vem do Paraguai, onde 30 fábricas produzem os cigarros trazidos ao Brasil de maneira ilícita. A principal explicação para a alta no contrabando é o aumento de impostos. A carga sobre o maço no país pode chegar a 90%. No Paraguai, os cigarros são taxados em 18%, resultando num preço de comercialização no Brasil entre 2 e 3 reais por maço, ante mais de 7 reais do artigo legalizado. Elevar os preços dos cigarros é uma medida para diminuir o consumo sugerida pela Organização Mundial da Saúde.
Doenças relacionadas ao tabagismo matam 7 milhões de pessoas no mundo por ano e custam 1,4 trilhão de dólares aos cofres públicos. No Brasil, as mortes são da ordem de 30.000 por ano, com custos para o sistema de saúde e previdência social de 57 bilhões de reais, segundo dados do governo. “Os impostos não precisam ser tão altos, porque só beneficiam os criminosos. O país deixa de arrecadar 8 bilhões de reais por ano em impostos por causa do contrabando”, diz o advogado Rodolpho Ramazzini, diretor de comunicação da Associação Brasileira de Combate à Falsificação.
O ministro da Justiça, Sergio Moro, criou neste ano um grupo de trabalho para estudar a possibilidade de reduzir os impostos. O relatório não chegou a uma conclusão. Especialistas de saúde pública que participaram da discussão disseram que uma eventual diminuição da taxação poderia elevar o número de fumantes, enquanto a Receita Federal e as polícias federal e militar defenderam a medida para reduzir o contrabando. Enquanto uma solução definitiva não vem, o documento defendeu apostar mais na repressão policial, em acordos bilaterais com os países envolvidos e na conscientização da população. “O consumidor do cigarro clandestino precisa saber que está financiando as mesmas quadrilhas que contrabandeiam drogas e armas”, afirma Edson Vismona, presidente do Etco.