Angra 3: pelo menos mais sete anos para terminar a obra e começar a gerar uma energia cara (Ricardo Funari / Brazil Photos/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 28 de março de 2019 às 05h46.
Última atualização em 25 de julho de 2019 às 15h48.
Em julho de 1984, um navio vindo da China atracou na baía de Guanabara com uma carga preciosa. Encarregado de receber o pacote, o almirante Othon Pinheiro da Silva alertou ao chefe dos estivadores que tomasse cuidado, pois se tratava de um jogo de porcelana chinesa encomendado pela primeira-dama Dulce Figueiredo. Ela e o general João Baptista Figueiredo haviam acabado de retornar da primeira visita de um presidente brasileiro ao gigante asiático. “Eu disse que ele seria responsabilizado por qualquer dano à carga”, afirmou Pinheiro da Silva, num livro sobre a história do programa nuclear nacional organizado por pesquisadores da Fundação Getulio Vargas.
O almirante mentia. Na verdade, nas caixas seladas havia um carregamento de urânio enriquecido a 20%, negociado clandestinamente pelo então presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear, Rex Nazaré, que também chefiava o Programa Autônomo de Tecnologia Nuclear, um projeto paralelo conduzido secretamente pelas Forças Armadas durante o governo militar. “Precisávamos de urânio para um reator de pesquisas e os Estados Unidos negavam o fornecimento”, disse o almirante, que foi condenado, em 2016, a 43 anos de prisão por corrupção e outros crimes cometidos durante as obras da ainda inacabada Usina Angra 3. Pinheiro da Silva ficou preso por menos de dois anos e, em 2017, foi solto pelo Tribunal Regional Federal da 2a Região.
A história da energia nuclear no Brasil é permeada de casos polêmicos que ultrapassam os limites da legalidade. O mais recente episódio envolve as prisões do ex-presidente Michel Temer e do ex-ministro Moreira Franco, implicados no mesmo esquema de desvio de recursos do almirante. O avanço do setor nuclear no país se deu em meio a escândalos e crises econômicas, que geraram atrasos de décadas e orçamentos bem maiores do que os projetados inicialmente. Os problemas começaram antes da construção de Angra 1, iniciada nos anos 70. A primeira Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o tema foi instituída em 1956, no governo de Juscelino Kubitschek, sob suspeitas de exportação ilegal de minérios atômicos para os Estados Unidos.
Ainda assim, a ideia de aumentar a participação da energia atômica na matriz brasileira segue de pé e ganha força no governo de Jair Bolsonaro. O projeto de Angra 3 se arrasta há 35 anos. Ele nasceu de um dos arroubos nacionalistas dos tempos da ditadura no governo de Ernesto Geisel. Insatisfeito com a postura dos americanos, os fornecedores dos reatores de Angra 1, que se recusavam a transferir tecnologia, Geisel negociou um acordo com a então Alemanha Ocidental. Dele surgiram as usinas Angra 2 e Angra 3, esta uma obra iniciada em 1984. Dois anos depois, a crise econômica levou à paralisação dos trabalhos. Pesou também na decisão o fato de que a Alemanha vendeu ao Brasil uma tecnologia recém-desenvolvida, que se mostrou ineficiente. A construção da usina seria retomada apenas no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, para depois ser interrompida novamente em 2015, já sob os efeitos da Operação Lava-Jato.
Agora, em 2019, concluir Angra 3 é novamente uma prioridade, segundo o ministro de Minas e Energia, o almirante Bento Albuquerque. Atualmente, cerca de 70% das obras da usina estão prontas. Desde que os trabalhos foram retomados em 2010, o Brasil gastou 9 bilhões de reais no projeto. Para terminá-lo, são necessários mais 17 bilhões de reais. O problema é que, se quiser desistir da obra, o governo terá de desembolsar 12 bilhões para pagar os empréstimos, desmontar as estruturas e dar um destino às máquinas. “É mais vantajoso terminar, até porque o Brasil vai precisar gerar mais energia de base, que não depende da hidrologia, para voltar a crescer”, afirma o professor Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A perspectiva de retomada das obras de Angra 3 anima o setor. Apesar das idas e vindas, e graças à insistência dos militares em desenvolver a tecnologia nuclear a todo custo, o país possui uma cadeia estruturada nesse mercado. “Somente três países dominam o ciclo completo da energia nuclear: Estados Unidos, Rússia e Brasil”, afirma o embaixador Marcel Fortuna Biato, representante brasileiro na Agência Internacional de Energia Atômica.
O Brasil é um dos 12 países no mundo capazes de enriquecer o urânio. É também dono da sétima maior reserva do mineral, estimada em mais de 300.000 toneladas, distribuídas pelos estados da Bahia, do Ceará, do Paraná e de Minas Gerais. “Essas reservas podem ser muito maiores, já que apenas um terço do território nacional foi pesquisado”, afirma Carlos Freire Moreira, presidente das Indústrias Nucleares do Brasil (INB), estatal que detém o monopólio da mineração e do enriquecimento de urânio. “Com Angra 3, vamos operar muito próximos da capacidade máxima.”
O desafio é tornar financeiramente viável a retomada de Angra 3. “Estamos ouvindo o que o ministro Paulo Guedes, da Economia, vem dizendo: não há espaço para irresponsabilidades fiscais”, afirma Marcelo Gomes, chefe do departamento de novos projetos da Eletronuclear, subsidiária da Eletrobras, responsável por construir e operar usinas termonucleares. Para superar a escassez de recursos, a ideia do governo é contar com um parceiro internacional, que terá de financiar e tocar a obra.
Falta, no entanto, definir o modelo de negócios a ser adotado na concorrência internacional. Segundo Wilson Ferreira Júnior, presidente da Eletrobras, há três opções em análise: na primeira, o parceiro estrangeiro teria uma fatia minoritária, proporcional ao investimento; na segunda, seria criada uma sociedade de propósito específico, na qual o sócio estrangeiro teria uma participação; ou poderia ser adotado o modelo turnkey, em que o parceiro deve entregar a obra em condições de uso, tendo como garantia o contrato de fornecimento de energia da usina. Independentemente do modelo, o controle será estatal.
Pelo menos cinco empresas estrangeiras demonstraram interesse em participar de Angra 3: a estatal russa Rosatom, o consórcio franco-nipônico MHI, as chinesas CNNC e SNPTC e a sul-coreana Kepco. A Eletrobras vem mantendo conversas com todos. Mais recentemente, foram iniciadas as tratativas com os americanos da Westinghouse, que foram os parceiros da primeira usina do Brasil.
O contexto global indica que Rússia e China têm mais chance de firmar um acordo. Falta ver se o governo Bolsonaro, ideologicamente avesso aos dois países, vai topar esse caminho. “A verdade é que russos e chineses dominam o setor nuclear atualmente”, afirma o embaixador Biato. “São os únicos que têm capacidade de financiamento, que é de que o Brasil precisa. A tecnologia nós já dominamos.” Segundo a Associação Nuclear Mundial, há 30 países planejando ou iniciando programas nucleares — a maioria é de emergentes. Praticamente todos têm algum tipo de acordo com uma das duas antigas potências comunistas.
Em 2017, a Rússia somava 133 bilhões de dólares em pedidos de exportação de reatores. Mais de 20 unidades estavam confirmadas ou planejadas. A venda de tecnologia nuclear é um dos pilares da política econômica do presidente Vladimir Putin. “Nossa expectativa é que o modelo de negócios de Angra 3 seja definido nos próximos meses”, afirma Ivan Dybov, vice-presidente da Rosatom na América Latina. Já a China tem no mercado interno sua maior força. O gigante asiático conta com 45 usinas nucleares em operação e outras 15 em construção. Na ambição chinesa, conquistar mercados estrangeiros ajuda a sustentar sua indústria de equipamentos atômicos. No Brasil, além de Angra 3, o governo quer retomar o plano de construir de quatro a oito usinas, elaborado no governo de Lula. Primeiro, no entanto, é preciso concluir Angra 3, algo que não deverá acontecer antes de 2026.
Outro atrativo para o setor é a possível quebra de monopólio da mineração de urânio. No início de março, o ministro Bento Albuquerque sinalizou a intenção de permitir a entrada de empresas privadas no setor. O próprio presidente da estatal que concentra essa tarefa hoje é a favor da abertura. “Não podemos ficar sentados em cima desses recursos”, afirma Moreira, da INB. “Estima-se que, em 50 anos, o hidrogênio se tornará o principal combustível das usinas termoelétricas, o que deixaria o urânio obsoleto. Temos a possibilidade de exportar o urânio enriquecido. Mas, para isso, é preciso mudar o marco legal do setor.” A Argentina, com quem o Brasil mantém um tratado na área nuclear, foi o destino das poucas vendas externas até agora. Os vizinhos, recentemente, assinaram um acordo com a China para a construção de sua quarta usina nuclear. “Há negociações para uma nova exportação para a Argentina”, diz Moreira.
Toda a movimentação em torno da retomada dos projetos nucleares causa euforia no setor, mas há motivos para questionar a viabilidade econômica da expansão em larga escala dessa fonte energética. O custo da energia nuclear é maior do que o das alternativas renováveis, como a solar e a eólica. No ano passado, o Conselho Nacional de Política Energética estabeleceu um novo preço de referência para a energia que venha a ser gerada em Angra 3, quando concluída: 480 reais por megawatt-hora. É muito acima, por exemplo, do preço médio do megawatt-hora da energia eólica, de 180 reais. Até a energia solar, a mais cara das renováveis, sai mais em conta: 328 reais por megawatt-hora.
Neste ano, a capacidade instalada das usinas solares instaladas no Brasil atingiu 2.056 megawatts, o equivalente a 1,2% da matriz energética, ultrapassando a nuclear, cuja capacidade instalada é de 1.990 megawatts. É verdade que, com Angra 3, haverá um acréscimo de 1.405 megawatts na potência. Mas a pergunta que fica é: ainda vale a pena apostar nessa tecnologia? Ao contrário dos emergentes, alguns países ricos estão desistindo da energia nuclear depois do acidente da Usina de Fukushima, no Japão. A Alemanha planejou desativar todas as suas unidades nucleares até 2022. Bélgica e Suíça tomaram decisões semelhantes. No Brasil, não dá para fugir do custo de Angra 3, mas será que o país precisa expandir uma fonte de energia cara, pela qual o mundo rico parece não se interessar mais?