Moradores de rua e pedestres em São Francisco, nos Estados Unidos: o progresso econômico das últimas décadas deixou os mais pobres de fora | David Paul Morris/Getty Images /
Da Redação
Publicado em 21 de junho de 2018 às 05h00.
Última atualização em 21 de junho de 2018 às 13h18.
De tempos em tempos, a humanidade se vê diante de transformações tão profundas que o próprio modelo de organização da economia e da política passa a ser questionado. Foi assim na época do Iluminismo, quando filósofos ocidentais, como John Locke, levantaram a ideia de que cada indivíduo é livre e deve ter garantidos os direitos à liberdade e à propriedade — uma visão que contrastava com a dominação da aristocracia e da Igreja na época. Para os americanos Eric Posner, professor de direito na Universidade de Chicago, e Glen Weyl, economista do Instituto de Pesquisas da Microsoft, a sociedade vive hoje um desses momentos de questionamento.
O modelo capitalista liberal tem sido incapaz de solucionar grandes problemas, como o aumento da desigualdade, o baixo crescimento econômico e a influência dos monopólios na economia e na política. No livro Radical Markets: Uprooting Capitalism and Democracy for a Just Society (“Mercados radicais: extirpando o capitalismo e a democracia pela raiz para uma sociedade justa”, numa tradução livre), publicado recentemente nos Estados Unidos, Posner e Weyl argumentam que é preciso pensar em novas maneiras de organização econômica e política, ampliando o papel dos mercados.
A solução, para eles, passa por novas maneiras de taxar a propriedade, um novo sistema eleitoral e um modelo que remunere os usuários de internet pelo uso de seus dados pessoais. São propostas ousadas e difíceis de ser implementadas. Mas a ideia dos autores americanos tem chamado a atenção dos economistas mais influentes do mundo. Gente da estatura de Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, afirma que o livro é a tentativa mais ambiciosa de repensar os mercados e a democracia desde os trabalhos do economista americano Milton Friedman (1912-2006). Leia a seguir um trecho do livro, que será publicado no Brasil pela editora Companhia das Letras:
“Embora o Muro de Berlim tenha caído quando um de nós estava apenas começando a pré-escola e o outro estava começando a carreira, esse momento foi crucial para moldar nossa identidade. O ‘modelo americano’ — uma combinação de livre mercado com soberania popular e integração global — havia vencido o ‘império do mal’ soviético. Desde então, esses valores — a ordem liberal — dominaram as discussões intelectuais. Grandes pensadores declararam ‘o fim da história’. E os grandes problemas sociais, que por tanto tempo estavam no centro do drama político, tinham sido solucionados.
O mundo viveu uma era de consenso intelectual global. Em nenhum lugar essa atmosfera foi mais clara do que na economia. Ironicamente, a economia assumiu a liderança num mundo em que os debates sobre os sistemas econômicos haviam desaparecido. Os economistas, que no passado ajudaram a definir os extremos do espectro político (pense em Karl Marx), estabeleceram-se como as principais vozes da razão. Nas universidades e nas associações profissionais, eles se concentraram na análise de políticas centristas, que, sendo altamente quantitativas, pareciam ser ideologicamente neutras.
Enquanto isso, os defensores da esquerda radical e da direita ultraliberal ficaram marginalizados. Com poucas exceções, os economistas supõem que o modelo das instituições de mercado funcione da melhor forma possível. Se os mercados ‘falham’, diz a teoria, uma regulamentação moderada do Estado é capaz de corrigir o problema.
A crise financeira de 2008 e a subsequente recessão nos Estados Unidos e na Europa foram os primeiros tremores a mostrar que havia algo errado. Descobriu-se que grande parte do progresso econômico antes da recessão era ilusório — beneficiara principalmente os muito ricos. A desigualdade crescente, a estagnação dos padrões de vida e a insegurança econômica em alta fizeram com que a análise tradicional virasse piada. A raivosa reação política não diminuiu à medida que a economia se recuperou. O público perdeu a fé nas elites. A opinião pública ficou polarizada. Por causa de questões culturais, especialmente a imigração, a raiva tomou um perigoso rumo nacionalista. A xenofobia e o populismo eclodiram num nível que não era visto desde a década de 30.
Infelizmente, as ideias não acompanharam a crise. O capitalismo é culpado pelo aumento da desigualdade. Ainda assim, nenhuma alternativa foi apresentada. A democracia liberal é acusada de corrupção e paralisia, mas o autoritarismo está longe de ser um substituto. A globalização e as instituições internacionais tornaram-se os bodes expiatórios, mas nenhum outro caminho sustentável para as relações internacionais foi proposto.
Na busca de uma saída para esse impasse, nos encontramos relendo as obras dos pais fundadores da organização social moderna: um grupo de pensadores autointitulados ‘radicais filosóficos’ dos séculos 18 e 19, incluindo Adam Smith, o Marquês de Condorcet, Jeremy Bentham, John Stuart Mill, Henry George, Léon Walras e Beatrice Webb. Embora vivessem num mundo bem diferente do nosso, esses pensadores enfrentaram desafios semelhantes. O sistema econômico e político que herdaram do século 18 não conseguia acompanhar as mudanças da tecnologia, da demografia, a globalização e o ambiente cultural mais amplo. O privilégio da aristocracia bloqueava os esforços para promover igualdade, crescimento e reforma política.
Acreditando que os recursos intelectuais da época eram insuficientes para apontar um caminho, os ‘radicais filosóficos’ desenvolveram novas ideias que desempenharam um papel enorme no desenvolvimento do modelo liberal. A visão deles e as reformas subsequentes combinaram as aspirações libertárias da direita com os objetivos igualitários da esquerda e são a herança compartilhada de ambas as extremidades do espectro político. Esse é o espírito comum que procuramos reviver.
A base intelectual da nossa era é a suposição de que os mercados são ‘perfeitamente competitivos’, o que significa que existe uma quantidade de mercadorias homogêneas e nenhum indivíduo detém ou compra uma grande fração de qualquer uma delas. Todos são forçados a competir. O mercado de grãos é o exemplo clássico. Nenhum produtor detém uma grande fatia do mercado e, portanto, não pode afetar o preço sozinho. Além disso, como tantas fábricas compram grãos, nenhum comprador pode, sozinho, influenciar o preço adiando as compras. Todos devem aceitar o preço que o mercado oferece.
No entanto, poucos mercados funcionam dessa maneira. Considere o processo de comprar uma casa. Casas têm características diferentes, como localização, conforto, vista, incidência de luz e assim por diante. Elas estão longe de ser homogêneas. Isso significa que compradores e vendedores têm um poder de barganha significativo. Cada lado trabalha duro para determinar o que o outro está disposto a pagar ou receber. O comportamento estratégico geralmente faz com que muitas negociações fracassem. Quando elas são bem-sucedidas, enormes quantidades de tempo e esforço são desperdiçadas.
A maioria dos mercados é mais parecida com o imobiliário do que com o de grãos. Fábricas, propriedade intelectual, empresas, pinturas — todos são ativos altamente únicos. Nesses e em muitos outros casos, a suposição de competição perfeita faz pouco sentido. O mesmo vale para o mercado de trabalho, uma vez que os trabalhadores têm talentos diferentes e vivem em lugares distintos. Mesmo em mercados relativamente homogêneos, como serviços de banda larga e viagens de avião, empresas dominantes prevalecem. E, até quando há concorrentes, eles frequentemente têm os mesmos proprietários. De baixo para cima, o poder de mercado — a capacidade de empresas e indivíduos influenciarem os preços a seu favor — permeia a economia.
Nós acreditamos que o poder de mercado é uma das duas fontes dominantes da desigualdade e de conflitos políticos. O outro problema primário é que muitas áreas da vida humana carecem de mercados que possam melhorar o bem-estar das pessoas. Esse problema é mais agudo para bens e serviços fornecidos por governos, como policiamento, parques públicos, estradas, seguro social e defesa nacional. O que é necessário é um mercado para determinar a influência política. Isso parece absurdo. No entanto, o modelo alternativo, de que todo cidadão deve ter uma voz igual e, portanto, de que toda questão é determinada pela regra da maioria, tem suas próprias fraquezas. Uma vez que a maioria governa, o que acontece com as minorias? A lógica ‘uma pessoa, um voto’ leva a grandes oscilações de poder entre blocos ideológicos.
A política não é o único domínio em que os mercados estão ausentes. Os dados, uma das commodities mais valiosas da economia digital, são coletados e monetizados por empresas como Google e Facebook, mas os usuários que criam esses dados não são remunerados. Um mercado de dados é necessário, mas não existe. Nossa economia supostamente competitiva, ao que parece, é atormentada por mercados monopolizados ou inexistentes.
Essas observações lançam dúvidas sobre as suposições racionais da retórica econômica padrão, mas também revelam oportunidades perdidas. Se encararmos o fato de que os mercados são prejudicados pelo monopólio, talvez possamos escapar da polarização entre esquerda e direita e renovar a luta dos radicais contra o preconceito e os privilégios.”
* Trecho editado e adaptado do livro Radical Markets
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