Revista Exame

A Libra, do Facebook, será uma nova moeda global?

Criptomoeda do Facebook em parceria com 27 empresas, a libra é uma tentativa de fazer o que o bitcoin nunca conseguiu: tornar-se popular e fácil de usar

Zuckerberg, do Facebook: sua libra digital tem potencial para chegar a 1,7 bilhão de usuários da rede social (Andrej Sokolow/Picture Alliance//Getty Images)

Zuckerberg, do Facebook: sua libra digital tem potencial para chegar a 1,7 bilhão de usuários da rede social (Andrej Sokolow/Picture Alliance//Getty Images)

Lucas Agrela

Lucas Agrela

Publicado em 4 de julho de 2019 às 05h28.

Última atualização em 8 de julho de 2019 às 15h07.

Sem vínculo com um banco central, um governo ou um país, a moeda digital bitcoin sempre foi vista com uma mistura de admiração e desconfiança. Havia quem visse nela um projeto libertário para criar uma moeda global que fosse autorregulada e capaz de driblar a interferência e o controle político dos governos. Com o bitcoin, pela primeira vez, era possível transferir dinheiro entre contas localizadas em países diferentes sem a burocracia que normalmente envolve esse tipo de transação.

Mas a autorregulação, como se sabe, tem outros problemas. Sem a supervisão de uma autoridade monetária e dos mecanismos de estabilização, o bitcoin fica sujeito a uma variação, literalmente, desgovernada. Em 2015, uma unidade de bitcoin valia 1.800 reais. Dois anos depois, seu valor havia subido para 49.500 reais, para depois cair para 15.000 em dezembro do ano passado. Além da alta volatilidade, usar um bitcoin não é um procedimento simples, o que acaba deixando de fora a maioria da população.

Por essas dificuldades todas, o bitcoin não chegou a decolar. Mas a ideia de uma moeda global não foi esquecida. Agora a rede social Facebook aliou-se a 27 empresas — entre elas a bandeira de cartões de crédito Visa, o aplicativo de transporte Uber, o sistema de pagamento digital Mercado Pago e a loja online eBay — para criar sua própria moeda digital, chamada libra.

Sem relação com a britânica libra esterlina, a libra é diferente do bitcoin. Ela se encaixa em uma categoria de moedas digitais chamada de stablecoin (“moeda estável”). Nesse caso, o valor dessas moedas é atrelado a outro tipo de ativo, que pode ser um título do Tesouro americano ou uma cesta de moedas — como o dólar, o euro, a libra esterlina e o iene. A ideia é garantir que o valor da moeda digital seja sempre equivalente ao desses outros ativos, para dar mais confiança e estabilidade. No caso da libra, o plano é manter uma espécie de reserva em títulos públicos e depósitos bancários que será usada para sustentar seu valor.

O plano do Facebook é que a libra possa ser usada diretamente na rede social, que, sozinha, tem 1,7 bilhão de usuários. Para Yuval Ben-Itzhak, presidente da Socialbakers, consultoria especializada em mídias sociais, a libra é uma tentativa de fazer o que o bitcoin nunca conseguiu: tornar-se popular e fácil de usar. “Usar uma moeda digital em vez de um cartão de crédito dá mais flexibilidade e escala para o serviço, sem que ele perca a segurança ou a privacidade oferecidas pela experiência de compra com o cartão de crédito convencional”, diz Ben-Itzhak.

Uma moeda gerida por empresas e lastreada em ativos de países de Primeiro Mundo pode ser benéfica do ponto de vista de estabilidade monetária e adoção global. No entanto, ela também traz riscos. Para Saifedean Ammous, professor de economia e autor do livro The Bitcoin Standard (“O padrão bitcoin”, numa tradução livre), moedas como a libra, vinculadas ao dólar, podem afetar as moedas de países pobres e até tirar do jogo empresas tradicionais do ramo de pagamentos, como PayPal e Western Union. “Para bilhões de pessoas, uma libra baseada no dólar americano, que funcione num celular em qualquer lugar do mundo, será superior à moeda nacional. Se bem-sucedida, a libra provavelmente vai destruir as moedas de Terceiro Mundo ou forçá-las a se tornar vinculadas ou baseadas no dólar americano”, diz Ammous.

Em busca de credibilidade

O mercado mundial de criptomoedas — como são chamadas as moedas digitais que usam criptografia, como o bitcoin e a libra — só tende a crescer. Segundo a consultoria americana MarketsAndMarkets, o faturamento do setor deverá passar de 900 milhões de dólares, em 2019, para 1,4 bilhão, em 2024, um crescimento de 55%. Para Tatiana Revoredo, professora na escola de negócios Insper, de São Paulo, e fundadora de uma consultoria especializada no tema, um dos entraves do dinheiro digital é a velocidade de validação das transações. “Enquanto o bitcoin faz sete transações por segundo, o ethereum, segunda criptomoeda mais popular, faz 15. Quem vencerá nesse mercado é a empresa que resolver o problema do uso em grande escala”, diz.

Outro desafio das novas moedas é combater a utilização para fins ilegais. De acordo com a consultoria de análise de dados americana Intellyx, as principais transações de criptomoedas no mundo nem sempre são associadas a atividades lícitas. O principal uso é para a especulação monetária. O segundo uso mais popular é a realização de operações da chamada DarkNet, o lado obscuro da internet, não acessível sem ferramentas digitais específicas. O terceiro principal uso de criptomoedas está ligado a atividades de lavagem de dinheiro, enquanto o quarto se dá no pagamento de resgates de dados roubados por hackers.

Por essas e outras razões, os bancos tradicionais ainda querem distância das criptomoedas no Brasil. Por outro lado, veem com bons olhos a tecnologia-chave por trás delas, o blockchain, a mesma usada para lançar as transações em bitcoin. O Itaú utiliza a tecnologia desde 2018 para registrar os preços negociados com investidores em operações do mercado futuro que exigem garantias. Com isso, pôs fim a uma troca de e-mails em que as informações poderiam se perder. Ainda pode levar algum tempo para os consumidores sentirem os efeitos positivos do uso da tecnologia no dia a dia.

Mas o banco já trabalha para adotar o blockchain em mais casos. É o que afirma Igor Freitas, superintendente do Itaú: “É a partir da criação de novos modelos de negócios que o cliente poderá sentir os benefícios do uso do blockchain. O blockchain é um meio, não um fim”. O banco Santander também conta com um sistema internacional de pagamentos baseado em blockchain. O serviço é chamado de One Pay FX e permite o envio de libras esterlinas do Brasil ao Reino Unido. Ele é mais ágil do que os modelos tradicionais, chegando ao destino em menos de um dia, em vez de demorar dois dias, e permite que o consumidor saiba a quantia exata que será depositada.

Pagamento com bitcoin em um café em Singapura: apesar de disruptivo, o uso das moedas digitais não decolou no mundo | Edgar Su/Reuters

Banido em países como Colômbia, China e Vietnã, o bitcoin tem problemas claros para se tornar a moeda digital global. A nova libra também já enfrenta obstáculos. A França lidera uma força-tarefa do G7 (grupo de países mais ricos do mundo) para avaliar como os bancos centrais vão garantir que as criptomoedas sejam reguladas, de modo a evitar problemas de lavagem de dinheiro e roubo de dados. Para que a libra se torne uma moeda digital global, o Facebook e seus associados precisam convencer os usuários de que ela é digna de confiança, estável, fácil de usar e segura. Ben Mezrich, autor do livro Bitcoin Billionaires (“Bilionários do bitcoin”, numa tradução livre), vê com preocupação o fato de algumas empresas serem responsáveis por uma moeda. “É animador por se tratar do futuro do dinheiro, mas também é assustador porque a iniciativa da libra é lançada e guiada por uma empresa e uma pessoa nas quais não confiamos mais nem para manter nossos dados pessoais”, diz Mezrich.

A libra só deverá chegar no ano que vem. Enquanto isso, há uma nova euforia com o bitcoin. Seu valor aumentou mais de 50% em junho, depois do anúncio da libra. Os especialistas estão céticos em relação ao sucesso da iniciativa de pagamentos das empresas. Mas, se der certo, a libra poderá se tornar não só a criptomoeda dominante mas também uma moeda digital global — e mais estável do que o bitcoin.

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