Debate sobre sustentabilidade no principal encontro anual do Fundo Monetário Internacional, em outubro: os riscos climáticos se tornaram questão crucial (Sustainable Development Goals/Divulgação)
Mais de uma dezena de reuniões do último encontro do Fundo Monetário Internacional, realizado em outubro na cidade de Washington, nos Estados Unidos, abordaram um tema que anos atrás costumava ficar restrito a debates entre ativistas: o aquecimento global. Num sinal claro de que as mudanças climáticas e suas consequências são percebidas como um risco econômico tão real quanto iminente, representantes de diversos países debateram como os bancos centrais podem se preparar para uma crise ambiental no planeta e, em paralelo, quais são os meios possíveis de financiamento da transição para uma economia de baixo carbono. A urgência está em traçar uma estratégia viável para a próxima década. Segundo a Organização das Nações Unidas, é preciso reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa a fim de evitar o excessivo aquecimento global. Se nada for feito, até 2030 a temperatura do planeta subirá para uma média 1,5 grau Celsius acima da que costumava ser antes do período industrial.
Enquanto a adesão de países se mostra errática, de acordo com a orientação política dos governantes, o movimento mais consistente na direção de manter uma postura responsável — e não apenas na seara ambiental — é visto entre grandes empresas. Com metas claras, muitas delas têm sido guiadas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), um amplo plano para melhorar o mundo lançado pela Organização das Nações Unidas em 2015. O documento é composto de 17 tópicos, desdobrados em 169 metas para 2030. Esses objetivos servem de referência para quase 85% das 190 empresas participantes da 20a edição do GUIA EXAME DE SUSTENTABILIDADE. Dessas, dois terços fizeram uma análise de materialidade para priorizar os ODS mais relevantes para seus modelos de negócios. “Os ODS estão bem posicionados como referência de políticas no Brasil e no mundo”, diz Aron Belinky, fundador da consultoria ABC Associados, responsável pela metodologia do GUIA EXAME de SUSTENTABILIDADE, maior levantamento de práticas de responsabilidade corporativa do país.
A edição deste ano do GUIA EXAME DE SUSTENTABILIDADE avaliou ações, processos e condutas de 210 empresas participantes que responderam às mais de 160 questões elaboradas pela ABC Associados, também responsável pela metodologia de escolha das empresas que integram o Índice de Sustentabilidade Empresarial da B3, a Bolsa de Valores de São Paulo, e formada por profissionais egressos da extinta área de rankings corporativos do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Numa metodologia utilizada desde 2007, a sustentabilidade das organizações é analisada de acordo com quatro eixos temáticos: geral, econômico, ambiental e social. A escolha dos destaques começa com a identificação das empresas que obtiveram pontuação acima da média das participantes, independentemente do setor em que atuam. A isso foi somado o desvio-padrão verificado na análise de cada uma das dimensões. Em seguida, um processo de apuração jornalística a respeito de questões críticas pertinentes a cada empresa se deu em paralelo ao auxílio de um conselho deliberativo, formado por especialistas (veja quadro abaixo).
Assim, EXAME chegou à lista das 77 melhores empresas desta publicação, posteriormente divididas em 19 setores. Também foram eleitos os destaques em dez categorias temáticas: Direitos Humanos, Ética e Transparência, Gestão da Água, Gestão da Biodiversidade, Gestão de Fornecedores, Gestão de Resíduos, Governança da Sustentabilidade, Mudanças Climáticas (que inclui gestão de energia), Relação com a Comunidade e Relação com Clientes. Por fim, EXAME selecionou, entre as mais sustentáveis de cada setor, a Empresa Sustentável do Ano.
O levantamento desta edição do guia EXAME aponta que as ações de sustentabilidade continuam ganhando corpo e relevância, mas a um compasso ainda lento se confrontado com a urgência do tema, principalmente no que envolve as ações climáticas (veja quadro abaixo). Do ano passado para cá, alguns procedimentos importantes tiveram queda. Um exemplo é o fato de a empresa ter uma política corporativa para aspectos ambientais alinhada aos processos de planejamento e gestão — em 2018, quase 49% das companhias afirmaram ter esse alinhamento e, neste ano, a taxa recuou para 43%. A parcela de empresas que elaboram inventário das emissões de gases de efeito estufa referente às suas atuações no Brasil ficou estagnada em nível próximo a 75% — índice que torna a prática bem disseminada entre as participantes.
Há também aspectos importantes que evoluíram positivamente. Um deles é o fato de que houve um aumento de quase 10 pontos percentuais na quantidade de empresas que realizam a avaliação das emissões de carbono das operações. Neste ano, 41% das participantes afirmam manter esse caminho. Os números mostram que há um grupo de elite que segue com consistência em suas práticas de sustentabilidade. “Estamos vendo um compromisso crescente com a neutralização de impacto negativo e com o propósito de aumento de impacto positivo. Essa talvez seja a maior transformação dos negócios”, afirma Marcel Fukayama, cofundador do Sistema B no Brasil e conselheiro do GUIA EXAME DE SUSTENTABILIDADE (veja entrevista abaixo).
A busca por um impacto positivo que traga benefícios tanto para o planeta quanto para os negócios levou a alemã Siemens a redirecionar o portfólio em 2016. Naquele ano, a companhia passou a analisar o impacto de sua operação global em relação aos ODS. Com uma oferta ampla de serviços, a Siemens persegue os 17 objetivos estabelecidos pela ONU, mas as prioridades mudam de acordo com o país de atuação. “Temos um relatório específico para o Brasil e, com base nele, entendemos quais estratégias de negócio geram mais impactos nos ODS”, diz Henrique Paiva, principal executivo de sustentabilidade da Siemens, destacando a ação contra a mudança global do clima. “Metade do nosso faturamento vem do portfólio ambiental, que é voltado para a geração de energia renovável e para a eficiência no consumo.”
A cada ano, a Siemens ajuda os clientes a reduzir as emissões de gases de efeito estufa em cerca de 600 milhões de toneladas por meio de alternativas como a geração de energia eólica e o uso de biomassa. Para Paiva, a empresa atende a uma demanda que só tende a crescer, e a venda desses serviços, além de ter impacto ambiental positivo, também aumenta o faturamento da companhia. Em uma visão mais voltada para o futuro, a Siemens enxerga possibilidades de negócio nos ODS de cidades e comunidades sustentáveis. Em junho, a empresa entregou para a cidade paulista de Jundiaí, onde mantém uma fábrica, um estudo que identifica as tecnologias mais adequadas para tornar o município inteligente e mais próximo das metas ambientais. “A análise traz soluções que não vendemos, como o ônibus elétrico, mas pode gerar novas demandas, algo que, lá na frente, trará benefícios para a empresa”, afirma Paiva. Outras cidades, em São Paulo e em Goiás, devem receber estudos com a mesma metodologia.
O levantamento mostra que aumentou — de 56,5%, em 2018, para 63,3%, em 2019 — a quantidade de empresas que mudaram seus processos considerando o impacto que eles geravam nas mudanças climáticas. Maior fabricante do mundo de produtos para cuidados pessoais e de beleza, a subsidiária da francesa L’Oréal fez essa reavaliação. Hoje, 78% do produtos novos ou renovados têm perfil ambiental melhorado, e a meta para 2020 é repensar 100% deles em aspectos que vão desde a embalagem até a formulação. A meta é obter bons resultados em todas as pontas do tripé da sustentabilidade: impacto positivo no meio ambiente, na sociedade e também nos resultados financeiros da empresa. É o que ocorre, por exemplo, com a adoção de algumas matérias-primas brasileiras. As compras de óleos de babaçu e pracaxi beneficiam 276 famílias nas regiões Norte e Nordeste. “Uma empresa que não esteja alinhada com os grandes desafios do planeta vai desaparecer”, afirma Maya Colombani, diretora de marketing, inovação e sustentabilidade da L’Oréal Brasil. “As mudanças permitem um alinhamento com as expectativas e perspectivas do consumidor.”
Algumas empresas já avançaram tanto que agora objetivam zerar as próprias emissões de carbono ou a geração de resíduos nas fábricas. A Whirlpool, fabricante americana de eletrodomésticos, é uma delas. A subsidiária brasileira conseguiu zerar a geração de resíduos nas fábricas em 2015. A meta global é atingir esse patamar só em 2022. “Continuamos a perseguir outras metas de uso eficiente de recursos dentro das linhas de produção, e isso traz também competitividade ao produto”, diz Vanderlei Niehues, diretor de sustentabilidade da Whirlpool no Brasil. Num programa global, a empresa estipulou que, até 2025, pretende reduzir as emissões a um nível 30% inferior ao registrado em 2005. Um dos pilares desse processo é a ampliação do uso de energias renováveis. Nos Estados Unidos, a Whirlpool é uma das maiores produtoras de energia eólica in loco. Toda a estratégia de sustentabilidade da empresa gira em torno de cinco ODS, entre eles consumo e produção responsáveis. “A escolha inicia com a questão: onde podemos causar mais impacto?”, diz Niehues. “Precisamos escolher ODS de grande repercussão, com custos gerenciáveis em atividades que já executamos.”
O exercício de pensar nas intersecções entre o negócio e os objetivos de desenvolvimento sustentável é fundamental para criar estratégias que possam ganhar escala. No setor elétrico, a EDP no Brasil elegeu nove dos 17 objetivos propostos pela ONU. Uma das mais relevantes no Brasil está relacionada à oferta de energia limpa. “Nossa estratégia é descarbonizar a produção”, diz Dominic Schmal, gestor executivo de sustentabilidade da EDP no Brasil. Nessa área, a empresa tem realizado projetos como a instalação de 15 000 painéis fotovoltaicos em cerca de 90 agências do Banco do Brasil. À medida que o negócio cresce, todos ganham: o planeta, a sociedade e a própria empresa.
Para o cofundador do Sistema B no Brasil, Marcel Fukayama, para fazer a transição de uma economia de baixo carbono, será necessário ter a participação ativa das empresas | Murilo Bomfim
Membro do conselho do GUIA EXAME DE SUSTENTABILIDADE, Marcel Fukayama é cofundador do Sistema B no Brasil e diretor executivo do Sistema B Internacional. Criada em 2012, a rede reúne 3 000 empresas em 71 países, as quais seguem os princípios de transparência e geração de impacto positivo com o negócio. A fabricante de alimentos Danone é a primeira grande empresa global a buscar a certificação — não apenas a matriz francesa como também as subsidiárias, incluindo a brasileira. Aqui, a maior empresa certificada é a fabricante de cosméticos Natura. De acordo com Fukayama, pelo menos dez outras empresas brasileiras de capital aberto estão em processo de certificação. A seguir, a conversa com Fukayama.
Qual será o papel das empresas no combate às mudanças climáticas?
De acordo com a Organização das Nações Unidas, temos um investimento necessário de cerca de 4 trilhões de dólares por ano para financiar a agenda 2030. Disso, mais de 2,5 trilhões são para mercados emergentes. É irreal crer que apenas governos e filantropia serão suficientes. É preciso, além de mobilizar o capital privado, engajar as empresas.
Qual caminho as empresas mais sustentáveis estão seguindo?
Três características são importantes. Primeiro, o propósito de gerar impacto positivo. Sair da lógica em que se ganha dinheiro com impacto negativo, fazendo compensações. O impacto positivo deve estar atrelado ao modelo de negócios. Depois, a responsabilidade de lidar com os valores gerados pela companhia: eles devem ser compartilhados, e não destinados apenas a acionistas. Existe, ainda, a importância de ter transparência nos processos.
Em relação a essas características, como o senhor avalia as empresas brasileiras?
É muito difícil transformar um negócio que nasceu com um DNA não voltado para a geração de impacto positivo. É uma transformação essencialmente cultural, que altera formas de pensar e fazer. Não basta criar um instituto e achar que está tudo certo.
Como o comprometimento com causas sociais ou ambientais pode gerar benefícios à empresa?
Vale lembrar que um CNPJ é um conjunto de CPFs, e metade da força de trabalho hoje já é da geração millennial. Em cinco anos, esse número chegará a 75%. Trata-se de uma geração que quer propósito, e as empresas que não conseguem trazer propósito para seu modelo de negócios tendem a perder a capacidade de atrair e reter talentos — e consumidores. Não é uma ação por amor, é porque gera resultados. Larry Fink [presidente do conselho de administração da gestora BlackRock], maior gestor de ativos do planeta, tem se manifestado publicamente sobre lucro com propósito. Ele quer dialogar com as corporações alinhadas à agenda global, e os investidores vão nessa direção.