Ceará: bandidos realizaram mais de 250 ataques no estado em menos de um mês | Alex Gomes/AFP Photo /
André Jankavski
Publicado em 31 de janeiro de 2019 às 05h54.
Última atualização em 31 de janeiro de 2019 às 05h54.
Ventos muito diferentes sopram para as duas grandes bandeiras do presidente Jair Bolsonaro. O crescimento econômico, cuja missão está entregue ao ministro da Economia, Paulo Guedes, depende de reformas que, embora amplamente reconhecidas como necessárias, deverão sofrer muita resistência no Congresso Nacional. Já a bandeira da segurança, a cargo do ministro da Justiça, Sergio Moro, tem pontos com forte resistência de especialistas. Mas a parte ligada ao combate ao crime organizado tem muito mais chances de um caminho suave entre deputados e senadores. Em tese, esses ventos opostos poderiam sugerir destinos diversos para as políticas nas duas áreas. Em política, porém, os opostos podem até ter mais facilidade para caminhar juntos.
A maior força a favor das propostas no campo da segurança é o apoio massivo da população, inclusive para medidas que os especialistas consideram ineficientes ou até perigosas. Cerca de 84% dos brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal para 16 anos e 57% defendem a adoção de pena de morte no país, 10 pontos percentuais a mais do que em 2008, segundo o instituto de pesquisas Datafolha. Ainda pelo Datafolha, 20% dos brasileiros creem que a violência é o principal problema do Brasil, ficando atrás somente da falta de assistência médica de qualidade. E casos como o do Ceará, estado que já registrou de 2 a 26 de janeiro mais de 250 ataques a ônibus e creches, entre outros, fortalecem a noção de que as punições a criminosos precisam ser mais severas.
Esse apoio se refletiu no aumento do número de parlamentares eleitos com o discurso da segurança pública. Uma grande fonte de apoio a Bolsonaro são os congressistas da Frente Parlamentar da Segurança Pública, conhecida como a “bancada da bala”. De acordo com levantamento realizado pelo site Congresso em Foco, 102 parlamentares da bancada farão parte do grupo em 2019 — quase três vezes mais do que na legislatura anterior. Pelas contas do líder da frente parlamentar, o deputado federal Capitão Augusto (PR-SP), esse número é ainda maior. “Temos 170 deputados alinhados com nosso discurso e calculamos que, com a ajuda de aliados, podemos chegar a 240 votos sem maiores dificuldades”, afirma Capitão Augusto. Ele se diz confiante na aprovação de projetos que necessitam apenas de maioria simples (257 votos) na Câmara, uma opinião apoiada por analistas. “Creio que a bancada vai ter boas vitórias ao longo do ano, ainda mais com o Bolsonaro como garoto-propaganda”, diz Lucas de Aragão, sócio da consultoria política Arko Advice.
Um apoio desses seria extremamente bem-vindo para aprovar reformas como a da Previdência e a tributária. Mas aí o jogo muda. Diversos deputados são ligados a corporações, como as polícias e as Forças Armadas, refratárias a mudanças no processo de aposentadoria. Apoiar o governo nas reformas econômicas, portanto, lhes custaria um tanto de seu prestígio com as bases que os elegeram. É nesse ponto que os ventos opostos podem soprar para o mesmo lado. Se conseguirem vitória num campo (da segurança), o remédio amargo das necessárias medidas econômicas fica mais palatável para as suas bases eleitorais. É um tipo diferente de toma lá dá cá, no campo psicológico.
O ex-deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), líder da bancada da bala até 2018 e candidato derrotado ao governo do Distrito Federal, admite que o equilíbrio entre as pautas da economia e da segurança pode ajudar os parlamentares na aprovação das duas frentes. Afinal, “a preocupação com a próxima eleição acontece desde sempre”, diz Fraga. “Para isso, o governo tem de propor essas votações de segurança ainda no primeiro semestre, para também aproveitar a lua de mel com o Congresso e com a população.”
As próprias crises (de segurança e econômica) ditam a pressa. A bancada da bala tem algumas prioridades para o primeiro ano: a flexibilização do porte de armas, o endurecimento da legislação penal, a redução da maioridade penal, o isolamento de líderes de facções e o fim das saídas temporárias de presidiários em datas festivas. A que tem possibilidade de tramitar mais depressa é a proposta da redução da maioridade penal para crimes graves. A medida foi aprovada na Câmara em 2015, mas até hoje está à espera de votação no Senado. “Estamos muito confiantes com a tramitação dessas propostas, por termos ideais conectados com o ministro da Justiça e o presidente. A única coisa que pode atrapalhar é a presidência das Casas”, diz o Capitão Augusto, que se candidatou a presidente da Câmara dos Deputados, mas desistiu para apoiar Rodrigo Maia (DEM-RJ).
A dificuldade é que, para uma pauta ajudar a outra, o cronograma precisa ser bem articulado. Senão, em vez de se ajudarem, elas se atrapalham. Se a pauta de segurança vier muito antes, especialmente com medidas anticorrupção que não agradam a parte dos congressistas, as chances de aprovação da reforma da Previdência podem diminuir bastante. E, se a frente econômica se adiantar demais, pode enfraquecer a aprovação popular.
Para os projetos de segurança do governo, a dúvida não é tanto se eles serão aprovados no Congresso, e sim se serão eficientes. O símbolo das armas na mão mostrou-se poderoso para a campanha eleitoral, mas o combate ao crime exige medidas muito mais abrangentes. Vários especialistas mundo afora questionam se o endurecimento das penas e a liberação de armas funcionam. Para Maria Laura Canineu, diretora da ONG Human Rights Watch, a ampliação da permissão para a posse de armas, decretada por Bolsonaro, é um erro. “Não existem estudos comprovando que seja uma medida adequada para enfrentar os altos índices de criminalidade e violência”, diz ela.
Quanto ao porte de armamento, não há um discurso uníssono nem mesmo dentro da bancada da bala. Uma das resistências parte do Delegado Pablo (PSL-AM). “O porte de arma é uma coisa mais séria do que a posse. É preciso ser bem estudado”, diz ele. Especialistas ouvidos por EXAME concordam. Melina Risso, diretora do Instituto Igarapé, e Ivan Marques, diretor executivo do Instituto Sou da Paz, são enfáticos ao afirmar que mais armas significam mais violência, especialmente porque as pessoas que vão manuseá-las em geral não têm larga experiência em lidar com armamentos.
Essa parte mais chamativa da agenda da segurança compensa, de certa forma, a inevitável demora em outro ponto: o combate à corrupção. Especialistas não acreditam que, ao menos em um primeiro momento, o ministro Moro consiga implementar grandes mudanças nesse sentido. Prova disso é a lentidão na tramitação das “dez medidas contra a corrupção”, além do desmanche dessas propostas, durante discussão na Câmara. Para Sérgio Praça, professor na Fundação Getulio Vargas e colunista de EXAME, a insistência nessa pauta ligada à corrupção pode afetar a disposição do Congresso em votar as reformas econômicas. “É delirante pensar que um pacote anticorrupção do Moro resultaria em uma alegria dos parlamentares”, diz ele. “E, com o caso do senador Flávio Bolsonaro, o próprio presidente está, pelo menos até agora, indiretamente envolvido numa investigação.”
Mais eficaz deve ser o fortalecimento das investigações, encampado por Moro. A expectativa é que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), responsável por identificar movimentações suspeitas (como as referentes ao filho do presidente e seu assessor Fabrício Queiróz), tenha um protagonismo ainda maior a partir de agora no combate ao crime organizado. “O foco dos governos anteriores sempre foi em crimes de rua comuns, como o roubo, e, no máximo, o tráfico de drogas. Não existia uma estrutura dentro das políticas do sistema judiciário voltada para o crime organizado, faltava até uma definição do que era crime organizado”, diz Túlio Khan, ex-secretário de Segurança do Estado de São Paulo.
Moro adota a máxima “Siga o dinheiro” (adaptação do lema “Follow the money”, em inglês), que ele usou na Operação Lava-Jato para prender empreiteiros e políticos condenados por caixa dois. Daí ter pedido que o Coaf passasse do Ministério da Fazenda para o da Justiça. “Na Receita, o Coaf tinha foco maior em pegar sonegadores”, diz Khan. A migração significa que será usado para “fins criminais, para investigar a origem do dinheiro e o modus operandi do crime.”
A escolha pelo caminho do Coaf também deve ser vista com cautela, segundo Rafael Alcadipani da Silveira, professor da FGV-SP e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Se Moro quiser combater o crime organizado usando o caminho que tem como base a lavagem de dinheiro, tem de estar pronto para prender gente poderosa do crime”, diz. “No combate efetivo do crime organizado, há a possibilidade de surgir retaliações, como a que está acontecendo no Ceará.”
No estado, parece haver um cálculo tático dos criminosos: fazer frente ao novo secretário de Administração Penitenciária, Mauro Albuquerque, que atuou nos últimos anos no Rio Grande do Norte controlando presídios como o de Alcaçuz, palco de massacres há dois anos, e prometeu um endurecimento contra os líderes das facções criminosas. “O que está acontecendo lá se assemelha aos ataques do Primeiro Comando da Capital”, diz Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “É importante aumentar a articulação de informações para descobrir e punir os mandantes dos crimes.”
Para Lima, é positivo que Moro tenha se cercado de peritos na área de inteligência e segurança, como o general Guilherme Theófilo, secretário nacional de Segurança Pública, e o secretário executivo Luiz Pontel, mas faltam representantes das polícias Civil e Militar, que lidam diretamente com os criminosos. Uma forma de melhorar isso, afirma, seria criar um conselho com essas categorias.
O conjunto de iniciativas — investimento em inteligência, coordenação entre as polícias, melhora dos presídios e o uso da Força Nacional em momentos de crise — é, segundo Luís Flávio Sapori, coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, uma fórmula eficiente para combater a criminalidade no curto prazo. Essa receita pode ajudar o governo a alcançar a meta estabelecida pelo ex-presidente Michel Temer, decretada cinco dias antes de passar a faixa presidencial, de reduzir os homicídios em 3,5% neste ano.
A diferença em relação a planos semelhantes promulgados em governos anteriores é que, desta vez, há objetivos e programas que devem ser cumpridos no prazo de dez anos, com ciclos de implementação a cada dois anos. O plano, assinado pelo ex-ministro da Justiça Raul Jungmann, prevê ainda o fortalecimento do aparato de segurança para aumentar o controle de divisas, fronteiras, portos e aeroportos e a ampliação do controle e do rastreamento de armas de fogo, munições e explosivos. Duas medidas que podem financiar essa luta pela segurança pública — e que também foram aprovadas no apagar das luzes do governo Temer — são a mudança nas loterias e a possível privatização da Lotex (que explora as raspadinhas), marcadas para fevereiro. A renda de até 3 bilhões de reais para o Fundo Nacional de Segurança Pública poderá ajudar estados que não têm verba para ampliar o efetivo nem comprar equipamentos.
A ideia é que as medidas abarquem também novos convênios com países vizinhos no combate a organizações criminosas. “O Brasil está cercado pelos três maiores produtores de coca e a expansão do PCC e do Comando Vermelho no Paraguai prova que é imprescindível a cooperação regional”, diz Nívio Nascimento, coordenador da Unidade de Estado de Direito do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Medidas assim, principalmente o uso de inteligência no combate ao crime, são imprescindíveis para o Brasil. Se sua aprovação ajudar na implementação das reformas econômicas, tanto melhor.
Para Roberto Leonel, do Coaf, não há chance de o órgão ser alvo de pressões políticas — mesmo ao investigar o filho de Jair Bolsonaro | Letícia Naísa e Natália Flach
Uma das mudanças do governo na área de segurança é a transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda para o da Justiça. Com 37 funcionários, o órgão será utilizado no combate ao crime organizado. Com Roberto Leonel — ex-coordenador da área investigativa da Receita Federal no Paraná e atuante na Lava-Jato — como presidente, a parte técnica e operacional de apuração de dados do Coaf não deverá mudar. O primeiro mês de gestão, no entanto, mostra que a repercussão política dos dados deverá ser grande. Mas Leonel diz que o Coaf se manterá técnico e independente.
O que muda com a ida do Coaf para o Ministério da Justiça?
Ao longo de duas décadas, o Coaf desenvolveu suas áreas técnica, operacional e de identificação e gerenciamento de riscos. Agora, o ministro Sergio Moro pretende reforçar a equipe de profissionais do órgão, que pode até dobrar. Outro ponto é a tecnologia. Há um programa de aquisição de sistemas de inteligência que deverá ser concluído em 2020. Neste ano, o investimento previsto na área é de 8,5 milhões de reais.
O senhor trabalhou com Moro na Operação Lava-Jato. A experiência da investigação o levou a implantar alguma novidade no Coaf?
Quando Moro definiu que daria ênfase ao combate ao crime organizado e à corrupção, criamos a coordenação de operações especiais para trabalhar especificamente em casos de maior repercussão e que exigem maior celeridade, como no caso da Operação Lava-Jato. A ideia é que assim haja mais qualidade e rapidez no repasse de informações financeiras ao demandante. Nos últimos 20 anos, recebemos cerca de 17 milhões de informações sobre movimentações financeiras suspeitas e automáticas. Somente em 2018 foram 3 milhões.
Qual é a diferença entre uma movimentação suspeita e uma automática?
Uma operação financeira que não seja compatível com os rendimentos da pessoa pode ser vista como suspeita, como a compra de um carro com dinheiro em espécie. Já a automática é feita pelas instituições financeiras quando os clientes fazem uma movimentação de mais de 50 000 reais. Essas informações ficam em nosso banco de dados e fazemos o cruzamento delas com outras 70 bases. Buscamos saber se a pessoa tem propriedades em seu nome ou se tem recursos no exterior. Em seguida, elaboramos os relatórios de inteligência financeira.
Um dos casos de maior repercussão das últimas semanas envolvendo o Coaf foi o da investigação do senador Flávio Bolsonaro. Por ser filho do presidente, há algum temor de algum tipo de ingerência política?
Nós não nos manifestamos sobre casos específicos, mas também posso garantir que não tememos ingerência política. Nosso trabalho continua normalmente, somos um órgão do Estado que sempre foi independente e vai continuar a ser assim. Nosso trabalho é técnico. Tanto é que a maioria dos relatórios do Coaf é gerada automaticamente, sem interferência humana.