Revista Exame

Um sopro de esperança: no RS, empreendedores lutam para reconstruir o que foi levado pelas águas

Num Rio Grande do Sul devastado pela pior enchente de sua história, empreendedores lutam para reconstruir o que foi levado pelas águas

Jônia e Janaína Koller, da Prinz: há quase 100 anos no mesmo lugar, a empresa vai agora para longe do Rio Taquari (Leandro Fonseca/Exame)

Jônia e Janaína Koller, da Prinz: há quase 100 anos no mesmo lugar, a empresa vai agora para longe do Rio Taquari (Leandro Fonseca/Exame)

Publicado em 25 de julho de 2024 às 06h00.

Última atualização em 25 de julho de 2024 às 09h53.

As irmãs Janaína e Jônia Koller cresceram entre barris de conserva de vinagre. De uma família de Erechim, no norte do Rio Grande do Sul, elas viram a vida dar uma chacoalhada quando o pai, Walter, comprou a Prinz, uma das maiores indústrias de vinagre do Sul do país. Sediada em Lajeado, cidade no meio do caminho entre Erechim e a capital Porto Alegre, a empresa completa 100 anos em 2025. A história centenária da Prinz foi vivida no mesmo local, um complexo de galpões colado ao Rio Taquari, um dos principais a cortar o solo gaúcho.

Quando Walter comprou a empresa, há 30 anos, as irmãs ainda eram crianças. De lá para cá, as duas praticamente cresceram à beira do rio. As águas viram também as garotas começarem a trabalhar com o pai: Janaína como diretora comercial e Jônia como responsável pelo financeiro. A coisa começou a mudar em setembro do ano passado. Fortes chuvas fizeram o Taquari subir tanto a ponto de invadir alguns pontos da sede da Prinz. Dois meses depois, uma nova inundação causou transtornos semelhantes. E então chegou maio de 2024. Em pouco mais de dois dias caiu um volume de chuva previsto para seis meses. A enxurrada histórica fez o nível do Taquari subir de 13 para mais de 30 metros. No momento mais agudo da enchente, a água do Taquari inundou completamente a fábrica da Prinz, subindo mais de 6 metros. Paredes, portões e barris foram arrastados pela correnteza. Quando a água baixou, sobraram os resquícios de uma história centenária e um prejuízo de 29 milhões de reais.

A família Koller viveu um drama compartilhado por muita gente ao redor. A menos de ­2 quilômetros dali, o empresário Renato Arenhart viu a sua empresa inteira ser destruída pelo rio. Dono da indústria de vidros Lajeadense, Arenhart presenciou com espanto a destruição até mesmo do escritório, localizado no segundo andar da sede da empresa, numa área colada ao Taquari. Na cidade vizinha de Encantado, o mesmo rio tomou conta da fábrica de produtos de higiene e limpeza Fontana. A direção da empresa ainda está entendendo como voltar a produzir no local. Repetidos em série por boa parte das cidades gaúchas, danos como esses vão resultar em uma perda de 40 bilhões de reais para a economia gaúcha, de acordo com estimativa de Fiergs, Fecomércio e ­Farsul, entidades dos empresários gaúchos da indústria, do comércio e da agricultura, respectivamente. Só em danos patrimoniais o prejuízo é de 10 bilhões de reais. A conta da reconstrução será ainda mais salgada. Nos cálculos de Fernando Marchet, coordenador da divisão de economia da Federasul, o investimento para colocar de volta o que a água levou embora vai ficar entre 110 bilhões e 175 bilhões de reais.

Ricardo Fontana, sócio da Indústrias Fontana: a empresa foi atingida por enchentes quatro vezes. Agora, está prestes a voltar a funcionar (Leandro Fonseca/Exame)

Para além de terem sido duramente atingidas pela enchente histórica no Rio Grande do Sul, as famílias Koller, Arenhart e Fontana têm em comum o olhar de resiliência para o futuro. Pela cabeça delas nem sequer passa a ideia de largar tudo e ir embora.

Quando a reportagem da EXAME visitou a Prinz, no início de julho, as irmãs estavam em clima de festa. O motivo: a retomada das vendas e a assinatura de um contrato de migração da fábrica para um local mais afastado do rio, para a cidade vizinha de Estrela. Na Lajeadense Vidros, a reportagem presenciou o desmonte de uma das máquinas sobreviventes à força do Taquari. O equipamento vai para um novo parque fabril projetado por Arenhart, a 8 quilômetros dali. Na Fontana, a caldeira responsável pelas reações químicas responsáveis por boa parte dos produtos de higiene e beleza estava sendo religada. As linhas de produção começavam a ser ocupadas novamente pela mão de obra. Também por ali máquinas e pessoas deverão ir para um novo endereço em breve. “Além de ser a nossa história, é o que sabemos fazer”, diz Janaína, da Prinz. “As famílias dos nossos empregados e as nossas próprias dependem desse negócio.”

40 bilhões de reais é o prejuízo na atividade econômica gaúcha.

Nas cidades gaúchas mais atingidas pela enchente de maio, o clima é de expectativa pelos investimentos prometidos por governos e iniciativa privada para recolocar tudo no lugar. É como se, depois da tempestade acompanhada pelo forte vento vindo do sul, chamado por ali de minuano, um sopro leve e quente de otimismo estivesse tomando conta. A mudança de ares é percebida por empresas de todos os portes, das pequenas às gigantes. A rede de farmácias Panvel, a maior da Região Sul, com faturamento anual de 4 bilhões de reais, vai manter o plano de investir 160 milhões de reais em 2024. A varejista Lebes, nome tão conhecido dos gaúchos como são Magazine Luiza e Casas Bahia país afora, inaugurou em julho um centro logístico, parte de um investimento de 500 milhões de reais. O Grupo Zaffari, dono da maior rede de supermercados do Rio Grande do Sul, quis dar uma injeção de ânimo no empresariado local. De uma só vez, anunciou o desembolso de 1,5 bilhão de reais, quase 20% da receita anual de 7,6 bilhões de reais. A quantia será empregada em 11 projetos, entre novos supermercados, atacarejos e um shopping center, com a geração de 2.315 empregos diretos. “Em momentos de crise, o que compete às empresas? Ajudar a força municipal e estadual, claro, mas, principalmente, empreender”, diz o diretor da empresa, Claudio Luiz Zaffari. “É hora de acelerar os investimentos, e não de diminuí-los, porque eles geram emprego, renda, tributo, posição de mercado e otimismo.”

Como estão as empresas gaúchas que são Negócios em Expansão pela EXAME

As pequenas e médias empresas gaúchas, muitas delas dependentes de clientes também gaúchos, são as mais interessadas na reconstrução rápida do estado. Um termômetro importante dessa urgência é a visão das lideranças das 13 empresas gaúchas selecionadas para o Ranking EXAME Negócios em Expansão 2024. A presença dos gaúchos no maior anuário do empreendedorismo do país foi prejudicada pela enchente. A fase final de inscrições, no início de maio, coincidiu com o perío­do mais agudo dos alagamentos. No ano passado, sem inundações, 24 empresas gaúchas entraram no ranking. Todas as selecionadas de 2024 foram, em maior ou menor grau, afetadas pelo desastre climático.

Uma das situações mais dramáticas foi a da porto-alegrense Pix Force, desenvolvedora de uma tecnologia­ com uma câmera munida de sensores com inteligência artificial para analisar fotos e vídeos de processos industriais. Em 2023, na esteira do sucesso do ChatGPT, a receita operacional líquida da empresa cresceu 27%, para 7,4 milhões de reais, colocando a empresa na posição 105 entre os negócios de maior crescimento do Brasil na categoria de 5 milhões a 30 milhões de reais.

Vitor Tosetto, diretor de operações da Pix Force: a empresa está atuando emergencialmente numa sala de reuniões enquanto o novo escritório fica pronto (Leandro Fonseca/Exame)

Em maio deste ano, quando as águas da enchente desaguaram no Guaíba e elevaram em 5 metros o nível do rio que margeia Porto Alegre, o escritório da Pix Force ficou completamente inundado. Ele estava no primeiro andar do Caldeira, principal hub de startups gaúchas, localizado num antigo galpão industrial na zona norte da capital gaúcha, a mais afetada pela enchente. Por ali ficava a oficina usada pela Pix Force para testar as câmeras. Nada ficou no lugar no escritório, inundado até o teto. (Somadas, as mais de 100 startups do Caldeira tiveram perdas de 400 milhões de reais.) Ficou só o bom relacionamento com os clientes, que toparam renegociar prazos para a entrega dos equipamentos. Agora, num escritório improvisado no terceiro andar do Caldeira, a startup quer recuperar o tempo perdido.

110 bilhões a 176 bilhões de reais é o valor da reconstrução do Estado.

A mesma sensação tem Luiz Carlos Porciuncula e Romeu Donada, sócios da Rede, dona de uma plataforma online para ajudar indústrias a vender produtos em marketplaces como Mercado Livre e Amazon. Pelo modelo de negócios da empresa sediada em Caxias do Sul, na serra gaúcha, as mercadorias dos clientes ficam em centros de distribuição da Rede para agilizar a entrega ao consumidor final. Dessa maneira, a empresa conquistou receita de 58,6 milhões de reais em 2023, alta anual de 48,5%, e o 35o lugar na categoria de 30 milhões a 150 milhões de reais. Os deslizamentos de terra causados pela enchente fecharam boa parte das estradas gaúchas e travaram o escoamento das mercadorias. “A operação ficou sem funcionar por 20 dias e, se não fosse a nossa unidade no Espírito Santo, teríamos parado por um mês inteiro”, diz Porciuncula, louvando a operação azeitada da Rede. “Bastou as estradas serem liberadas e os marketplaces voltarem a vender produtos gaúchos para termos o melhor mês em vendas da nossa história, registrado agora em junho.”

Romeu Donada e Luiz Carlos Porciuncula, sócios da Rede: barreiras nas estradas impediram a empresa de escoar mercadorias (Leandro Fonseca/Exame)

A crença num crescimento mesmo sob adversidades dá o tom das conversas na Ludfor, uma consultoria de projetos para o mercado livre de energia sediada em Bento Gonçalves, também na serra gaúcha. Com receita de 307,5 milhões de reais em 2023, alta anual de 69,6%, a empresa teve o quarto maior crescimento de receitas entre os negócios em expansão na categoria de 300 milhões a 600 milhões de reais. A previsão é crescer 25% neste ano na esteira de mudanças na legislação que permitiram a mais PMEs negociar a compra de energia de outras fontes que não a das concessionárias desse tipo de serviço. No pior momento das enchentes, a Ludfor correu para prestar apoio aos clientes, sobretudo empresas paradas por causa das inundações. “Ligamos para os clientes para perguntar o que poderíamos fazer, já que a proximidade com eles explica nosso crescimento”, diz Douglas Ludwig, CEO da empresa. “Além disso, acionamos a cláusula de contrato com as geradoras para que não fosse cobrada a energia das empresas paradas.”

Em meio ao ritmo de retomada das empresas gaúchas estão muitos desafios. Há dois fundamentais no curto prazo: crédito e infraestrutura. Novas fábricas como as planejadas dependem de recursos. A principal esperança vem do BNDES, mas os desembolsos prometidos ainda dependem de burocracia para sair. “Não queremos dinheiro de graça, e sim crédito de longo prazo”, diz Arenhart, da Lajeadense, de vidros. “Se me derem um prazo, começo a trabalhar e vou pagar.” A infraestrutura é essencial para escoar a produção até os clientes. No turismo, a demanda é pela retomada urgente da operação no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, mas a reabertura depende de reparos na pista e deve ficar para o fim do ano. Em Gramado, hotéis e atrações turísticas anseiam pela retomada dos voos no Salgado Filho. Enquanto isso, atendem os poucos visitantes gaúchos que chegam ali de carro. As empresárias Natiele Krassmann e Veronicah Sella, fundadoras da Criamigos, uma rede de lojas de ursinhos de pelúcia personalizados, acabam     de inaugurar em Gramado um hotel temático para crianças. O investimento de 100 milhões de reais depende dos turistas para um retorno.

Natiele Krassmann e Veronicah Sella, da Criamigos: empresárias investiram 100 milhões de reais para abrir hotel temático em Gramado (Leandro Fonseca/Exame)

Perto dali, a Own Time Home Club é um condomínio de alto padrão no modelo multipropriedade, no qual há uma venda fracionada do imóvel. Os sócios da empresa também dependem de turistas para manter o bom momento visto até a enchente. Em 2023, a receita da empresa cresceu 125%, para 24,9 milhões de reais. Com isso, a Own Time Home Clube ficou na posição 31 entre os negócios de 5 milhões a 30 milhões de reais com maior crescimento apurado pelo Ranking EXAME Negócios em Expansão 2024.

Jeferson Braga, CEO da Own Time Home Club: a falta de turistas diminui as vendas de parcelas da propriedade (Leandro Fonseca/Exame)

Não é só nos hotéis que os turistas fazem falta. Em Porto Alegre, o empresário Edemir Simonetti é dono do 360 Poa Gastrobar, um dos restaurantes mais emblemáticos da cidade. Localizado às margens do Guaí­ba, numa estrutura redonda com um quê de disco voador, o espaço tem vista privilegiada de Porto Alegre e do pôr do sol sobre o lago, um símbolo da capital gaúcha. Quando as águas subiram, o restaurante virou ponto de apoio do resgate de pessoas e animais das ilhas nos arredores do Guaíba. O fim da enchente trouxe o vazio. Em maio e junho, o 360 Poa Gastrobar ficou aberto, mas com faturamento zerado. No fim de tarde de julho em que recebeu a reportagem da EXAME, Simonetti saía de uma reunião para lançar uma publicidade para atrair os moradores de Porto Alegre para o espaço. O mote é vender dois pratos ao preço de um. É um jeito de pagar as contas enquanto o aeroporto está fechado, o crédito prometido ainda está sendo liberado e os clientes continuam receosos de encarar de perto o Guaíba. As adversidades não tiraram a leveza da conversa. “Porto Alegre e o Rio Grande do Sul serão abraçados pelo restante dos brasileiros”, diz ele. “Quando as viagens forem retomadas, vamos estar aqui para receber esse abraço.”

Edemir Simonetti, do 360 Poa Gastrobar: “Porto Alegre e o Rio Grande do Sul serão abraçados pelo restante dos brasileiros” (Leandro Fonseca/Exame)

De Bento Gonçalves, Eldorado do Sul, Encantado, Caxias do Sul, Gramado, Lajeado e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

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