Telas célebres de Picasso e de Faith Ringgold no mesmo espaço: convivência inusitada (Christina Horsten/AFP)
Da Redação
Publicado em 24 de outubro de 2019 às 05h18.
Última atualização em 24 de outubro de 2019 às 14h37.
Mais de 10.000 pessoas fizeram fila numa fria manhã de domingo para ter o privilégio de ver em primeira mão, e de graça, o resultado de uma das maiores reformas da história do Museu de Arte Moderna de Nova York, conhecido como MoMA. O museu anunciara na véspera, e de surpresa, a reabertura das portas um dia antes do previsto, a segunda-feira 21 de outubro. Nova-iorquinos e turistas não perderam a chance de conferir a nova cara de uma das atrações mais famosas da cidade. Depois de quatro meses fechado e de um investimento de 450 milhões de dólares, o MoMA está completamente repaginado: o espaço aumentou 30%, obras recém-adquiridas estão em destaque (incluindo uma tela de Tarsila do Amaral e diversas obras de outros artistas brasileiros) e a organização das galerias é inteiramente nova.
Todas as obras mudaram de lugar e ganharam novos vizinhos. As Senhoritas de Avignon, um dos quadros fundamentais de Picasso, agora divide a sala com American People Series #20: Die, tela imponente da americana Faith Ringgold. A cena sangrenta retratada pela artista é um registro dos conflitos raciais que tomaram os Estados Unidos na década de 60 e evoca a épica Guernica, que “morou” no -MoMA de 1939 a 1981, quando retornou para a Espanha. O museu sinaliza os novos tempos ao pendurar a obra de Ringgold ao lado de um de seus grandes chamarizes. Como escreveu Holland Cotter, crítico de artes plásticas do The New York -Times, o MoMA quer ser uma “instituição do século 21 que vive e respira, não o monumento a uma história obsoleta — branca, masculina e nacionalista — que tinha se tornado desde sua fundação em 1929”.
A organização do museu, antes essencialmente cronológica, deu lugar a temas, ideias e sentimentos mais em sintonia com os dias de hoje. As galerias ainda estão ordenadas por época, começando pelo 5o andar. Mas agora elas têm nomes como Transfigurações (“um diálogo entre artistas de vários países e gerações que reimaginaram a representação das mulheres”) e Imagens Públicas (“a sobrecarga de filmes, revistas e televisão precipita questões sobre como as imagens moldam as percepções de nós mesmos e nossa experiência de mundo”).
Temas como raça estão em primeiro plano. Uma retrospectiva dedicada a William L. Pope, artista negro que explora as relações raciais e a desigualdade da sociedade americana, reúne 13 registros de performances e objetos. Vídeos mostram o artista se amarrando com linguiças à porta de um banco, distribuindo notas de dólares a transeuntes confusos. Três vezes ao dia, Pope vai se sentar no chão de uma das galerias para comer páginas do The Wall Street Journal com ketchup. No 2o andar, uma exposição que permanecerá até março do ano que vem reúne obras de artistas latino-americanos, incluindo os brasileiros Willys de Castro, Lygia Clark e Hélio Oiticica.
A arte produzida por mulheres também merece mais atenção — antes tarde do que nunca, como disse Ann Temkin, uma das curadoras-chefes do museu, numa entrevista recente. “Não sei como a deixamos passar batido”, afirmou Ann Temkin sobre Tarsila do Amaral, cujo quadro A Lua foi adquirido neste ano e está em exposição. Quase um terço das obras escolhidas para a reinauguração é de autoria de mulheres, segundo o museu, um salto enorme em relação à proporção dos últimos anos. Muitas delas são aquisições recentes, permitindo que a coleção do MoMA reflita com mais abrangência o que se produziu de arte desde o fim do século 19. Para que o público tenha a chance de ver mais itens da maior coleção de arte moderna do mundo, um terço das obras expostas será trocado a cada seis meses.
Outra mudança é a justaposição de formatos. Pinturas dividem salas com esculturas, vídeos, fotografias e objetos de design, num trabalho colaborativo entre curadores de diferentes disciplinas. Numa galeria intitulada Design para a Vida Moderna, prints e fotos cercam uma instalação que idealiza uma cozinha modernista, da alemã Margarete Schütte-Lihotzky. Diante da Noite Estrelada, de Van Gogh, um display exibe cerâmicas produzidas na mesma época pelo americano George Ohr. Mas o efeito às vezes pode ser literalmente dissonante. Os majestosos Lírios D’Água, de Monet, agora ocupam uma sala exclusiva, mas o som que emana de uma galeria adjacente atrapalha a contemplação silenciosa que pode transportar o visitante aos jardins de Giverny que inspiraram o inovador impressionista.
O novo MoMA agora tem uma área de visitação gratuita (o ingresso custa 25 dólares; idosos e estudantes têm desconto), batizada de Projects Gallery, e o Creativity Lab, espaço pensado para explorar ideias e processos da arte. O Kravis Studio, uma nova área de pé-direito duplo, foi inaugurado com uma instalação sonora do compositor americano David Tudor. A ampliação do MoMA, apesar de considerável, não deve desafogar as galerias nem permitir visitas pacíficas: o museu recebe cerca de 3 milhões de visitantes por ano. Mas abrir caminho entre as multidões tirando selfies diante das latas de sopa Campbell de Andy Warhol ou da confusão de jorros de tinta de Jackson Pollock sempre fez parte de um dos melhores programas de Nova York.