Revista Exame

Presidente da Eurasia prevê vácuo de liderança mundial em 2021

Para Ian Bremmer, da Eurasia, o vácuo de poder global vai seguir em 2021

A cena política global segue dividida e polarizada em 2021 — mesmo sem o presidente Donald Trump na Casa Branca. É o que pensa o cientista político americano Ian Bremmer, da consultoria Eurasia. Ele explica por que o vácuo de poder continua, ainda que boas notícias venham dos fronts tecnológico e ambiental (SeongJoon Cho/Bloomberg/Getty Images)

A cena política global segue dividida e polarizada em 2021 — mesmo sem o presidente Donald Trump na Casa Branca. É o que pensa o cientista político americano Ian Bremmer, da consultoria Eurasia. Ele explica por que o vácuo de poder continua, ainda que boas notícias venham dos fronts tecnológico e ambiental (SeongJoon Cho/Bloomberg/Getty Images)

FS

Fabiane Stefano

Publicado em 17 de dezembro de 2020 às 05h00.

O CIENTISTA POLÍTICO AMERICANO Ian Bremmer, presidente da Eurasia, uma das mais respeitadas consultorias de risco político no mundo, foi um feroz crítico do presidente americano Donald Trump ao longo dos últimos quatro anos — por meio, sobretudo, de sua conta no Twitter. Para Bremmer, a derrota de Trump à reeleição permitirá trazer os Estados Unidos de volta à arquitetura multilateral, mas o presidente eleito, Joe Biden, também não será capaz de voltar à era pré-Trump.

“Os Estados Unidos são atualmente de longe a mais politicamente dividida de todas as democracias industriais avançadas”, diz Bremmer. Ao analisar o cenário global para 2021, o cientista político destaca que o nacionalismo pelo acesso à vacina contra a covid-19 e cadeias globais de manufatura mais fragmentadas vão alimentar tensões, mas ele também aponta que tecnologias disruptivas que geram mais produtividade e o fortalecimento da agenda ambiental e climática trazem alguma esperança.

Leia a seguir a entrevista de Bremmer à EXAME.

Durante a administração do presidente Donald Trump, o senhor cunhou o termo “o mundo G-Zero”, ideia que trata de um vácuo de poder na governança global. Esse cenário deve mudar agora com a eleição de Joe Biden? 

Menos do que se imagina. Isso tem a ver com razões estruturais: a política interna dos Estados Unidos [cujas divisões internas tornam difícil para o país voltar a liderar no exterior] e a atual­ ordem mundial [a Europa olhando para seus próprios problemas políticos, a China crescendo, a Rússia constantemente tentando atrapalhar]. Além disso, há o simples fato de que muitas das instituições que supostamente sustentam nossa ordem mundial não são mais adequadas a seu propósito, pois refletem o equilíbrio de poder de uma época passada.

Dito tudo isso, o mundo ­G-Zero não apenas persistirá, mas se fortalecerá. O presidente eleito Joe Biden trará os Estados Unidos de volta à arquitetura multilateral e tranquilizará alguns aliados, com certeza. Haverá um período de lua de mel, mas as razões estruturais são mais importantes — e elas existiam bem antes de Trump se tornar presidente.

O senhor sempre foi muito crítico a Trump, mas o que considera o pior e o melhor que seu governo produziu nos últimos quatro anos? 

A melhor coisa que posso atribuir à administração de Trump são, na verdade, duas coisas: primeiro, aumentou a disposição do governo dos Estados Unidos de realmente reafirmar o poder americano. Isso foi importante quando era preciso, por exemplo, adotar uma linha dura contra a China [especificamente, quando se tratava de questões tecnológicas, como as dicussões sobre o padrão 5G], mas também em outras áreas, como a renegociação do acordo comercial Nafta, o realinhamento do Oriente Médio e muito mais.

A segunda coisa que a administração Trump fez foi reconhecer que a crescente desigualdade estava criando um espaço político para que muitas pessoas se sentissem desprivilegiadas e deslegitimadas, o que não estava sendo tratado por figuras políticas estabelecidas em ambos os lados do espectro. Quanto à pior coisa que posso atribuir a Trump foi sua incapacidade geral para o cargo: a indiferença ao estado de direito e à democracia, a menos que servisse a seus interesses pessoais, como vemos agora com ele fazendo tudo o que pode para contestar o resultado de uma eleição livre e justa.

O presidente americano Donald Trump: as razões que o levaram ao poder, como o aumento da desigualdade e o sentimento anti-imigração, continuarão nos Estados Unidos — mesmo sem Trump na Casa Branca (Oliver Contreras/Bloomberg/Getty Images)

Trump ainda reluta em aceitar a derrota e diz claramente que a vitória de Biden foi roubada. Como esse comportamento afeta a sociedade americana?

Os Estados Unidos são, atualmente, de longe a mais politicamente dividida de todas as democracias industriais avançadas. Trump ajudou a torná-los assim, e ele está piorando a situação ao desgastar ainda mais as instituições políticas do país. E é muito difícil imaginar que Joe Biden possa reparar todos esses danos. 

No meio de uma pandemia, houve um número recorde de americanos que votaram. E, mesmo perdendo, o Partido Republicano recebeu uma votação expressiva. Por que a sociedade americana está tão polarizada?

Sem a pandemia, Trump provavelmente teria vencido esta eleição, dadas as vantagens inerentes a ser o titular do cargo. Mas, a pandemia à parte, não há espaço sobrando no meio político. Já havia polarização maciça rumo a 2020 e agora vai piorar por causa do impacto econômico e sanitário desigual produzido na pandemia, atingindo particularmente os que já eram marginalizados. E, como todos nós sabemos, mais ansiedade alimenta mais raiva.

Acredita que o trumpismo é uma corrente política que veio para ficar dentro do Partido Republicano? 

Sim, e vai persistir dentro do partido esteja Trump lá ou não. Isso porque as razões subjacentes que alimentaram a ascensão de Trump ainda continuam: raiva gerada pela desigualdade, raiva dos imigrantes [há pessoas que acham que não há auxílio suficiente nem para aqueles que já vivem nos Estados Unidos], raiva das “guerras eternas”, com tropas ainda no Iraque e Afeganistão... Tudo isso a reboque de uma mídia tradicional deslegitimada, que concorre ao lado das mídias sociais.

A derrota de Trump enfraquecerá os populistas na Europa e outros aliados como o presidente brasileiro Jair Bolsonaro? 

Não. As tendências populistas são globais, mas atuam localmente. No caso do Brasil, Bolsonaro está comparativamente bem agora por causa do estímulo econômico que está indo para o bolso das pessoas e o fato de que o coronavírus não é tão ruim quanto antes. Como a percepção da população sobre esses fatores deve mudar, seja pelo fim do auxílio, seja por uma piora da pandemia, a popularidade de Bolsonaro deve ser afetada. Mas isso não tem nada a ver com Trump ou Biden.

 A globalização foi fortemente atacada nos últimos anos. Em 2021, teremos nações mais comprometidas com a globalização? Ou veremos mais medidas protecionistas sendo tomadas?

Depende de qual parte da economia global estamos falando. Tecnologia e gestão de dados estão claramente caminhando para uma maior fragmentação, já que são vistas como setores cada vez mais estratégicos pelos governos. No curto e médio prazo, veremos muito nacionalismo acontecendo em torno das vacinas e quem terá acesso a quais delas. Commodities, porém, permanecerão muito globalizadas — isso não vai mudar. E, provavelmente, veremos a manufatura e os serviços se tornarem um pouco menos globais do que eram antes, mas isso é devido à natureza mutável do trabalho [mais automação, menos trabalho barato gerando capital].

Países como Estados Unidos, Brasil e grande parte da Europa estão passando por uma segunda onda de transmissão da covid-19. Como o mundo vai sair da pandemia? 

Por meio de vacinas eficazes, o que reduzirá significativamente a mortalidade nos estágios iniciais e, eventual­mente, fará com que tudo volte a funcionar. Mas esse é o lado da saúde. O da economia ainda requer alívio e investimentos para além do que vimos até agora, considerando que muitas empresas faliram e esses empregos sumiram.

Enquanto isso, mais inovações disruptivas estão surgindo, o que é ótimo para a eficiência e o crescimento a longo prazo, mas também significa que muitas pessoas serão arrancadas do mercado de trabalho e precisarão receber assistência de políticas públicas dos governos. Então, ainda temos um longo caminho a percorrer.

O presidente chinês Xi Jinping: há uma enorme interdependência econômica entre China e Estados Unidos, apoiada por interesses arraigados de ambos os lados (Li Xueren/Eyevine/Glow images)

A guerra comercial entre os Estados Unidos e a China e as acusações de Trump de que a China é a grande culpada pela pandemia prejudicaram o relacionamento entre os dois países. Com Biden, como devem ser as relações entre os dois países agora?

Sob a liderança de Biden, os Estados Unidos tomarão uma posição firme contra a China em questões territoriais como Taiwan, Hong Kong e o Mar do Sul da China. A administração Biden dará mais ênfase à questão dos uigures [muçulmanos de minoria étnica que sofrem perseguição pelo governo chinês], bem como aos direitos humanos de maneira mais geral em todo o mundo, em comparação com o que vimos na administração Trump.

A equipe de Biden também terá como objetivo ser mais multilateral em sua abordagem à China, incluindo aliados americanos nessa discussão, em oposição à abordagem mais unilateral de Trump. Mas, no que diz respeito ao clima, veremos uma grande mudança da administração Biden simplesmente por levar a questão muito mais a sério.

O consenso é que haverá mais espaço para a cooperação entre os Estados Unidos e a China no futuro, já que mitigar as mudanças climáticas é do interesse de ambos. Mas também é possível que uma nova frente de competição se estabeleça, já que os dois países disputam o papel de futuro líder mundial em tecnologia e infraestrutura sustentáveis. O que significa que o relacionamento Estados Unidos e China continuará a ser uma área de competição e confronto.

Na guerra comercial, muitos pontos de conflito entre os dois países devem continuar. Quais pontos permanecem e quais podem ser superados?

As principais linhas vermelhas estão em torno de roubo de propriedade intelec­­tu­al, subsídios estratégicos do governo chinês para corporações chinesas, e a falta de cumprimento da lei e de um Judiciário independente. Dito isso, há também uma enorme interdependência econômica entre os dois países, apoiada por interesses arraigados de ambos os lados. E isso não vai desaparecer.

O que o governo Biden pode fazer para melhorar as relações com a China? É possível que os dois países trabalhem juntos em prol de mais cooperação bilateral? 

Apesar de genuínos conflitos de interesse em uma série de questões, ainda existem muitos lugares onde a competição pode significar trabalhar juntos — mais uma vez, há uma enorme interdependência econômica que importa para americanos e chineses. E a melhora na retórica e no engajamento de boa-fé com os chineses poderia ajudar significativamente o relacionamento entre os Estados Unidos e a China.

Mas ainda veremos uma dissociação fundamental entre os dois países por duas razões críticas: primeiro, a política em ambos os países gerará mais conflitos na arena tecnológica, forçando a divergência. A segunda razão é que há menos necessidade de mão de obra chinesa no processo de manufatura devido aos avanços da tecnologia, o que, por sua vez, significa uma cadeia de suprimentos global menor em manufatura e serviços — o que tende a ser motivo para pressões internas na China. 

Biden disse na campanha presidencial que os Estados Unidos voltariam a aderir ao Acordo de Paris. A agenda ambiental está fortalecida?

Absolutamente. É a maior mudança que a administração Biden oferece ao mundo a partir do primeiro dia de seu governo. E ter a maior eco­nomia do mundo apoiando o Acordo de Paris coloca o vento de volta às velas na luta global contra as mudanças climáticas. Também dá aos Estados Unidos uma grande oportunidade de se engajar multilateralmente em uma questão que afeta todos os países do mundo. Da perspectiva americana, é a definição de uma situação em que todos ganham. 

Quais ações os Estados Unidos precisam realizar para realmente investir em uma economia verde?

O setor financeiro já está fazendo isso, e o ataque aos combustíveis fósseis está impulsionando ainda mais. O governo e a política regulatória também serão orientados nessa direção, o que dará um impulso essencial à agenda. Além disso, veremos preocupações crescentes entre os americanos sobre perder as oportunidades atreladas à transição de um ambiente de energia pós-carbono para a China, o que fomentará a competição. Isso vai acontecer. Então, espero ver muito mais ênfase em uma economia verde em Washington ­daqui para a frente.  


(Publicidade/Exame)

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