(Getty/Getty Images)
Filipe Serrano
Publicado em 4 de junho de 2020 às 05h00.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h54.
Quase seis meses depois do início da pandemia, os olhos dos cientistas se voltaram novamente para a cidade chinesa de Wuhan. Epicentro da infecção, em maio a cidade decidiu colocar em prática um programa inédito no mundo para testar toda a população de 11 milhões de habitantes. Até o dia 25, cerca de 6,8 milhões passaram pelos exames e os resultados iniciais acenderam um alerta. Os testes identificaram 206 pessoas com o vírus ativo no organismo. E, mesmo sem sintomas, elas estavam espalhando a doença. A situação de Wuhan logo deve se tornar um padrão pelo mundo. A epidemia está praticamente controlada. Apenas um ou outro caso continua sendo registrado. Mas o risco de uma segunda onda de infecções ainda é alto. Amostras coletadas em março e abril por pesquisadores chineses indicam que só 10% da população havia desenvolvido anticorpos contra o vírus. É provável que o número tenha aumentado, mas a cidade ainda está longe de atingir a imunização.
O rápido avanço da covid-19 fez os especialistas se perguntarem se a epidemia não desapareceria sozinha, como ocorreu com outros surtos. A ideia tem relação com um conceito antigo conhecido como imunidade de rebanho. O termo apareceu pela primeira vez em artigos científicos na década de 1910. Eles descreviam uma imunização natural que poderia ser alcançada em bovinos e suínos depois que parte dos animais de um grupo tivesse formado anticorpos contra uma doença. Com o avanço das campanhas de vacinação, a ideia passou a se aplicar aos humanos.
A imunidade de rebanho funciona da seguinte maneira: uma vez que a maioria da população fica imunizada, o agente infeccioso (um vírus, no caso) não encontra mais pessoas suscetíveis e deixa de circular. Quem nunca teve a doença é protegido por tabela. O objetivo das vacinas é justamente induzir a imunização sem que a doença precise se espalhar. Doenças que chegam a desaparecer são raras. “A varíola é uma das únicas que desapareceram. Tínhamos uma vacina e gente vacinada o suficiente para interromper a proliferação do vírus”, diz Luiz Vicente Rizzo, diretor de pesquisa do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein.
Para que uma doença desapareça, é preciso que uma boa quantidade de pessoas esteja imunizada. No caso do sarampo, o percentual de imunização fica entre 92% e 95% da população. O número é proporcional à taxa de replicação de um vírus, conhecida pelo símbolo R0. O sarampo é altamente contagioso. Cada infectado pode transmitir o vírus para outros 12 ou mais. Isso significa que a taxa de reprodução (o R0) é igual a 12. Os cientistas ainda estudam qual é o R0 da covid-19, mas a estimativa é que fique entre 2 e 3. Sabendo essa taxa, estima-se que a covid-19 possa ser erradicada se 60% a 70% das pessoas estiverem imunizadas. A quarentena pode reduzir o R0 para perto de 1 (quando cada pessoa infectada passa a doença a apenas uma). Nesse caso, o percentual de imunização cai para o nível entre 20% e 30%. Esse é o número mágico que todas as autoridades de saúde pública do mundo inteiro agora querem alcançar. Em teoria, é possível diminuir a taxa de infecção a um nível tão baixo que a epidemia seria controlada até que a população alcançasse a imunização natural.
Parece fácil no papel, mas a realidade é bem mais complexa. A epidemia atinge cada cidade e cada país de forma diferente. E a circulação das pessoas torna o controle mais difícil. Um país ou um município que tenha atingido a imunização poderá voltar a registrar novos surtos se uma pessoa infectada chegar de um lugar onde a doença ainda esteja circulando. Isso já aconteceu no passado. O Brasil ficou três anos sem registrar casos de sarampo e a doença era considerada erradicada até reaparecer em 2018. No caso da covid-19, a reincidência já ocorre. Em maio, a Coreia do Sul decretou o fechamento de museus e parques três semanas depois da reabertura por causa de um novo surto no país.
Também não se sabe ao certo quanto tempo dura a imunização. As pesquisas com a sars e a mers (outras síndromes respiratórias) sugerem um prazo de dois a três anos. “Sabemos pela experiência com outros coronavírus que a imunidade dura um tempo. No caso da Sars-CoV-2 [o novo coronavírus], até hoje não se demonstrou reinfecção”, diz Celso Granato, infectologista e diretor clínico do grupo Fleury. Além disso, um problema é que uma parcela significativa dos que contraem o coronavírus não apresenta nenhum sintoma e pode transmitir o vírus sem se dar conta. No estado de Washington, nos Estados Unidos, 53 participantes de um coral com 61 pessoas ficaram doentes depois de um ensaio do grupo em março. Um cantor estava com a doença sem saber. Dois dos infectados morreram. Essas pessoas de contágio mais alto são chamadas de “superespalhadores”. Por fatores genéticos não identificados, elas se tornam mais contagiosas. “Quando uma pessoa é infectada, em média, o vírus passará para outras duas. E depois para mais duas. Aí há um aumento exponencial da infecção”, diz Timothy Springer, professor de bioquímica na Universidade Harvard.
Há também dificuldade em saber quantas pessoas estão de fato imunizadas. Pesquisadores têm buscado estimar o percentual da população que desenvolveu anticorpos (a chamada soroprevalência) realizando testes aleatórios. A maioria dos estudos mostra que nenhum país ou cidade conseguiu atingir um nível de imunização satisfatório. Até o fim de abril, o local com a maior soroprevalência era a província de Guilan, no Irã, com 33%. Em Madri, na Espanha, um dos primeiros países a ser afetados duramente pela doença, somente 11,3% da população estava imunizada. Na Espanha como um todo, eram 5%. Já na cidade de Nova York, área mais afetada pela doença nos Estados Unidos, apenas 21% da população havia sido infectada.
No Brasil, a situação é parecida. Na capital paulista, apenas 5% da população estava imunizada, segundo um estudo da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de São Paulo. Outra pesquisa coordenada pela Universidade Federal de Pelotas e realizada em 90 cidades brasileiras, incluindo 21 capitais, estimou que só 1,4% da população desses locais havia desenvolvido a imunidade. A capital com a maior soroprevalência é Belém, com 15,1%. Em Manaus, Fortaleza e Rio de Janeiro — três capitais com muitos casos —, os números são 12,5%, 8,7% e 2,2%, respectivamente.
É por essa razão que adotar uma estratégia que combine o distanciamento social com o manejo dos leitos em hospitais para tratar os doentes continua sendo a melhor alternativa, segundo os especialistas. Um modelo matemático desenvolvido por Rubens Lichtenthäler Filho, professor de física nuclear na Universidade de São Paulo, e seu filho, Daniel, que é médico, estima que o distanciamento social no Brasil, ainda que não tenha sido seguido à risca, reduziu a taxa de contágio de um R0 de 3,5 para 1,4 em meados de maio. Uma quarentena mais rígida é uma saída para resolver mais rápido a crise. “É preciso apertar as medidas de distanciamento social”, afirma Lichtenthäler. “Do ponto de vista matemático, se a taxa de transmissão chegasse a zero, 14 dias depois o vírus teria desaparecido.”
Fora do Brasil, os países que já passaram pelo pico da pandemia têm adotado uma estratégia, agora, parecida com a que a Suécia adotou desde o início da pandemia. O país ficou famoso por não ter aplicado o confinamento rígido (leia mais na pág. 86), apostando que atingiria a imunidade de rebanho. A realidade dos suecos agora é vista em outros lugares. Na Holanda, ninguém é obrigado a ficar em casa, mas as medidas de distanciamento continuam em vigor. De acordo com o governo, o objetivo é controlar o avanço da doença e evitar um colapso dos hospitais, mas permitir que as pessoas sigam com suas atividades. Outra iniciativa que tem ganhado adeptos é o uso de um aplicativo de “rastreamento de contatos”, que informa se alguém próximo já contraiu o vírus. Países como Austrália, China, Colômbia, Índia, Israel, Noruega, Nova Zelândia, Singapura e Suíça estão usando soluções desse tipo para manter a população informada sobre possíveis contaminações no entorno. Há preocupações com a privacidade, mas a ferramenta pode ajudar no controle da epidemia. O Reino Unido e a França estudam adotar um aplicativo semelhante.
Enquanto uma vacina não for desenvolvida, o distanciamento social será importante para manter a taxa de contágio no nível mais baixo possível e evitar um colapso no sistema de saúde. Um estudo recente da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica, mostra que, para um país evitar a sobrecarga dos leitos de UTI, é preciso manter a taxa de reprodução do vírus perto de 1. Levando em conta que 2% das pessoas infectadas precisam ser internadas em UTIs, os pesquisadores calcularam quanto tempo levaria para atingir a imunidade de rebanho sem sobrecarregar o sistema de saúde. No caso dos Estados Unidos, seriam necessários pelo menos cinco meses. Já no Reino Unido levaria quase dois anos (22 meses).
Os dados do Brasil não foram calculados, mas a lógica é a mesma. A única forma de a imunidade de rebanho funcionar é com uma adesão maior ao distanciamento social e com o achatamento da curva de casos, o que não tem acontecido. “Tudo é uma questão de velocidade. Se fizermos 20% da população desenvolver os anticorpos de forma lenta e controlada, o sistema de saúde poderá aguentar. Mas as estimativas apontam que chegaremos a esse valor em um mês e meio. Assim, mais gente morrerá e os hospitais entrarão em colapso”, afirma Celso Granato, do grupo Fleury. É o que diz também David Dowdy, professor e infectologista na Universidade Johns Hopkins. “No longo prazo e com uma vacina, a imunidade de rebanho poderá ser uma opção, mas no curto prazo não. Estamos longe de alcançá-la e essa decisão poderia expandir o número de mortes”, diz. Mesmo em países mais ricos, os sistemas de saúde não seriam capazes de suportar a quantidade de doentes se a doença se espalhasse livremente até a imunidade ser atingida. No Reino Unido, o primeiro-ministro, Boris Johnson, voltou atrás em sua estratégia de atingir a imunidade de rebanho depois de se dar conta desses riscos. Apesar das incertezas sobre o futuro da pandemia, o que se vê é que o distanciamento social continua sendo a melhor arma. Valia para o início da pandemia e continua valendo agora.