Usina de Belo Monte, no Pará: atrasos em obras geraram contas bilionárias | Lalo de Almeida/Folhapress / (Lalo de Almeida/Folha de S.Paulo)
Flávia Furlan
Publicado em 7 de setembro de 2017 às 05h31.
Última atualização em 7 de setembro de 2017 às 05h31.
A fabricante de veículos americana general motors decidiu pôr em prática um programa para reduzir o consumo de energia, que costuma ser seu segundo maior custo, atrás da mão de obra. A notícia dessa medida, abrangendo as três fábricas da montadora, nas cidades paulistas de São Caetano do Sul e São José dos Campos e na gaúcha Gravataí, não é de agora — é de 2005. Naquela época, ainda eram recentes as lembranças da série de apagões, causados por falta de planejamento no setor de energia, e do racionamento de 2001. Como parte do programa, a GM montou um departamento de eficiência energética, premiou as áreas que mais economizaram e eliminou pontos de desperdício. Com toda a mudança, em dez anos, a GM cortou pela metade o gasto com energia em cada carro produzido no país. Mas, desde 2012, um conjunto de problemas alheios à empresa, como falta de chuvas, atrasos em projetos de geração e intervenções do governo, prejudicou o setor elétrico e fez a tarifa aumentar mais de 50%. Ou seja: em cinco anos, a conta da montadora subiu o equivalente ao que ela levou o dobro de tempo para economizar. “Tudo o que fazemos é pela busca da competitividade do produto, mas, no Brasil, o custo da energia acaba atrapalhando”, diz Glaucia Roveri, gerente de energia da GM no país.
Os problemas no setor de energia têm ficado tão graves e a conta tem aumentado tanto — provocando problemas como a perda de competitividade relatada pela GM — que o governo federal deu início a uma ampla reestruturação. Já era tempo: as residências e as indústrias brasileiras chegam a pagar mais que o dobro do que as similares mexicanas e americanas pagam pela energia elétrica. Numa tentativa de atenuar essa discrepância, o governo propôs em julho novas regras para o setor e, até meados de agosto, havia recebido mais de 200 sugestões e críticas. O projeto continua em análise e a previsão é que, até outubro, as novas regras sejam encaminhadas ao Congresso Nacional. Já no fim de agosto foi anunciada a intenção de privatizar a Eletrobras, estatal que é a maior empresa do setor no Brasil. É uma medida que, apesar de ter motivação na urgente necessidade de reduzir o rombo nas contas públicas, pode encerrar um histórico de desperdícios. “O governo anterior tirou a racionalidade do setor, ninguém mais entendia as regras e todo mundo correu para a Justiça para resguardar seus direitos”, diz Fernando Coelho Filho, ministro de Minas e Energia. “Estamos tentando acabar com essa lógica.”
Num primeiro momento, não há como fugir: a conta de luz ainda vai subir. Os brasileiros devem pagar nos próximos anos um preço alto para resolver uma herança decorrente de uma medida provisória de 2012 que permitiu a renovação antecipada de concessões no setor mediante a queda forçada de 20% nas tarifas. Dessa medida, sobrou uma conta de 107 bilhões de reais para os consumidores. Uma parte refere-se à gratificação pelos investimentos feitos pelas transmissoras que renovaram as concessões em 2012. Também entra nessa soma um ressarcimento às distribuidoras por elas terem fechado contratos no mercado livre a preços altos porque, devido à lambança criada pela medida do governo e por escassez de chuvas, faltou energia no mercado regulado. “A ideia é trazer os preços para uma realidade da qual nunca deveriam ter saído, com mais transparência”, diz Luiz Augusto Barroso, presidente da Empresa de Pesquisas Energéticas, ligada ao Ministério de Minas e Energia. Diante dessas pendências, as indústrias devem pagar 14% mais caro pela energia até 2021 e os consumidores do mercado regulado ainda terão tarifas acima de 400 reais o megawatt-hora até 2020.
A privatização da Eletrobras é a mais ambiciosa das medidas anunciadas para estancar a sangria no setor. Nos últimos cinco anos, a estatal gerou uma conta de 234 bilhões de reais para consumidores de energia elétrica e contribuintes. Por exemplo, com o atraso em projetos de geração, entre eles a hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, a empresa teve uma despesa adicional de 15 bilhões de reais com a compra de energia de térmicas a gás natural. De 2012 a 2015, a Eletrobras registrou prejuízo superior a 30 bilhões de reais, perdeu 40% do patrimônio líquido e chegou a um endividamento de nove vezes o lucro operacional. No ano passado, o Tesouro teve de fazer um aporte de 2 bilhões de reais na empresa.
Para corrigir tudo isso, o governo quer vender ao setor privado seis distribuidoras controladas pela Eletrobras. Também quer oferecer ações da holding na bolsa de valores, reduzindo a fatia da União, do BNDES e de fundos federais, hoje de 63%, a menos da metade, mas mantendo o poder de veto em decisões. Enquanto isso, a Eletrobras passa por uma reestruturação que prevê a economia de 1,8 bilhão de reais ao ano. “Com esse plano, vamos levar a empresa a ser operacionalmente estável e menor”, diz Wilson Ferreira Júnior, presidente da Eletrobras. “A democratização do capital permitirá à Eletrobras ser competitiva diante das concorrentes.” Um estudo do banco Itaú calcula que, sob comando privado, o custo administrativo poderia cair à metade — desde 2012, com as despesas operacionais num patamar 50% superior às tarifas, a empresa teve perdas de 20 bilhões de reais. Se a redução for feita, o valor de mercado da Eletrobras poderá dobrar para 40 bilhões.
Olhando para a frente, superado o momento de pagar as contas do passado, economistas, executivos do setor e consumidores acreditam que as propostas do governo apontam no sentido de abaixar o preço da energia elétrica. Mas levará tempo, uma vez que o passo da reforma é gradual. Os princípios são de tirar amarras, dar mais liberdade ao mercado e corrigir distorções que fazem a tarifa subir. Uma das ideias é que empresas consumidoras com demanda a partir de 75 quilowatts possam adquirir energia no mercado livre. A demanda mínima para acesso, hoje de 3 000 quilowatts, vai cair gradual-mente até 2028. Os consumidores residenciais estão fora da regra, segundo o ministério, devido à ausência de avaliações mais profundas dos impactos da inclusão desses clientes. Segundo os cálculos da gestora de energia Comerc, o mercado livre, hoje com 5 000 consumidores, poderá ser multiplicado por dez com a liberação para novos entrantes. “Vários países estão permitindo que o consumidor escolha o fornecedor, e isso ajuda a melhorar a qualidade dos serviços e a tornar as tarifas mais competitivas”, diz Miguel Setas, presidente no Brasil da EDP, estatal portuguesa que foi privatizada no fim da década de 90. De acordo com Setas, a abertura do setor em Portugal durou de 1999 a 2006 e foi capaz de derrubar os preços do mercado livre para um patamar inferior ao do regulado.
Uma boa ajuda para a redução da conta de luz deve ser dada pelo corte de subsídios. Um exemplo é o desconto concedido desde o fim da década de 90, variando de 50% a 100%, nas tarifas de transmissão e distribuição dos consumidores que compram energia de pequenas centrais hidrelétricas ou de geradores que usam as fontes solar, eólica e de biomassa. Esse desconto equivale a 1,3 bilhão de reais por ano e segue a lógica da meia-entrada: os usuá-rios dessas fontes não pagam, e o custo é rateado entre todos os consumidores do país. Na época em que a regra foi criada, a energia eólica, por exemplo, custava seis vezes mais que a hidrelétrica, uma diferença que já caiu para 53%. “O desconto valeu muito para promover o desenvolvimento das fontes renováveis, mas hoje não faz mais sentido”, diz Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica. O governo pretende reduzir a zero esse incentivo até 2030.
A falta de governança e de eficiência da Eletrobras também contribuiu para que os subsídios disparassem. A distribuidora da estatal no Amazonas tem um índice de perda na rede que corresponde a 118% o consumo de seus clientes residenciais, segundo dados da consultoria do setor elétrico TR Soluções. Isso significa que as usinas que abastecem esse sistema estão gerando energia para ser roubada em volume superior ao que fornecem para as residências amazonenses. O pior: o combustível comprado para abastecer as geradoras térmicas da região, que não estão ligadas ao sistema elétrico nacional, é pago por todos os consumidores, num encargo que deve chegar a 5 bilhões de reais neste ano. Ainda sobre essa conta, uma fiscalização da Agência Nacional de Energia Elétrica de 2016 mostrou que a Eletrobras teria de devolver 3 bilhões de reais pedidos para reembolso da compra de combustível que não foi usado para gerar energia. A empresa nega a irregularidade. “A redução do encargo depende da privatização das distribuidoras da Eletrobras, que pode trazer mais governança e menos perdas às empresas”, diz Helder Sousa, executivo da TR Soluções.
Economistas calculam que haja ainda outros ganhos com a redução da presença do governo no setor elétrico. Um relatório do banco BTG Pactual estima que os brasileiros paguem 58 bilhões de reais ao ano para cobrir o custo de capital dos projetos de geração, transmissão e distribuição de energia. O retorno do capital exigido aqui pelos empreendedores é de 8% ao ano em termos reais. O principal motivo de pedirem um alto retorno em relação ao de outros países é que a realidade operacional e regulatória é arriscada no Brasil. Portanto, quanto mais lucro os investidores puderem ter num tempo menor, antes de algo inesperado ocorrer, melhor para eles. Para o BTG, como a reforma tem medidas que darão mais segurança aos empreendedores, o retorno sobre o capital exigido poderia cair para 6% ao ano, gerando uma economia de 14 bilhões de reais ao ano nas contas de luz — uma queda de 7% nas tarifas. Até que se chegue lá, as empresas continuam investindo em eficiência energética, assim como a GM, que agora implementou um programa para cortar em mais 5% a despesa com energia. Mas chegar ao nível competitivo de México e Estados Unidos ainda é um sonho.
“NÃO DÁ MAIS PARA BANCAR A ELETROBRAS”
O ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, diz que espera embate político e resistência, mas que o único caminho bom para a estatal é a privatização
Quando assumiu o Ministério de Minas e Energia em maio de 2016, o pernambucano Fernando Coelho Filho reuniu executivos de empresas privadas para entender os principais problemas do setor — que ele passou a resumir como a “perda da racionalidade econômica”. Desde julho, lançou metas ambiciosas para uma reforma do setor e para a privatização da Eletrobras. Coelho Filho prevê que tudo isso de início levará a embates políticos e a aumento de tarifas. “Mas o setor ficará mais eficiente.”
Qual o objetivo da reforma do setor e da privatização da Eletrobras?
O governo anterior tirou a racionalidade econômica do setor elétrico, e todo mundo correu para a Justiça para resguardar seus direitos. Isso gerou uma série de contas. Estamos tentando acabar com essa lógica.
Qual deve ser o impacto dessas medidas nas tarifas?
Não há “almoço grátis”: estamos pagando pelos equívocos do passado, pelo custo de perdas no sistema, pelo atraso em obras e pela elevação dos subsídios, que passaram de uma conta de 1 bilhão de reais para 17 bilhões, repartidos por todos os consumidores. Haverá um ajuste inicial que vamos fazer gradualmente para não gerar um tarifaço. Depois disso, as mudanças propostas devem levar o setor a um modelo mais eficiente.
Há resistência política para privatizar a Eletrobras. Como lidar com isso?
Quando tomamos a decisão, sabíamos que haveria uma série de reações e de disputas, o que é natural. Mas tudo vai entrar na privatização. Apenas dois ativos serão analisados com mais calma, a subsidiária Eletronuclear e a hidrelétrica de Itaipu. O que tem de ser ressaltado é que a Eletrobras tem dado prejuízo e exibe os piores retornos do setor. Em 2016, o Tesouro teve de fazer um aporte de 2 bilhões de reais na companhia. É um custo que o consumidor não sabe, mas ele está bancando. E não dá mais para ficar bancando isso.