A cidade de 15 minutos representa um distanciamento grande do passado recente, e um número cada vez maior de cidades vem se tornando uma marca poderosa para urbanistas e políticos desesperados por convencer moradores a adotar uma existência de baixo carbono (Orbon Alija/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 3 de dezembro de 2020 às 05h12.
O cortiço de Minimes, em Paris, não parece muito o futuro das cidades. Um sisudo complexo de tijolos e pedras calcárias constituído em 1925 em um beco no distrito de Marais, é o tipo de estrutura que, em um lugar fotogênico como Paris, as pessoas geralmente atravessam sem prestar muita atenção. Um olhar mais atento ao pátio do imóvel, porém, revela uma transformação notável. O antigo estacionamento do local virou um jardim público com mudas de plantas. Os prédios ao redor estão sendo convertidos em 70 atraentes apartamentos de moradia pública, por um custo de 12,3 milhões de euros. Em outra parte do complexo renovado estão escritórios, uma creche, oficinas artesanais, um consultório e um café operado por pessoas com autismo.
A abordagem verde, de uso misto e comunitário, estende-se além daquelas ruas. A 5 minutos dali, a vasta Praça da Bastilha está sendo reformada como parte de uma renovação de sete grandes praças, ao custo total de 30 milhões de euros, bancado pela cidade. Não mais uma ilha de trânsito barulhento, o lugar hoje é voltado principalmente para pedestres, com filas de árvores onde antes só havia asfalto.
Um mar de bicicletas transborda pela praça na recapeada e protegida “coronapista” — uma das ciclovias criadas para facilitar o deslocamento com bicicleta em toda a Grande Paris durante a pandemia de covid-19. De lá para cá, a prefeitura anunciou que as pistas serão permanentes, financiadas por 300 milhões de euros em verba contínua da região e complementos de outras prefeituras e do governo francês.
Juntas, as novas árvores e ciclovias, instalações comunitárias e habitação social, casas e locais de trabalho refletem uma visão potencialmente transformadora para urbanistas: a cidade de 15 minutos. “A cidade de 15 minutos representa a possibilidade de uma cidade descentralizada”, diz Carlos Moreno, diretor científico e professor especializado em sistemas complexos e inovação na Universidade Paris 1. “O coração da ideia é misturar funções sociais urbanas para criar uma vizinhança viva” — reproduzida, como fractais, ao longo de toda a extensão urbana.
Nomeado representante especial de cidades inteligentes pela prefeita de Paris, Anne Hidalgo, Moreno vem se tornando uma espécie de vice-filósofo na prefeitura, à medida que seus esforços transformam a capital francesa no que ele chama de “cidade de proximidades”. Seu conceito de 15 minutos foi idealizado, em primeiro lugar, para diminuir as emissões urbanas de carbono, reimaginar nossas cidades não como um lugar dividido em zonas discretas para viver, trabalhar e se divertir, mas como mosaicos de vizinhanças em que quase todas as necessidades dos moradores podem ser contempladas a 15 minutos da casa deles a pé, de bicicleta ou de transporte público.
À medida que escritórios, lojas e casas são trazidos para mais perto, libera-se o espaço da rua anteriormente dedicado a carros, eliminando a poluição e abrindo caminho para jardins, ciclofaixas e instalações de esportes e lazer. Tudo isso permite aos moradores levar suas atividades diárias para fora de suas casas (que em Paris tendem a ser pequenas), em ruas e praças seguras e convidativas.
Ideias semelhantes têm existido há muito tempo, inclusive em Paris. Bairros e vilas caminháveis eram a regra muito antes de os automóveis e as leis de zoneamento se espalharem e dividirem as cidades no século 20. No entanto, a cidade de 15 minutos representa um distanciamento grande do passado recente, e um número cada vez maior de cidades vem se tornando uma marca poderosa para urbanistas e políticos desesperados por convencer moradores a adotar uma existência de baixo carbono.
Líderes em Barcelona, Detroit, Londres, Melbourne, Milão e Portland (Oregon) estão trabalhando com visões parecidas. A pandemia os encorajou ainda mais, com prefeitos do mundo todo defendendo o modelo do relatório de julho do C40 Cities Climate Leadership Group (“Grupo de Lideranças Climáticas Municipais C40”, numa tradução livre) como algo central para seus projetos de recuperação.
Com as mudanças climáticas, a covid-19 e o descontentamento político combinados para desafiar os ideais do globalismo, a esperança é reinventar as cidades, em primeiro lugar, como locais onde as pessoas possam andar, pedalar e passar o tempo, em vez de só pegar transporte para chegar a algum lugar. A cidade de 15 minutos pede um retorno a um modo de vida mais local e de certa forma mais lento, no qual o tempo de deslocamento é investido em relações mais ricas com o que está ao redor.
“Crises como a que estamos vivendo nos mostram a possibilidade de redescobrir a proximidade”, diz Moreno. “Como agora temos a possibilidade de ficar mais perto de casa, as pessoas estão redescobrindo o tempo útil — outro ritmo de vida.”
É uma visão utópica em uma era de desconforto social profundo — mas uma visão que pode piorar as desigualdades já existentes caso seja implementada de modo fragmentado, sem focar a igualdade. Os céticos também se perguntam se uma cidade que não se organiza mais em torno de chegar ao trabalho é mesmo uma cidade.
Sonhos de acabar com o planejamento urbano segmentado que dominou o século 20 — com a indústria nas periferias, áreas residenciais dando brilho à cidade, o comércio no centro e malhas viárias conectando as longas distâncias — não são novidade, é claro. Pensadores urbanos têm defendido a preservação ou a volta dos bairros caminháveis, socialmente mistos, pelo menos desde a publicação, em 1961, da homenagem de Jane Jacobs ao Greenwich Village de Manhattan, The Death and Life of Great American Cities (“Morte e vida de grandes cidades americanas”, numa tradução livre).
Esse ativismo, aos poucos, foi filtrado na ortodoxia dominante do planejamento. Em 1962, Copenhague, na Dinamarca, transformou sua principal rua comercial em calçadão, tornando-se a primeira de muitas cidades europeias densamente construídas a adotar essa abordagem. Nos Estados Unidos, o Novo Urbanismo, das décadas de 1980 e 1990, criou um modelo de planejamento (100% implementado pela primeira vez em Seaside, na Flórida) que dava preferência a casas e apartamentos geminados em vez de imóveis isolados, além de favorecer ruas caminháveis e arborizadas e uma cuidadosa distribuição de escolas, lojas e parques para diminuir a necessidade de dirigir.
Desde a virada do milênio, preocupações crescentes quanto à poluição do ar e ao aquecimento global trouxeram novas inovações, como a taxa de congestionamento implantada em Londres em 2003 para carros se dirigem ao centro e as ampliações robustas de redes de trânsito público em cidades que vão de Moscou a Medellín.
O conceito de cidade de 15 minutos inclui todas essas tendências em um programa intuitivo que moradores comuns podem comparar com suas próprias experiências. Ele também tem servido de resposta às pressões causadas pela especulação imobiliária e pela alta do turismo, que estão aumentando aluguéis e forçando moradores e empresas a sair de antigas comunidades. A cidade de 15 minutos busca proteger a vitalidade que inicialmente tornou atraentes bairros diversos e de orientação local.
Paris tem seguido nessa direção há algum tempo. Na gestão de Hidalgo, prefeita do Partido Socialista eleita pela primeira vez em março de 2014, a cidade proibiu os veículos mais poluentes, transformou vias movimentadas às margens do Rio Sena em um parque linear e, numa tentativa de manter comunidades socialmente mistas, ampliou a rede de habitação social da cidade para as regiões mais ricas. Foi só em 2020, porém, que Hidalgo reuniu esses esforços sob o guarda-chuva da cidade de 15 minutos, transplantando a expressão do mundo acadêmico e dando-lhe nova urgência política.
Durante sua campanha de reeleição, Hidalgo se juntou ao criador do conceito, Moreno, um ex-especialista em robótica que descobriu que seu interesse primário era no ambiente em que robôs funcionam. Hidalgo já havia preparado boa parte do terreno político para o modelo de Moreno em seu primeiro mandato; agora, ela poderia unir todas aquelas ciclofaixas e fechamentos de pistas para carros a uma visão comparável à animação e à conveniência de uma metrópole com a facilidade e o verde de uma vila.
Desde que ganhou a reeleição, em junho, Hidalgo dobrou a aposta, nomeando uma comissária para a cidade dos 15 minutos, Carine Rolland. Vereadora do Partido Socialista que já desempenhou um papel voltado à cultura na 18ª arrondissement (divisão francesa equivalente a distrito ou região), Rolland também se tornou comissária de cultura da Paris. “É verdade que Paris, até certo ponto, já é uma cidade de 15 minutos”, diz ela, “mas não do mesmo jeito em todos os bairros e não em todas as áreas públicas.”
Há muito a fazer nos distritos operários no extremo leste de Paris e em muitas áreas próximas ao anel viário do Boulevard Périphérique, por exemplo. Em áreas como essas, torres de habitação social frequentemente prevalecem, e mercearias e instalações comunitárias como centros esportivos e clínicas são escassos. Isso tem consequências particularmente graves para pessoas mais velhas e aqueles com limitação de mobilidade, destaca Rolland.
Perto do coração de Paris, diz ela, estão as áreas “caracterizadas pelo que chamamos de ‘monoatividade’ — uma única atividade comercial que ocupa a rua inteira”. Tais áreas ficam visivelmente ao redor da região leste do anel interno de avenidas e são dominadas por escritórios e pequenas lojas. Com isso, as ruas que, durante a semana, são animadas se tornam quietas e pouco convidativas durante as noites e fins de semana.
O cargo de Rolland como comissária da cidade de 15 minutos envolve coordenar esforços relacionados de diferentes departamentos. Em setembro, por exemplo, dez pátios de escolas reabriram como “quintais-oásis” verdes, elevando o total para 41 desde o lançamento da iniciativa em 2018. Cada pátio teve árvores plantadas e foi remodelado com superfícies macias e hidrófilas que absorvem a água da chuva e ajudam a combater o calor do verão.
Os pátios são liberados após as aulas para uso como jardins públicos ou campos esportivos, e abertos em “ruas escolares” reformuladas, onde carros são banidos ou têm circulação bastante limitada, além da instalação de árvores e bancos. Transformações desse tipo, segundo Rolland, envolvem reunir departamentos responsáveis por educação, esportes, estradas e parques, além de comerciantes e organizações comunitárias locais.
Paris está longe de ser a única a tentar esse tipo de transformação. As novas “mini-Holandas” de Londres importam ideias de planejamento holandesas que visam reduzir ou bloquear o acesso de carros a polos comerciais locais. Barcelona vem transformando quarteirões de 400 por 400 metros nas estradas, localizados em áreas repletas de torres de apartamentos, em “superquarteirões”, na maioria livres de carros.
Madri já declarou ter planos de copiar a ideia ao manter sua meta de se tornar uma “cidade de 15 minutos” à medida que se recupera da pandemia. Milão tem dito o mesmo, e a expectativa é tornar permanentes as ciclovias e as calçadas quando a economia for restabelecida. Porém, transformar a cidade de 15 minutos num movimento de fato global exigirá uma grande batalha em torno de uma tensão urbana fundamental: a supremacia do automóvel.
Uma coisa é transformar uma Paris ou uma Barcelona — cidades que estavam quase completamente formadas antes da invenção do automóvel — em uma utopia bairrocêntrica. Transformá-las é quase como mudar o visual de uma supermodelo. O desafio é muito maior nos tipos de cidades mais jovens e dispersas encontradas na América do Norte ou na Austrália, onde carros continuam a ser a forma predominante de transporte.
Alguns já vêm tentando. Desde 2017, Melbourne trabalha em um projeto de planejamento de longo prazo centrado na “vizinhança de 20 minutos”. Porém, embora as aspirações da cidade sejam semelhantes às de Paris, os problemas na implementação do projeto dificilmente poderiam ser mais diferentes, em particular nas áreas mais afastadas do já adensado centro e nos subúrbios.
“Alguns subúrbios de classe média são bem servidos pelo transporte público e começam a experimentar adensamento, mas outros não estão na mesma situação”, afirma Roz Hansen, urbanista que supervisionou a preparação do projeto de Melbourne. “Enquanto isso, os subúrbios mais afastados ainda têm densidade demográfica muito baixa, em parte por causa da escassez de interligações de transporte público.”
A cidade vem tentando melhorar as opções de transporte e emprego nos subúrbios mais distantes, que se caracterizam por casas que abrigam só uma família. Alguns dos subúrbios de classe média receberam projetos piloto em que há incentivo a empreendimentos comerciais e residenciais, e as ruas são remodeladas para aumentar o espaço para bicicletas e melhorar a caminhabilidade.
Porém, para criar e conectar bairros de 20 minutos de verdade, será essencial investir em transporte público. “Burocratas continuam a pensar: ‘Ah, a ideia é fazer uma viagem de 20 minutos de carro’, mas não tem nada a ver com o carro”, diz Hansen. “A ideia do bairro de 20 minutos é ter modais de transporte ativo e aumentar a captação de acessibilidade de uma região. Se você anda, sua captação é de 1 a 2 quilômetros. Se você vai de bicicleta, pode ser de 5 a 7 quilômetros. Com o transporte público, pode ser de 10 a 15 quilômetros.”
Cidades dos Estados Unidos com projetos igualmente otimistas também vêm lutando para encontrar um equilíbrio entre visão e realidade. Em 2016, o então prefeito de Detroit, Mike Duggan, apresentou um plano para transformar em bairros de 20 minutos os corredores de alta densidade fora do distrito comercial central dessa cidade dispersa, de 362 quilômetros quadrados.
A principal inovação da cidade até o momento é uma obra de 17 milhões de dólares para pedestres na região de Livernois-McNichols, cerca de 15 quilômetros a nordeste do centro. O projeto terminou no início de 2020, enfatizando ruas mais estreitas, calçadas mais largas para receber mesas de cafés e nova iluminação. Moradores e comerciantes, em geral, têm gostado das melhorias; uma caminhada ao supermercado atualmente é uma tarefa muito mais agradável.
Porém, essa função urbana básica está fora do alcance da grande maioria na cidade. Estima-se que 30.000 cidadãos não tenham acesso a uma mercearia que ofereça todos os serviços, segundo um relatório de 2017 do Conselho de Política Alimentar de Detroit. Katy Trudeau, vice-diretora municipal de planejamento e desenvolvimento, diz que um grande número de pessoas, não faz muito tempo, tinha de se deslocar até os subúrbios para fazer compras e outras coisas.
De modo geral, isso melhorou, e outros nove distritos foram escolhidos para melhorias nos moldes das de Livernois-McNichols. Contudo, problemas fiscais crônicos e a existência de um grande número de estruturas em ruínas e abandonadas, que foram surgindo à medida que a população da cidade diminuía, têm tornado improvável uma transformação rápida.
Até o momento, a maioria dos feitos de Detroit no que se refere à cidade de 20 minutos tem sido modesta, inclusive os passos rumo a um plano de transportes abrangente e os investimentos contínuos em iluminação e recapeamento. Trudeau também destaca um novo fundo público-privado de moradia, de 50 milhões de dólares, destinado à habitação acessível, para ajudar moradores de baixa renda a continuar onde estão à medida que o valor dos imóveis subir nos bairros reestruturados.
“Essas coisas podem parecer muito básicas em Paris, mas aqui sofremos demais com as perdas populacionais e com a incerteza financeira decorrente de falências”, diz ela. “Temos de equilibrar essas estratégias concentradas com estratégias municipais que melhorem a qualidade de vida de todos.” O rótulo de 20 minutos tem servido principalmente como um jeito mais fácil e útil de comunicar as metas da cidade a moradores e investidores. Trudeau espera que iniciativas como o fundo habitacional garantam que isso inclua vários segmentos da população.
Os planos de Detroit foram parcialmente inspirados por Portland, no estado de Oregon, celebrada em círculos urbanistas como um modelo de planejamento municipal nos Estados Unidos. Portland tem a maior taxa de circulação de bicicletas entre as metrópoles americanas e uma fronteira estreita que define quanto ela pode ser ampliada, além de políticas progressistas com foco em encorajar a produção de moradias densas e de baixo custo. “Toda hora nos confundem com Paris”, brinca Chris Warner, diretor da Secretaria de Transportes de Portland.
No entanto, mesmo Portland levará anos para atingir o nível de condensação de um “bairro completo”, como definiu a meta do plano de 2013 da cidade. Em torno de três quartos do terreno residencial de Portland são ocupados principalmente por casas de uma única família, e mais da metade de sua população se desloca de carro. Um relatório recente da Brookings Institution sobre comportamentos locais de viagem descobriu que, entre seis áreas metropolitanas dos Estados Unidos, Portland tinha a menor distância média percorrida por pessoas que se deslocam para trabalhar, fazer compras e tratar de outros assuntos.
Porém, essa distância ainda era de quase 10 quilômetros, longe de ser uma caminhada de 15 minutos ou uma pedalada até o dentista ou a lavanderia. Para combater isso, a Secretaria de Transportes está investindo a maior parte de seu orçamento de 150 milhões de dólares em grandes obras de infraestrutura para bicicletas e para a circulação de pedestres no interior de bairros completos, e em meios de transporte para conectá-los.
Adie Tomer, pesquisador do Programa de Políticas Metropolitanas da Brookings e coautor do relatório, diz que o conceito de 15 minutos não funciona na América porque “as pessoas nos Estados Unidos já vivem em uma cidade de 15 minutos; o que acontece é que elas estão usando o carro para percorrer longas distâncias”. Urbanistas preocupados com a qualidade de vida urbana e com as emissões de carbono crescentes poderiam focar a distância em vez do tempo, segundo ele. Tomer sugere que talvez a “cidade de 3 milhas” (4,8 quilômetros) tenha mais receptividade.
Independentemente de como o conceito é apresentado, Art Pearce, diretor de Planejamento de Políticas e Projetos da Secretaria de Transportes de Portland, vê sinais de que os moradores da cidade estão mantendo seus deslocamentos mais perto de casa à medida que a pandemia muda o modo como se relacionam com seus arredores. “Temos visto muita gente ajustando seu comportamento para focar mais sua comunidade”, diz Pearce. “Isso gera uma oportunidade de fortalecer esses laços à medida que as pessoas retomam uma vida mais normal.”
Um ponto com que qualquer município que busca ser uma cidade de 15 minutos, em qualquer lugar, terá de lidar é o da igualdade social — e o da moradia acessível em particular, como destaca Trudeau, de Detroit. Muitos serviços locais dependem de trabalhadores de baixa renda, que, em geral, fazem longos deslocamentos, e uma cidade de 15 minutos não fará jus ao nome se beneficiar somente os endinheirados.
Por isso, Paris pretende ter 30% de sua reserva habitacional em domínio público até 2030 e vem aumentando a proporção até mesmo nos distritos mais ricos, apesar da resistência dos vizinhos afortunados. “É parte integral do programa de Anne Hidalgo resistir à pressão imobiliária, manter a moradia pública e diversificar a oferta habitacional para a classe média”, diz Rolland, comissária das cidades de 15 minutos.
Tais medidas podem, até certo ponto, compensar a tendência em Paris de aluguéis altos e polarização social. Mas, numa cidade em que os preços de imóveis subiram mesmo na pandemia, é improvável que tais providências prevaleçam completamente. Além disso, outras metas da cidade de 15 minutos, como "ecologizar" e criar zonas de pedestres no coração de Paris, podem afastar os moradores de subúrbios de baixa renda que vão à região.
Essa acusação foi feita contra o governo Hidalgo em 2016, após a prefeitura modificar o cais da parte de baixo do Sena e eliminar uma rota-chave para carros. Valérie Pécresse, presidente da câmara regional de Île-de-France (que engloba os subúrbios de Paris), acusou Hidalgo de agir de “modo egoísta” ao impor o fechamento de ruas, destacando que “algumas pessoas não têm outra opção a não ser dirigir até Paris para trabalhar, porque não têm como viver lá”.
Outros ressaltaram uma preocupação semelhante: ao priorizar a infraestrutura local, os governos vão deixar de lado investimentos regionais bastante necessários, como em sistemas de transporte público para os trabalhadores que moram mais longe.
Moreno reconhece que grandes segmentos da população podem nunca desfrutar da vida desacelerada e localizada que ele vislumbra. “Claro que temos de adaptar esse conceito a diferentes realidades”, diz ele. “Nem todo mundo tem a possibilidade de morar a 15 minutos do trabalho.” Porém, ele enfatiza que as condições de muitas pessoas podem ser profundamente alteradas — algo que ele acredita que já estejamos vendo em razão dos deslocamentos evitados pela pandemia. Na avaliação de Moreno, escritórios centralizados são coisa do passado; teletrabalho e constelações de polos de coworking são o futuro.
A cidade de 15 minutos também poderia ser identificada com o que o escritor Dan Hill definiu como uma forma de “urbanismo pós-traumático” — um modo de se recuperar dos massacres promovidos por fatores como especulação imobiliária, turismo em excesso e, agora, a pandemia. Já está se tornando óbvio para Paris, segundo Rolland, que a cidade precisa de uma rede médica mais regionalizada “para as pessoas pararem de achar que têm de ir direto ao pronto-socorro”.
Após os intermináveis traumas de 2020, há uma tentadora nostalgia por uma ênfase renovada em bairros, mesmo que isso cuide de apenas parte dos desafios contemporâneos das cidades. Moreno também reconhece isso, apontando mais uma vez as possibilidades recuperativas de sua ideia, acima de tudo. “A cidade de 15 minutos é uma jornada, um guia, uma possibilidade de transformar o paradigma de como vivemos no decorrer de várias das próximas décadas”, afirma. “Antes, as pessoas estavam perdendo tempo útil. Com a cidade de 15 minutos, queremos que elas o ganhem.”
Tradução de Fabrício Calado Moreira
Para Östen Ekengre, da Smart City Sweden, cidades inteligentes são as que buscam ser sustentáveis | Rodrigo Caetano
A Suécia é uma referência mundial no conceito de cidades inteligentes. O desenvolvimento de tecnologias para gerir o dia a dia da municipalidade é uma política de Estado, inclusive com o objetivo de vender as soluções a outros países. À frente desse esforço está Östen Ekengre, presidente da Smart City Sweden, plataforma criada pelo governo para exportar tecnologias urbanas em áreas como clima, energia, mobilidade e planejamento. Nesta entrevista exclusiva, Ekengre fala sobre os planos suecos para o pós-pandemia.
O que define uma cidade inteligente?
A cidade precisa oferecer ao cidadão ar limpo, energia limpa, água, um bom transporte, lazer e cultura. A digitalização é uma ferramenta para chegar a isso. Porém, somente a tecnologia não resolve. Se os deslocamentos dependem de carros, os dados não ajudam muito. O conceito que usamos é o de cidade sustentável, e a cidade inteligente é um dos passos para atingir esse objetivo.
O que é mais importante para o sucesso da Suécia no planejamento urbano?
Pensamos nossas cidades de maneira que as diversas infraestruturas urbanas colaborem entre si. Usamos os resíduos domésticos para produzir energia. Assim, transformamos um problema em uma solução. Usamos a água como um recurso que precisa ser renovado. No setor de transporte, combinamos a eletrificação com o uso de combustíveis alternativos. Na Suécia, o biodiesel, o etanol e o biogás já representam metade do que é consumido. Mas o que precisamos agora é compartilhar. Tenho um carro híbrido, que uso 2% do tempo. Com as novas gerações, teremos um transporte menos dependente do carro.
A solução para o problema do trânsito é o transporte público?
Planejamos nossas cidades para os carros, os ônibus e outros transportes motorizados. Mas descobrimos que precisamos de mais bicicletas. Teremos de replanejar. As ruas precisam ser compartilhadas com as bicicletas. A maior parte dos deslocamentos em cidades como Estocolmo é de curta distância, de até 6 quilômetros. Pedalar é melhor para a saúde e para o meio ambiente. De qualquer forma, a base é o transporte público e, nas grandes cidades, o metrô. Não dá para colocar tudo na superfície.
A pandemia mudará a maneira como as pessoas se locomovem? O transporte individual será fortalecido?
Pensamos cada vez mais nisso. A mobilidade é um setor complicado. Nos ônibus e no metrô, as pessoas viajam muito próximas. Então, o governo recomenda não usar. O número de ciclistas e de pessoas trabalhando de casa aumentou. Entretanto, algumas pessoas não podem fazer home office. Temos de repensar essa infraestrutura, até porque a pandemia atual não será a última. E há a questão das compras online, que cresceram muito, colocando mais caminhões nas ruas e gerando mais lixo.