(Andre Lessa/Exame)
Da Redação
Publicado em 22 de outubro de 2016 às 05h55.
Última atualização em 22 de outubro de 2016 às 05h55.
São Paulo – Os brasileiros nunca compraram como na última década. As vendas de uma série de produtos — de geladeiras e celulares a imóveis e até iates — bateram recorde. Uma combinação de crescimento econômico, aumento da renda e farto acesso a crédito turbinou o consumo nacional, especialmente de 2010 a 2012, quando as vendas no varejo cresceram quase 30%, a maior expansão de que se tem notícia.
No meio do oba-oba, muita gente acabou comprando o que não devia: carros de luxo cuja manutenção é caríssima, bolsas que custam dezenas de milhares de reais, televisores que ocupam uma parede. Aí veio a crise. Quando começa a faltar dinheiro, a saída é se livrar dos excessos — e, claro, tentar economizar na hora de comprar qualquer coisa de novo. Foi a combinação para criar o mercado mais quente da crise — o da “segunda mão”.
Os produtos vendidos pelo maior site especializado em produtos usados no país, o OLX, somaram 63 bilhões de reais no primeiro semestre do ano, um crescimento de 120% em relação ao mesmo período de 2015. As vendas que mais cresceram foram as de eletroeletrônicos: o volume triplicou e chegou a 1,3 bilhão de reais. Mas a lista inclui jogos de videogame, DVDs, artigos para casa e, claro, esteiras e outros equipamentos de ginástica (que geralmente são comprados no início da dieta e encostados dois meses depois).
Há exemplos em outros setores. Nas concessionárias de veículos, as vendas de carros usados cresceram 2% desde o início de 2015, enquanto o mercado de novos encolheu, em média, 25%. “Os usados mais vendidos são veículos com até três anos de uso. Custam até 35% menos do que um zero-quilômetro”, diz Ilídio dos Santos, presidente da Fenauto, federação que reúne os revendedores de veículos usados. A rede de concessionárias Caoa — que, como seus concorrentes, fechou lojas nos últimos anos em razão da queda nas vendas de carros — abriu 12 revendedoras especializadas apenas em automóveis usados neste ano e pretende inaugurar mais oito até dezembro.
Sites criados de 2012 a 2014 para vender certos artigos de segunda mão estão recebendo investimentos e crescendo. É o caso do Enjoei, especializado em roupas e artigos de decoração, que recebeu 47 milhões de reais de fundos como Monashees e Bessemer, cresceu seis vezes desde 2014 e faturou 200 milhões de reais nos últimos 12 meses. O Peguei Bode, que surgiu como um blog em 2011 e se tornou um site no ano seguinte, vende somente roupas, sapatos e bolsas de grifes internacionais, como Gucci, Prada e Hermès.
No site, há sapatos de 7 000 reais e bolsas de 200 000 reais — tudo usado. “Só aceitamos peças de pessoas indicadas por amigos para garantir que os produtos sejam originais mesmo”, diz a fundadora, Daniela Carvalho. O site também faz bazares de vez em quando, como o da foto acima, em que só bolsas de segunda mão foram vendidas (a mais barata custava 600 reais, a mais cara, 35 000 ).
Também surgiram sites especializados em vender celulares usados, como o Trocafone e o Sou Barato (controlado pela empresa de comércio eletrônico B2W). As vendas de aparelhos usados em algumas lojas dobraram em 2015, e estima-se que crescerão na mesma proporção neste ano, ultrapassando 1 milhão de telefones.
“Só não vendemos mais porque não conseguimos coletar na proporção da demanda”, diz José Fróes, presidente no Brasil da empresa americana Brightstar, especializada em coletar, consertar e revender os celulares usados aos sites, que vendem aos consumidores. A Brightstar está presente em 50 países, onde presta serviços para a indústria de celular. No Brasil, atua apenas na revenda de usados.
O aumento do consumo de produtos usados também está dando um alívio a setores mergulhados na crise. É o caso do segmento de autopeças, que sofre devido à brutal queda na produção de carros novos no país. A demanda por consertos de carros nas oficinas mecânicas aumentou 15% no último ano — em vez de comprar um automóvel novo, muitos consumidores têm preferido consertar o que já têm e economizar. Assim, as fabricantes de autopeças estão vendendo mais para as mecânicas.
Na alemã Bosch, enquanto as vendas para montadoras caíram 15% no último ano, as entregas para oficinas aumentaram 8%. “Tivemos de nos reinventar para atender esse mercado”, afirma Amaury Oliveira, diretor no Brasil da fabricante americana de autopeças Delphi. A empresa, que produz bombas de combustíveis, mobilizou funcionários para visitar clientes, entender a nova demanda e ajustar a produção.
Hoje, 18% do faturamento da Delphi na América do Sul vem do mercado de reposição — a fatia não chegava a 8% em 2013. Em agosto, o fundo de private equity Advent investiu numa empresa de autopeças voltada para o segmento de reposição, a Fortbras, que faturou 500 milhões de reais nos últimos 12 meses. A aposta é que a demanda por consertos vai aumentar quando mais carros comprados nos anos de euforia ficarem sem a garantia de fábrica e passarem a ser levados para a revisão nas oficinas.
A recessão acabou dando um impulso a esse mercado, mas analistas acreditam que a tendência é de crescimento no longo prazo — mesmo quando a economia voltar a crescer. “A reutilização de produtos é a grande tendência do varejo, aqui e no exterior”, diz Ana Paula Tozzi, presidente da consultoria de varejo GS&AGR. O principal motivo, segundo os analistas, são as incansáveis campanhas de consumo consciente.
Mais consumidores estão se habituando a vender o que não usam e a comprar produtos de segunda mão — o que diminui a quantidade de mercadorias novas que precisam ser fabricadas. A tecnologia também ajuda. “O maior acesso à internet e o surgimento de sites especializados facilitam a compra e a venda”, afirma Marcos Leite, vice-presidente comercial do OLX. Nos Estados Unidos, até aviões são vendidos em sites como o eBay, que faz leilões de produtos usados.
No Brasil, uma pesquisa feita a pedido do OLX pelo instituto de pesquisas Ibope estima que, se os brasileiros vendessem tudo o que não usam, incluindo imóveis (como uma casa na praia que fica fechada quase o ano todo), poderiam criar um mercado de alguns trilhões de reais — e ainda ajudar o meio ambiente. O mercado de usados tem a cara da crise, mas pode ter chegado para ficar.