(MirageC/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 22 de outubro de 2020 às 05h31.
Última atualização em 11 de fevereiro de 2021 às 15h21.
A corrupção é um tema que sempre volta à tona com a força e a volúpia de um tubarão, em ano eleitoral. Nem é preciso balançar os pés na água para que suas barbatanas e seus dentes afiados possam ser avistados à beira da praia nesta primavera quente e de queimadas irresponsáveis pelo Brasil afora. Políticos, por definição, têm na ponta dos cascos a lisura de seus atos no passado e no presente. Desde o fim do regime militar, em 1985, todos os governos centrais e seus principais dirigentes se envolveram com malfeitos. E não foram poucos. Nem é preciso mencionar nomes. Está tudo documentado nos eficientes sites de busca, às vezes utilizados como instrumentos de falsas delações premiadas.
O filósofo e cientista inglês Francis Bacon (1561-1626) aborda o tema no monumental livro Ensaios, só superado pelo seu clássico Novum Organum. “Os vícios daqueles que detêm cargos importantes que envolvem o exercício do poder são fundamentalmente quatro: a morosidade, a corrupção, a descortesia e a condescendência (...). Quanto à corrupção, não bastará, para afastá-la, que ates tuas mãos e as de teus servidores e subalternos para que não aceitem os subornos, mas será necessário que amarres também as mãos dos corruptores para que não façam suas ofertas. Não é suficiente ser incorruptível, sendo necessário também ser conhecido como tal e estar acima de qualquer suspeita.”
O notável escritor fora implacável com aqueles que são, digamos assim, flexíveis com os subordinados e, para isso, justifica a tese com uma dura sentença de Salomão: “Ter demasiada consideração com as pessoas constitui debilidade criminosa: o homem que detém tal caráter pecará por um pedaço de pão”. Assim como na política, cabem ações pecaminosas no setor privado, parafraseando Salomão. Deveria valer o mesmo aforismo contido em Novum Organum a despeito de ações incongruentes: “A lógica tal como é hoje usada mais vale para consolidar e perpetuar erros, fundados em noções vulgares, que, para a indagação da verdade, de sorte é mais danosa que útil”.
Essa lógica perversa, por vezes, pode estar contida em novas regras para o combate a práticas de anticorrupção, com a introdução de mecanismos refinados de compliance (aderência às normas), nem sempre tão eficazes, ainda que as empresas privadas — nacionais e estrangeiras — e públicas, envolvidas em grandes malfeitos, estampem cartazes de transparência em suas matrizes e filiais. As regras estimulam a contratação de bancas de advocacia, que fornecem uma espécie de selo de qualidade a companhias que mantêm relacionamento com o setor público. Uma espécie de detergente que deixa tudo limpo à luz do dia. Há bancas que evitam fornecer a chancela a práticas de anticorrupção a companhias envolvidas em ações controversas com entes públicos por duvidarem dos propósitos de seus acionistas e de seus administradores. Nem é preciso falar dos nomes dessas empresas ou dos advogados. São todos sobejamente conhecidos.
Da mesma forma, há empresas com ações negociadas na bolsa de valores que não respeitam os acionistas minoritários em benefício de sócios controladores, driblando o órgão regulador, que age como um cachorro correndo atrás do próprio rabo. São as chamadas operações criativas, que deram enorme projeção a alguns banqueiros de investimento nos anos 1980. Hoje estão mais refinadas, e tudo é feito em nome da chamada governança corporativa, uma espécie de “sin embargo”, uma expressão banal em espanhol. Vale tudo. Com direito a pareceres de renomados causídicos.
No exterior, há o emblemático caso envolvendo a empresária bilionária corrupta Isabel dos Santos, filha do ex-ditador socialista de Angola Eduardo dos Santos. Seus múltiplos negócios foram auditados pela PwC, Ernst & Young, Delloite e KPMG. O curioso: as auditorias continuaram a prestar serviço, mesmo depois das primeiras denúncias, no início deste ano, de acordo com reportagens de um consórcio internacional de jornalistas. Só romperam após a fuga de Isabel Santos para Dubai e Londres. Note que todas as auditoras são multinacionais, sujeitas a uma legislação rigorosa em seus respectivos países.
Ninguém está exigindo que todo homem público aja como o professor Mario Henrique Simonsen (1935-1997). Inquirido se em algum momento de sua vida pública fora alvo de uma proposta de corrupção, dada a importância do cargo que exercera no governo Geisel (1974-1979) como ministro da Fazenda, ele me disse sem pestanejar: “O sujeito para corromper um servidor público precisa ter 90% de chance de que será bem-sucedido”. A resposta lógica, cartesiana, no melhor estilo do velho mestre, ministro de Estado aos 39 anos, não deixou margem para insistir no tema. Ele controlava 400 empresas estatais.
Simonsen agiu como o escrivão do conto de Herman Melville (1819-1891), noves fora o lado caricatural. Certo dia, quando o narrador pede a Bartleby para revisar um documento, o jovem simplesmente responde: “Eu preferiria não fazer”. É a primeira das inúmeras recusas seguintes de Bartleby. Para a consternação do narrador e irritação dos outros escrivães, Bartleby executa cada vez menos suas tarefas. E permanece fiel à sua convicção.
Corrupção não tem data, CPF ou ideologia. Imaginar o contrário é acreditar que um juiz de primeira instância possa resolver situações empresariais complexas. Ou acreditar em Papai Noel, como diria Simonsen para os economistas que receitavam soluções mágicas para combater a inflação e a má distribuição de renda. Ou mesmo acreditar em falsas governanças corporativas e em auditores vassalos.
A propósito: Francis Bacon foi acusado de ter recebido suborno quando atuava como juiz. Foi punido, mas conseguiu recuperar sua fortuna, embora jamais tenha obtido de volta seu cargo e seus títulos conferidos pela nobreza. Dedicou-se, no fim da vida, a uma intensa produção intelectual e científica. Simonsen morreu em pleno Carnaval de 1997 sem nenhum ato desabonador à sua conduta de homem público, tendo formado gerações de economistas.