Revista Exame

Trabalho pra lá de remoto: qual será o perfil do novo nômade digital?

Durante a pandemia, o escritório deixou de ser essencial e as tarefas agora podem ser feitas de qualquer lugar

Onde Karina Rehavia vai, seus empreendimentos a acompanham com o kit essencial: computador, fone de ouvido e adaptador internacional. (Divulgação)

Onde Karina Rehavia vai, seus empreendimentos a acompanham com o kit essencial: computador, fone de ouvido e adaptador internacional. (Divulgação)

Luísa Granato

Luísa Granato

Publicado em 10 de setembro de 2020 às 05h50.

Última atualização em 11 de fevereiro de 2021 às 16h36.

Cada reunião agora começa com a mesma pergunta: de onde vocês estão falando? Para quem já atendia ligações de aeroportos ou de diferentes escritórios da BriviaDez pelo Brasil, Vinícius Lobato, chief business officer, agora entra nas reuniões bebendo seu chimarrão do conforto de sua nova casa em Portugal. Ele planejou a mudança para ajudar na expansão internacional do negócio e nem a pandemia o deteve. Com os dois filhos e a esposa, pegou o último voo conectando Porto Alegre a Lisboa e chegou na nova vida em meio ao lockdown­ total.

Segundo ele, nesse processo tiveram de enfrentar 150.000 microbatalhas, desde ligar o gás a receber um colchão comprado pela internet parado na fronteira com a Espanha. Por outro lado, seu trabalho continuou o mesmo, se não melhor. Com os clientes em home office durante esse período, Lobato sente que ficou ainda mais fácil se conectar com todos.

Quando Portugal retomou as atividades, ele aproveitou para passar alguns dias no Algarve e surpreendeu seus interlocutores, que pensaram que o belo fundo de praia era um cenário falso da videoconferência. “A pandemia não impôs uma mudança no meu trabalho. O mundo é que mudou para ser como a gente”, afirma.

 

 

O modelo de trabalho mais digital e remoto já era aceito na agência, que pulveriza projetos entre funcionários em diferentes escritórios. Da mesma forma que Lobato mudou de país, ele estimula sua equipe a fazer o mesmo. O que resulta em interações cada vez mais interessantes, com pessoas em São Borja, Ubatuba, Belo Horizonte ou na Cidade do Panamá.

Em outras companhias, sair do escritório por causa da quarentena foi o primeiro passo. A etapa seguinte pode aproximá-las mais do estilo da BriviaDez: um trabalho na nuvem e os funcionários no mundo. Afinal, se as tarefas podem ser realizadas em casa, também podem ser feitas de qualquer lugar do mundo.

Quem está fora do escritório há meses começa a se perguntar se real­mente precisa morar perto do serviço. Ou em um único lugar. E já começa a surgir um novo tipo de nômade digital. “Trabalho deixa de ser o lugar para onde você vai e passa a ser o que faz e como. Independentemente de onde estamos”, diz Daniel Schwebel, diretor no Brasil da plataforma de freelancers Workana.

Longe de ser uma vida a passeio pelos países, os nômades não são apenas jovens que vivem de mochila nas costas e fazendo bicos. Podem ser free­lancers, empreendedores ou até empregados fixos. O conceito que os une é o trabalho que pode ser realizado por meio da tecnologia de qualquer lugar.

Com mais de 30 anos de experiência no mercado financeiro internacional, o carioca Jay Janér dificilmente se encaixa no estereótipo. Porém, a vida nômade chegou para ele antes do digital. Com mãe italiana e pai sueco, ele acredita que o nomadismo faça parte de seu sangue. Janér passou a juventude entre o Brasil, a Argentina, a Inglaterra e a Itália. Depois, fez graduação e MBA nos Estados Unidos. “Para mim, pegar um avião e ir morar na China seria completamente normal”, conta.

ALICE E VINICIUS NEVES | Os empreendedores na área de educação rodaram por dois anos pela Ásia e se casaram em Bali, enquanto tocavam seu negócio. Em Santa Catarina, eles esperam a crise passar para pôr o pé na estrada novamente (Divulgação)

Janér deixou o mercado financeiro, mas voltou a ser trader ao ser apresentado pelo filho às criptomoedas, três anos atrás. Como matemático, apaixonou-se pelos valores tão difíceis de calcular — e também percebeu que poderia tocar um negócio nesse novo mercado sem abrir mão de sua paixão por pintura.

Se todos os caminhos levam a Roma, foi na primeira grande estrada romana que ele decidiu morar. Em sua casa na Via Ápia, ele alterna os papéis de artista e empreendedor. “Tenho um grande telão para ver os mercados enquanto estou pintando. Passo algumas horas fazendo minha matemática, outras horas pintando. Não acho necessário nem eficiente estar em um escritório luxuoso se eu posso estar aqui”, afirma.

Era a vida de escritório que Juliana Arthuso queria deixar para trás quando pediu pelo trabalho remoto em 2018. Quando a empresa disse não à proposta, a engenheira florestal e tradutora pediu as contas e colocou o pé na estrada. Seu primeiro destino foi Belo Horizonte, depois rodou pelo Brasil e pela América Latina. Tradutora técnica, ela ama seu trabalho; ainda mais quando consegue passar o dia conhecendo lugares novos e a noite fechando um projeto com um cliente.

“É uma rotina cansativa. Quase desisti de tudo quando cheguei ao Peru com uma mochila de 50 litros com computador, câmera e microfone dentro. Aquele ar rarefeito, o sol desgraçado e a subida até o hostel...”, lembra. Uma coisa mágica para ela é entender as pessoas locais. “Em Machu Picchu, um desconhecido me ajudou a chegar ao hotel. Acho que a maior lição foi descobrir que as pessoas não são tão diferentes quando você as conhece.”

Com a pandemia, ela está de volta à sua cidade natal, Piracicaba, mas vê o momento como uma oportunidade de recarregar — a mente e a carteira — e tem planos para conhecer em breve a Oceania e a América do Norte.

(Arte/Exame)

É comum que os nômades tenham locais de pouso para voltar. E, diferentemente de quem praticou o isolamento social em casa, puderam escolher locais paradisíacos para seu retiro. Karina Rehavia estava na Índia quando percebeu o perigo do novo vírus e se instalou em sua casa em Caravelas, na Bahia.

Desde que fez intercâmbio aos 15 anos, toda oportunidade que ela buscou era com um olhar para fora. Em 2018, quando morava em Paraty, foi só o sócio mencionar uma ida para Nova York para tocar a expansão da agência de marketing Live por lá que sua resposta foi imediata: precisaria de apenas 24 horas para organizar tudo. Seu bem mais precioso, o gato Orloff, foi adotado por sua mãe, e as malas estavam feitas. Desde então, nunca mais parou.

Em seu mais recente destino, Rehavia coordena a Ollo, sua nova agência que faz justamente a ponte entre empresas e talentos freelancers. Onde ela vai, seus empreendimentos a acompanham com o kit essencial: computador, fone de ouvido e adaptador internacional.

Agora, com a brisa do mar e o sol batendo no rosto, ela segue com sua rotina para impulsionar um serviço que combina com suas aspirações e as de potenciais nômades digitais. “Nos Estados Unidos as pessoas fazem isso há mais tempo. Existe lá uma cultura, que começa a surgir no Brasil e já está acontecendo. A experiência agora é um agente fomentador, que mostra a possibilidade de ter flexibilidade no trabalho e independência geográfica”, fala.

JULIANA ARTHOSO | A tradutora técnica pediu por home office na empresa em que trabalhava. Ao ouvir um não, colocou o pé na estrada. Passou dois anos rodando e trabalhando pelo Brasil e pela América Latina e tem planos para Oceania e América do Norte (Divulgação)

Com fronteiras fechadas e voos cancelados, os destinos queridinhos pelos nômades se esvaziaram. O site Nomad List, que serve como uma rede de resenhas dos melhores locais para quem viaja trabalhando, mostra uma queda de 34% na chegada de novos nômades na região mais popular dos últimos cinco anos, Bali, na Indonésia.

Os centros mais atraentes para essas pessoas reúnem algumas características essenciais: boa qualidade de vida, baixo custo, segurança, diversão e, claro, uma ótima conexão com a internet. Para o casal de empreendedores Alice e Vinicius Neves, Bali sempre trará uma lembrança a mais. Foi onde eles se casaram durante a turnê de dois anos que fizeram pela Ásia.

“Nosso casamento foi no dia 1º de janeiro, enquanto no Brasil acontecia a virada. Foi uma imersão enorme na cultura local e uma cerimônia maravilhosa. Para mim, tudo de melhor dessa vida se resume a esse momento”, diz Vinicius.

JAY JANÉR | Com mais de 30 anos de experiência no mercado financeiro internacional, passou a juventude entre Brasil, Argentina, Inglaterra e Itália e estudou nos Estados Unidos. De Roma, se divide hoje entre a pintura e como sócio da KPTL gerindo fundos quânticos e de criptomoedas (Divulgação)

Os familiares demoraram para entender o estilo que o casal escolheu, administrando o negócio de educação de longe e fazendo serviços como freelancer. Mas foi a experiência adquirida nas viagens que permitiu equilibrar as contas durante a crise e eles se alocaram em Santa Catarina para esperar o pior passar.

“Começamos planejando tudo. Depois passamos a medir decisões pelo essencial para sobreviver. Para funcionar, foi importante aprender gestão do tempo e de despesas. Só mudávamos de lugar quando já havíamos ganhado de volta o valor gasto com as passagens, por exemplo”, afirma Vinicius. “É preciso ter controle para poder se divertir. O trabalho ainda é trabalho, mas é mais fácil encontrar coisas incríveis no caminho.”


A CIDADE E AS SERRAS

Jornalista monta hub de conteúdo para quem quer aprender a morar no mato

Embora o jornalista e empreendedor Ricardo Moreno não queira romantizar a vida no interior, ele admite que uma pausa no trabalho para tomar um banho de cachoeira parece um pouco com o paraíso. Diferentemente da fuga do protagonista no romance de Eça de Queiroz, ele vê um movimento de busca de um estilo alternativo à vida na cidade, mas sem negar os avanços da tecnologia.

Seu novo empreendimento, o Excentro, é exemplo disso. Ele e seus sócios, Mariana Weber e PL Lemos, criaram todo o negócio sem se encontrar pessoalmente, cada um de seu cantinho, de São Francisco Xavier, Ubatuba e Catuçaba, em São Paulo. O projeto vai mostrar uma maneira de se tornar um “excêntrico”, o nome daqueles que saíram dos grandes centros urbanos, com conteúdo e cursos para quem quer experimentar a rotina no campo.

Ele acredita que, após a quarentena, não são apenas nômades que vão surgir, mas profissionais procurando uma mudança de ambiente, permanente ou não, após meses confinados em casa. “Na pandemia, tudo o que nos motiva a ficar numa cidade grande como São Paulo desapareceu, como encontrar pessoas ou a cultura que consumimos. A vida no campo não tem diversos confortos, mas as pessoas devem buscar uma qualidade de vida melhor agora”, afirma.

E brinca sobre os prós e contras: “Não tem delivery, mas tem fruta no pé. Não tem vizinho, mas tem morcego. Tem a água da fronte, mas às vezes é preciso desentupir o cano do rio”.

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