Polícia de Nova York: queda drástica na criminalidade transformou a metrópole em case mundial (Joel Carillet/Getty Images)
Editor de Negócios e Carreira
Publicado em 23 de janeiro de 2025 às 06h00.
Mesmo para os brasileiros, já acostumados com a falta de segurança pública, os últimos meses não têm sido fáceis. Há uma sensação generalizada de avanço do crime organizado pelo país. Em novembro, um tiroteio na área de desembarque do Aeroporto de Guarulhos, o mais movimentado do país, matou um delator de lideranças do Primeiro Comando da Capital, o PCC, o maior bando criminoso do país, criado num presídio de São Paulo em 1993. Além dele, um motorista que apenas transitava no local morreu. Dois meses depois, uma investigação da Polícia Civil paulista prendeu 14 policiais militares acusados de participação no crime. No Rio de Janeiro, a guerra entre facções criminosas costuma parar o trânsito e vitimar turistas cujo único erro foi estar no lugar e na hora errados.
Um simples gesto com a mão numa foto — estender dois ou três dedos — virou um risco de morte por estar associado a códigos das facções. (Os números estão ligados à quantidade de letras iniciais dos nomes dos bandos. Uma mão com três dedos estendidos é uma apologia ao PCC; com apenas dois dedos a ligação é com o Comando Vermelho, ou CV, fundado no Rio de Janeiro em 1979.) Em 2024, pelo menos seis pessoas teriam sido assassinadas na Bahia por causa de um gesto feito em território dominado pelo adversário. A selvageria ocorre num momento de queda na taxa de homicídios no Brasil. De 2017 a 2023, o número de mortes violentas no país caiu 27,85%. Só que elas ainda estão muito longe do ideal: por aqui, há 22 assassinatos para 100.000 habitantes, quatro vezes acima da média mundial. Ao mesmo tempo, há a percepção de recrudescimento do Estado paralelo. Nas contas do Gaeco, o grupo especial do Ministério Público paulista para o combate ao crime organizado, o PCC faturou 6 bilhões de reais no ano passado com o tráfico de drogas e armas para fora do Brasil. Em 2019, o valor estava na casa dos 400 milhões de reais. Na ponta, a consequência é uma população muito amedrontada. Em pesquisas de opinião nos últimos meses, a maioria dos brasileiros relata desconforto ao andar à noite e a percepção de que a violência urbana aumentou nos últimos 12 meses.
Em meio à desesperança, uma boa maneira de começar a encarar o problema é buscar referências com quem já tem exemplos de como combater o crime. Com esse espírito, no início de novembro uma comitiva de lideranças públicas brasileiras passou uma semana na Universidade Colúmbia, em Nova York, estudando técnicas de combate ao crime com professores da universidade e convidados. O grupo de 25 alunos incluiu o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), o prefeito do Recife, João Campos (PSB), e de Niterói, Rodrigo Neves (PSB), os deputados federais Tabata Amaral (PSB) e Pedro Paulo Teixeira (PSD), além dos secretários estaduais de Segurança Pública de Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e dos vice-prefeitos de São Paulo, coronel Ricardo Mello Araújo (PL), e do Rio de Janeiro, Eduardo Cavaliere (PSD).
A semana de estudos foi organizada pela Comunitas, organização sem fins lucrativos criada na virada dos anos 2000 pela antropóloga Ruth Cardoso para desenvolver projetos de inovação na máquina pública com base em arranjos com líderes públicos e da iniciativa privada, entre eles Carlos Jereissati Filho, conselheiro da empresa de shopping centers Iguatemi, e Luiz Ildefonso Simões Lopes, chairman da operação brasileira do fundo global Brookfield, que estavam presentes no curso. Hoje, a Comunitas tem 400 frentes de trabalho em temas centrais da gestão pública, como saúde, educação e segurança pública em 20 prefeituras e nove estados. “Os problemas de segurança pública, em especial o combate ao crime organizado, ganharam importância na nossa agenda”, diz Regina Esteves, diretora-presidente da Comunitas (leia entrevista abaixo).
A escolha de Nova York como sede da semana de estudos não poderia ter sido mais fortuita. A metrópole americana de 8,2 milhões de habitantes é um dos maiores exemplos de sucesso no combate à violência nas últimas décadas. Há 50 anos, o conflito entre gangues e uma crise nas finanças municipais, que levou a cortes no financiamento das polícias, provocaram uma onda de violência sem precedentes. Na metade dos anos 1970, os assassinatos eram tantos que uma campanha publicitária tentava convencer turistas a abandonar o plano de visitar a cidade. No auge, em 1980, Nova York registrou 30 assassinatos por 100.000 habitantes. De lá para cá, o investimento em tecnologias como câmeras de monitoramento e uma política rígida contra todo tipo de crime — desde pequenos furtos até a ação das máfias locais — reverteram o jogo. Em 2024, Nova York registrou cinco mortes violentas por 100.000 habitantes, uma das menores taxas entre os principais centros urbanos dos Estados Unidos.
A situação está longe de ser perfeita. A pandemia aumentou a pobreza e, de quebra, piorou alguns indicadores de criminalidade. O assassinato à queima-roupa de Brian Thompson, CEO do grupo de saúde privada UnitedHealthcare, em frente a um hotel de luxo de Manhattan, em dezembro, chocou o mundo e provocou críticas à polícia nova-iorquina. Boa parte dos questionamentos cessou com a rápida detenção do autor, Luigi Mangione, e o esclarecimento do caso como um ato terrorista contra uma das principais lideranças do mercado de saúde privada dos Estados Unidos — e, portanto, sem relação direta com a metrópole em si. Assim, um mês após o assassinato, moradores e turistas continuam circulando com tranquilidade.
Os alunos da comitiva conheceram aspectos emblemáticos de como a metrópole americana lida com segurança pública. Um dos pontos altos foi uma visita ao One Police Plaza, a sede da polícia de Nova York. Erguido em 1973, o prédio de 13 andares no sul de Manhattan, a poucas quadras de Wall Street, tem um estilo brutalista, com estrutura de concreto e fachada de tijolos vermelhos que destoam dos arranha-céus envidraçados nos arredores. No segundo andar, numa sala com pé-direito triplo, telões do teto ao chão ocupam as quatro paredes. Eles exibem imagens geradas em tempo real de 70.000 câmeras espalhadas pelas cinco regiões administrativas da metrópole. Ali funciona o Real Time Crime Center, um centro aberto meses depois do ataque terrorista às torres do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, para, entre outras coisas, detectar atitudes suspeitas e identificar bandidos em circulação. No oitavo andar, um auditório para 1.200 pessoas sedia as reuniões do CompStat, a principal inteligência da polícia nova-iorquina contra a bandidagem. Todas as quintas-feiras, das 8 às 12 horas, os dados de criminalidade da semana são esmiuçados. Na frente da cúpula da segurança pública da cidade, os chefes das delegacias com maus resultados precisam apontar a causa da piora nos índices e apresentar um plano para reverter o quadro. As reuniões nesse formato, que envolvem gente de vários escalões da corporação, começaram em 1994. De lá para cá, a franqueza das conversas e o medo do “maçarico” em público são peças-chave da estratégia de combate ao crime na cidade. “As reuniões mostram que deixar eventuais posições pessoais de lado e ‘tomar um banho de dados’ traz soluções efetivas para a segurança de uma cidade”, diz Campos, mandatário do Recife.
A queda brutal na violência em Nova York inspirou dinâmicas semelhantes das forças de segurança ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Por aqui, iniciativas como o Pacto pela Vida, lançado em 2007 na gestão de Eduardo Campos no governo de Pernambuco, ou o Estado Presente, iniciado em 2011 na primeira gestão de Renato Casagrande (PSB) no governo do Espírito Santo, e o RS Seguro, implantado em 2019 no primeiro ano de Eduardo Leite como governador do Rio Grande do Sul, emulam o formato das forças de segurança de Nova York. Casagrande e Leite costumam participar de algumas das reuniões de análise dos indicadores. “O CompStat foi um grande exemplo”, diz Leite, que até mesmo levou comandantes da polícia gaúcha para uma visita à sede da polícia nova-iorquina antes de montar o RS Seguro. Em cinco anos, o programa garantiu um pouco mais de paz aos gaúchos. Em 2024, apesar da calamidade gerada pelas enchentes de maio, o estado registrou o menor número de homicídios em 14 anos — foram 915 entre janeiro e agosto, queda de 23% sobre o mesmo período do ano anterior.
O uso intenso de tecnologia para monitorar ameaças à ordem também vem ganhando destaque. Em São Paulo, uma central de monitoramento aberta em julho do ano passado pela gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB), denominda Smart Sampa, colhe resultados promissores. Num prédio histórico do centro da capital paulista, guardas municipais acompanham as imagens de 18.837 câmeras ligadas pela prefeitura em praças e vias movimentadas e, também, de 5.090 instaladas por empresas e condomínios residenciais. Desse total de mais de 23.000 câmeras, 4.000 leem as placas de veículos e estão instaladas em todas as entradas da cidade. A combinação da tecnologia avançada das câmeras para o reconhecimento facial com a integração de bases de dados sobre foragidos da Justiça está ajudando a tirar criminosos de circulação na capital paulista. Em seis meses, até o dia 17 de janeiro, o programa ajudou a colocar atrás das grades 456 condenados por assassinatos, estupros, roubos e integrantes de facções criminosas. Outros 1.712 foram presos em flagrante em crimes registrados pelas câmeras, como furto, invasão a escolas e posse de arma de fogo.
A inspiração no que deu certo em Nova York é, certamente, uma boa notícia, mas tem limitações. A metrópole americana nunca esteve tão subjugada ao crime organizado como estão os centros urbanos brasileiros. Aí, o jeito é olhar para a experiência de países da América Latina com algum resultado para mostrar. Em Colúmbia, o grupo teve aula com o advogado Andrés González Díaz, que foi ministro da Justiça da Colômbia, senador e governador do departamento de Cundinamarca, ao redor da capital Bogotá. Nos cargos, ele acompanhou de perto as ações do Estado colombiano para combater as Farc — guerrilha de origem marxista fundada nos anos 1960 e que, décadas mais tarde, passou a lucrar com atividades típicas do crime organizado, como o tráfico de drogas, até cessar operações em 2017, após um acordo de paz. González Díaz destacou a ocupação geográfica como algo crucial para desmantelar o crime organizado e que teria sido incompleta no país vizinho. “A ausência de uma presença estatal forte após o fim da guerra com as Farc permitiu a ascensão de novos grupos criminosos”, diz. Além disso, ele considera a Justiça fundamental no combate ao crime organizado na Colômbia. “A concessão de benefícios como progressão de pena em troca de informações foi uma das estratégias para enfraquecer estruturas criminosas.”
Ao que tudo indica, o combate à criminalidade terá papel central na agenda de legisladores e gestores públicos brasileiros em 2025. Na primeira metade de janeiro, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apresentou uma nova proposta de emenda constitucional para a segurança pública. O texto mantém o controle das polícias e dos bombeiros aos governadores. Esse foi um motivo de desavenças entre o Planalto e os mandatários estaduais ao longo dos últimos meses. Entre as novidades estão a criação de fundos para destinar recursos à modernização de polícias e das penitenciárias e a elevação do Sistema Único de Segurança Pública, o Susp, ao mesmo status do Sistema Único de Saúde (SUS), com uma governança já pacificada entre os entes. Normalmente, o governo federal fica responsável pela elaboração da estratégia de saúde, ao passo que estados e municípios se encarregam da prestação do serviço na ponta. Agora, resta saber se o tema encontrará ouvidos atentos e força política para avançar no Congresso. A sociedade civil aguarda uma resposta — sobretudo a iniciativa privada, para quem a redução da criminalidade significará, também, uma melhoria no ambiente de negócios. “Crimes têm penetrado em áreas com dinâmicas sociais variadas, exigindo cooperação entre diferentes níveis de governo”, diz Jereissati Filho, do Iguatemi, e um dos líderes da iniciativa privada à frente da Comunitas. “Indicadores de criminalidade precisam ser analisados e apresentados ao público para conscientizar a sociedade sobre os avanços e os desafios a seguir.”
Para Regina Esteves, da Comunitas, a segurança pública exige lideranças capazes de fazer um debate sério sobre o tema
Regina Esteves, diretora-presidente da Comunitas, é um nome central no empreendedorismo social e na articulação entre os setores público e privado no Brasil. Formada em administração em 1995, aos 25 anos, Esteves foi convidada para atuar ao lado da então primeira-dama, Ruth Cardoso, em projetos sociais sob a Presidência de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), como o Alfabetização Solidária. Desde 2009, está à frente da Comunitas, organização dedicada à inovação na gestão pública com a articulação de empresas, Academia e governos.
Anualmente, a Comunitas organiza missões internacionais com lideranças brasileiras a universidades de ponta no exterior. Em 2023, por exemplo, um grupo foi à Universidade Stanford, na Califórnia, aprofundar conhecimentos sobre economia verde. Na entrevista a seguir, ela detalha os motivos para a escolha da segurança pública como tema de estudos e os desafios de formação de gestores públicos no Brasil.
Por que a segurança pública virou tema de uma semana de estudos no exterior?
A segurança pública tem ganhado relevância crescente tanto para os governos quanto para a sociedade. Decidimos abordá-la neste curso porque percebemos a urgência dessa pauta, agravada pelo avanço do crime organizado e pelos desafios de governança e legislação. Colúmbia foi escolhida pela combinação de conhecimento acadêmico e estudos de casos práticos. Além disso, trabalhamos esse tema ao longo do ano em encontros e projetos com governos, e trazer os gestores aqui foi um passo estratégico nessa construção.
Quais são os principais desafios para a formação de gestores públicos?
O Brasil carece de uma política estruturada para a formação de gestores e servidores públicos. Hoje, tomamos decisões cruciais sem o suporte de conhecimento técnico adequado. As agências de formação foram desestruturadas, e não há uma estratégia clara para capacitar os profissionais. Enquanto na iniciativa privada a área de gestão de pessoas é tratada como prioridade estratégica, no setor público isso ainda não acontece. Formar bons gestores exige escuta ativa, ambientes de aprendizado coletivo e metodologias eficazes, que incluam a participação de diversos atores. Trazer líderes para experiências como esta, em Nova York, reforça a importância da qualificação contínua e mostra como o espírito público pode impulsionar a transformação na administração pública.
Como a PEC da Segurança Pública deve colocar o tema no debate público em 2025?
A PEC da Segurança Pública é apenas um dos muitos instrumentos para avançar nessa agenda. Existem projetos importantes tramitando no Congresso que poderiam ganhar mais atenção e consenso. Nosso papel é mapear essas iniciativas, entender os pontos em comum e estimular esforços conjuntos entre governos, sociedade e iniciativa privada. No entanto, a PEC, sozinha, não resolverá o problema. O que realmente falta é liderança comprometida em priorizar a segurança pública e uma governança que integre estados e municípios de forma coordenada. Assim como nos anos 1980 tivemos o movimento pelo SUS e, nos anos 1990, a universalização da educação, agora é o momento de definir o que queremos para a segurança pública.