Participantes da conferência Web Summit, em Lisboa: Portugal hoje é sede do maior encontro de startups da Europa (Web Summit/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 6 de dezembro de 2018 às 05h24.
Última atualização em 7 de dezembro de 2018 às 16h18.
Houve uma época , séculos atrás, em que os principais produtos de exportação de Portugal eram navios que saíam do Rio Tejo para explorar terras ainda não descobertas mundo afora. Os tempos mudaram radicalmente e o futuro chegou em boa hora em Lisboa. Patinetes elétricos são tão comuns quanto os antigos bondes que circulam na capital portuguesa. Nas famosas pastelarias, a conta não é mais paga com dinheiro, e sim com rápidos cliques no smartphone. Durante um evento de networking, cartões de visita de papel foram substituídos por códigos QR, uma espécie de código de barras. A tecnologia incorporada ao dia a dia do português é apenas um reflexo do esforço que o governo do país vem fazendo para transformar Portugal em um dos principais polos tecnológicos da Europa.
A grande vitrine desse empenho do governo é o Web Summit, maior convenção de startups do mundo, que acontece em Lisboa desde 2016. Na primeira semana de novembro, a terceira edição do Web Summit em solo português trouxe para a capital um total de 69.300 participantes de 159 países. Durante quatro dias, milhares de pessoas disputaram um lugar para ouvir 1 200 palestrantes que se revezavam em 24 palcos. Entre eles estavam o inventor da web, Tim Berners-Lee, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair e Christopher Wiley, o delator do escândalo de violação de dados do Facebook envolvendo a consultoria Cambridge Analytica.
Mais de 1.800 startups participaram do evento, que também contou com a presença de 1.500 investidores. Estes últimos são os convidados que o governo português vê com mais entusiasmo. “Os investidores que vêm a Portugal por causa do Web Summit são imprescindíveis porque ajudam a criar conexões”, diz Manuel Heitor, ministro português da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (leia entrevista abaixo). “O evento faz parte de nossa estratégia de longo prazo para investir na qualificação de profissionais, do treinamento ao desenvolvimento de habilidades digitais. Tudo isso é feito com base nas conexões estabelecidas durante o Web Summit.”
O encontro ajuda a movimentar o setor hoteleiro e a economia de Lisboa. Mas o maior benefício é elevar as empresas portuguesas a um nível global. A Secretaria de Estado da Indústria de Portugal estima que houve aumento de pelo menos 20% no número de startups registradas no país de 2016 para 2017, quando Lisboa passou a sediar o Web Summit. O compromisso de Portugal com o Web Summit é tanto que o governo e a organização da conferência se comprometeram a mantê-la em Lisboa nos próximos dez anos. “Portugal passou por uma década sombria, e é ótimo ver que, do outro lado da crise, há um resultado tão positivo assim”, diz o empresário Paddy Cosgrave, cofundador do Web Summit e presidente da empresa que organiza o encontro.
A boa fase tem ajudado gente como o português José Neves, fundador da startup Farfetch, loja online de roupas, sapatos e acessórios. A empresa, hoje com sede em Londres, é o único “unicórnio” de origem portuguesa — apelido dado a startups avaliadas em mais de 1 bilhão de dólares. Com o setor tecnológico português em efervescência, em breve a Farfetch deve ter a companhia de compatriotas. A Talkdesk, startup que oferece soluções online a centrais de atendimento, anunciou em outubro ter levantado 100 milhões de dólares em investimentos privados, um dos maiores já recebidos no país.
Renascimento pós-crise
Seis anos atrás, Portugal se via no meio de uma severa crise econômica, com elevado desemprego e uma profunda recessão. A recuperação da economia não teria sido possível sem o pulsante setor de startups no país. Um estudo publicado no ano passado pelo Startup Europe Partnership, entidade público-privada de apoio ao empreendedorismo, estima que as startups portuguesas levantaram mais de 130 milhões de dólares em financiamento em 2016, 40% do total no período de 2010 a 2016. Os números indicam que Portugal está crescendo duas vezes mais rápido do que a média europeia.
Trazer o Web Summit para solo português não foi o único esforço do governo para tornar o país um dos principais polos de tecnologia na Europa. Uma série de ações tem impulsionado as startups. O programa StartUP Portugal é uma delas. Estabelecida em 2016, a iniciativa foi criada com três objetivos: dar apoio às startups nacionais, atrair investidores domésticos e estrangeiros e acelerar o crescimento de novatas portuguesas em mercados internacionais.
Em julho, o programa foi atualizado e mais 20 novas medidas foram incorporadas à proposta original. Entre elas um destaque é o Tech Visa, programa de vistos para estrangeiros que ajuda as empresas a atrair funcionários altamente qualificados de fora da Europa. Há ainda outros programas, como o Startup Hub, uma plataforma digital para mapear startups e incubadoras do país, incluindo informação sobre os apoios disponíveis para o ecossistema; o Vale de Incubação, que dará apoio a empresas com menos de um ano na área do empreendedorismo; e o envio de missões portuguesas a eventos internacionais.
Fundos de investimento com recursos do setor público também devem ser criados para atrair investidores de capital de risco a Portugal. O plano é assegurar uma contrapartida pública em investimentos de até 50 milhões de euros. Há também o 200M, um fundo gerenciado pelo PME Investimentos, empresa pública regulamentada pelo Banco de Portugal, cujo objetivo é atrair para o país fundos, empreendedores e startups internacionais.
Na área de educação, o StartUP Portugal prevê a criação do Programa Momentum, para apoiar recém-formados que tenham se beneficiado de bolsas do governo durante a graduação e que, no final dos estudos, queiram desenvolver uma ideia de negócio. Outra área de investimento é na formação de empreendedores, criando cursos de capacitação para o desenvolvimento de negócio numa startup.
O investimento em educação ao longo da última década é um dos fundamentos do crescimento do país na área de tecnologia. Em 2015, Portugal teve um desempenho impressionante no teste de ciência do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (o Pisa, na sigla em inglês), ministrado pela OCDE, grupo dos países desenvolvidos. No teste de alfabetização científica, estudantes lusos de 15 anos ficaram acima da média de 493 pontos, conseguindo marcar 501. Desde 2006, o país vem melhorando no teste, com resultados superiores à média. “Estamos colhendo os frutos de políticas públicas que foram implementadas há anos, quando o governo decidiu investir na criação de universidades e escolas técnicas”, afirma Miguel Fontes, diretor executivo da Startup Lisboa, uma incubadora sem fins lucrativos.
Graças a essas e outras iniciativas, em janeiro Portugal ocupou o nono lugar no ranking da Associação de Tecnologia do Consumidor dos 13 países que mais investem em inovação no mundo. Entre alguns dos motivos citados para a inclusão de Portugal no ranking estão o alto nível de liberdade política e pessoal e o investimento de 1,28% do PIB em pesquisa e desenvolvimento. O real impacto das políticas, no entanto, ainda deve levar tempo para se consolidar, embora Portugal esteja no caminho certo. “Ainda é cedo para avaliar os resultados, mas podemos afirmar que os últimos números mostram um aumento no investimento em pesquisa que segue alinhado com a recuperação econômica do país”, afirma Philippe Larrue, analista da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico e especialista em inovação em Portugal.
O que se vê é que os empreendedores estrangeiros parecem ter percebido as vantagens do país e estão levando suas empresas para Lisboa. De acordo com dados da Startup Lisboa, 40% das empresas que participam de seu programa de capacitação são estrangeiras. Há três anos, eram 20%. Agora, todos concordam que o maior desafio é atrair investidores, para que as novatas portuguesas possam dar passos mais largos. “Estamos passando por um momento de deslumbramento, mas o capital ainda é o fator que mais faz falta. Mais capital traz mais rapidez, mais desenvolvimento, mais pesquisa, mais contratações e, logicamente, mais visibilidade”, afirma António Machado, fundador da Lyme, startup da cidade de Braga que desenvolve uma certificação digital para e-mail. O bom é que tanto o setor público quanto o setor privado estão empenhados num projeto de longo prazo para que Portugal se torne um exemplo global — no qual o Brasil deveria prestar atenção.
Para Manuel Heitor, ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal, o país precisa continuar a investir na formação e na atração de novos talentos
O ministro português da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, acredita que, para o país se consolidar como polo tecnológico na Europa, o principal investimento tem de ser na qualificação de profissionais. Na entrevista a seguir, ele diz ser importante que startups tenham liberdade para testar novas ideias, impulsionando o espírito empreendedor e inovador em Portugal.
Qual é o principal objetivo do governo português no setor de tecnologia?
Queremos transformar Portugal em um laboratório vivo, um lugar onde se possam fazer experimentos na agricultura, no nível urbano e em novas tecnologias. E tornar o país um grande laboratório para startups testarem novas ideias. Também queremos que Portugal seja um polo para tecnologia espacial na Europa. A competição é enorme, mas é o objetivo.
Como fazer com que Portugal, um país pequeno, seja uma referência na Europa?
Não há maneira de olhar para o futuro sem investir no conhecimento e na educação. E isso significa investir nas pessoas. A conferência Web Summit é parte de uma estratégia de longo prazo para atrair e qualificar profissionais. Queremos uma força de trabalho humana e capacitada no âmbito digital.
O senhor falou de projetos na área espacial. O que Portugal está fazendo nessa área?
A ideia de criar novos mercados usando a observação da Terra não é nova. A Agência Europeia Espacial vem fazendo isso há 20 anos. Mas Portugal pode desempenhar um papel significativo por ter uma localização privilegiada no Atlântico, oferecendo fácil acesso ao espaço. Nós criamos o Programa Internacional Atlântico de Lançamento de Satélites para facilitar o envio de pequenos satélites ao espaço. Esse programa também busca desenvolver uma nova geração de satélites, promovendo novos negócios em novos mercados para startups. Queremos atrair empresas que saibam como processar e analisar os dados obtidos por esses satélites para, assim, aplicar as descobertas em diversas áreas, que vão da agricultura ao planejamento urbano.