Revista Exame

Somos mais ricos, tecnológicos e produtivos. E desiguais também

A concentração de renda é um problema que atinge vários países. Uma das causas é a transformação no trabalho com a adoção de novas tecnologias

Sem-teto em Nova York: 13,5% dos americanos vivem abaixo da linha de pobreza (Spencer Platt/Getty Images)

Sem-teto em Nova York: 13,5% dos americanos vivem abaixo da linha de pobreza (Spencer Platt/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 27 de julho de 2017 às 05h55.

Última atualização em 30 de agosto de 2017 às 17h12.

Nova York – A maioria dos quase 60 milhões de turistas que visitam Nova York todos os anos provavelmente não chega perto do Bronx, um dos cinco distritos que compõem a cidade. Com somente uma grande atração nos roteiros turísticos, o zoológico, e com o estádio do New York Yankees, destino procurado pelos fãs de beisebol, o Bronx é apenas um “borough” de nome famoso, mas que não costuma valer o desvio no roteiro.

Para quem está interessado em um dos fenômenos mais relevantes dos dias de hoje, entretanto, visitar o Bronx é ver de perto um retrato da crescente desigualdade de renda nos Estados Unidos. O brilho das luzes da Times Square e dos prédios reluzentes do distrito financeiro está a apenas meia hora de metrô, mas a distância econômica do Bronx em relação ao resto da cidade não poderia ser maior.

Um terço do 1,5 milhão de moradores do Bronx vive na pobreza, segundo dados de 2015. O distrito eleitoral mais pobre dos Estados Unidos fica no bairro. Apesar da redução dos índices de criminalidade, o Bronx ainda é uma das regiões mais perigosas de Nova York. No final do ano passado, a rede de livrarias Barnes and Noble fechou a última loja que mantinha no distrito — a última livraria da região com acervo genérico e não ligada a uma universidade.

Manhattan, que tem apenas 200 000 moradores a mais, conta com quase 90 livrarias. O Bronx também é o único dos cinco “boroughs” da cidade (os outros são Manhattan, Brooklyn, Queens e Staten Island) que não conta com uma Apple Store. “Essa é a Nova York que ninguém quer ver”, diz Susan Smith, de 49 anos, mãe solteira de dois filhos e que equilibra dois empregos no setor de serviços para sustentar a família. “Pode esquecer o glamour dos filmes. A realidade aqui é completamente diferente.”

De acordo com os dados mais recentes do censo, 13,5% dos americanos vivem abaixo da linha de pobreza, o que significa uma renda anual de pouco menos de 19 000 dólares para uma família de três pessoas. O número vem melhorando nos últimos anos, mas ainda está acima dos 11% registrados no período pré-recessão. E 18% dos americanos estão só um pouco acima da linha de pobreza — o que significa uma situação econômica difícil, especialmente em regiões onde o custo de vida é elevado.

As famílias no alto da pirâmide — os 10% mais ricos — têm nove vezes a renda das 90% restantes, em média. No topo, a diferença é ainda mais gritante: o 1% dos americanos mais ricos tem renda média 38 vezes maior do que a desses outros 90%. Somente um século atrás, às vésperas da Grande Depressão, houve tamanha concentração de riqueza nos Estados Unidos.

“O problema da riqueza e da desigualdade de renda é a grande questão moral, econômica e política do nosso tempo”, disse o autointitulado socialista Bernie Sanders, do Partido Democrata. Na última eleição presidencial, Sanders foi derrotado por Hillary Clinton na disputa pela candidatura do partido, mas sua performance nas primárias surpreendeu todos os analistas. A vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, do Brexit no Reino Unido e o crescimento dos partidos de apelo nacionalista na Europa Ocidental — marcadamente na França e na Holanda — também são atribuídos a sentimentos relacionados: estagnação, perda de dignidade e poucas esperanças de mobilidade social.

Desigualdade é um problema potencial até mesmo na China comunista, segundo um estudo publicado no fim do ano passado por um grupo de cinco autores, entre os quais o francês Thomas Piketty, famoso por seu trabalho relativo ao tema. No fim da década de 70, os 10% chineses mais ricos detinham cerca de 25% da riqueza do país; em 2015, o percentual subiu para 40% — um índice de concentração superior ao da França. Qual é a explicação para tamanha desigualdade em um mundo cada vez mais tecnologicamente avançado, mais produtivo e mais rico?

Os motivos são muitos — e controversos —, mas existem algumas unanimidades. Uma delas é a transformação do trabalho. Ocupações típicas da classe média estão desaparecendo ou sendo desempenhadas por máquinas. Um estudo de 2013 amplamente divulgado apontava que 47% dos empregos nos Estados Unidos corriam o risco de automatização até 2030. Embora a conclusão dos autores, Carl Benedikt Frey e Michael Osborne, da Universidade de Oxford, não seja unânime entre os estudiosos do assunto, os alertas surgem de todos os lados.

Uma das vozes mais influentes na discussão sobre as mudanças que vêm por aí é a do físico britânico Stephen Hawking. “A inteligência artificial vai acelerar a desigualdade econômica, que é cada vez maior no mundo inteiro”, escreveu Hawking num artigo recente. “A internet e as plataformas que a tornam possível permitem que um grupo de indivíduos muito pequeno tenha lucros enormes, empregando pouquíssimas pessoas. Isso é inevitável, é progresso, mas também é socialmente destrutivo.”

Esses avanços tecnológicos da última década, especialmente nas áreas de inteligência artificial e robótica, sugerem que os efeitos serão sentidos mais cedo do que se possa imaginar. Empregos como o de motorista podem estar com os dias contados. Os carros autônomos podem demorar mais de uma década para ganhar as ruas, mas os efeitos da tecnologia já se fazem sentir de outra maneira.

“A insegurança no trabalho é cada vez maior”, afirma Jacob Hacker, diretor do Centro de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Yale. “Estamos vendo o surgimento de venda de trabalho numa espécie de bolsa, como o que ocorre com empresas como a Uber. Isso significa pouco controle sobre as horas trabalhadas e a perda de benefícios essenciais, como plano de saúde e aposentadoria. Os riscos estão sendo transferidos do empregador para o empregado.” A força de trabalho do século 21, na opinião de Hacker, vai exigir um novo contrato social, uma adequação das leis e regras para uma realidade muito diferente da que conhecemos até aqui.

Mesmo quem ainda tem um emprego “tradicional” sofre com as mudanças estruturais das economias mais desenvolvidas. Nos meses de fevereiro e março houve um acréscimo de 37 000 postos de trabalho na indústria americana, o que levou o presidente Trump a exclamar que o setor estava brilhando. Mas os números não são motivo de comemoração: em termos absolutos, os 12,4 milhões de americanos empregados na indústria estão em níveis semelhantes aos da década de 40. Os empregos que pagavam um salário de cerca de 30 dólares por hora deram lugar a vagas no setor de serviços que não costumam pagar mais do que o salário mínimo estabelecido pelo governo federal, que é de 7,25 dólares por hora. Susan Smith, a mãe solteira do Bronx, trabalha numa rede de varejo e num armazém. A escala de trabalho muda quase toda semana, e ela depende da ajuda de amigos e vizinhos para buscar os filhos na escola. “Não sobra nem um centavo no fim do mês”, diz Susan.

O encolhimento da classe média nos Estados Unidos é marcante em comparação com alguns países da Europa Ocidental, de acordo com um estudo recém-divulgado pelo instituto de pesquisas Pew. De 1991 a 2010, a fatia de americanos que viviam em famílias de renda média caiu de 62% para 59%. Na França, a proporção cresceu de 72% para 74%. Uma diminuição da classe média não é necessariamente ruim se a tendência for de aumento da renda da população.

Mas o que se verifica no estudo é que a camada inferior — as pessoas com menor renda dentro da faixa considerada média — vem aumentando. Segundo o professor Hacker, da Universidade Yale, esse é um dado que merece atenção. “Trata-se provavelmente de um dos efeitos da transformação estrutural da economia.”

Mesmo em países onde o estudo aponta um aumento significativo da classe média, como o Reino Unido, o sentimento da população não acompanha o que dizem os números. A campanha pelo Brexit explorou a ansiedade relacionada à imigração e à crise de refugiados do Oriente Médio e, entre as várias explicações para a vitória do voto pela saída do Reino Unido da União Europeia, estava a sensação de perda da identidade britânica. Mas os temas nacionalistas e o apelo à suposta uniformidade cultural também se apoiam na percepção de que, para uma parte importante da população, o avanço da globalização e as políticas de austeridade pós-colapso financeiro de 2008 só servem para deixar os ricos ainda mais ricos.

O senso comum — e a premissa do argumento de populistas como Donald Trump — aponta que a ascensão das economias emergentes é um dos principais fatores para a redução da desigualdade entre os países, mas à custa de um aumento da desigualdade interna. Um relatório do Banco Mundial de outubro passado, entretanto, revela que, de 2008 a 2013, o número de países que registraram um declínio na desigualdade foi o dobro daqueles em que a desigualdade aumentou.

A quantidade de pessoas que vivem na pobreza extrema, ou seja, com menos de 1,90 dólar por dia, caiu de 881 milhões, em 2012, para 767 milhões, no ano seguinte. Os avanços são notáveis, mas ainda há muito a fazer. “Não há lugar para a complacência”, afirma o relatório. Eleitores insatisfeitos reagem — e a raiva costuma ser má conselheira.

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