Parque eólico em Pernambuco: garantias mais rígidas nos leilões excluiriam investidores que não entregam as obras (GERMANO LUDERS/Exame)
Da Redação
Publicado em 30 de junho de 2016 às 09h50.
São Paulo — O Brasil tem tudo para ser uma potência em energia. No entanto, de tempos em tempos, nosso sistema elétrico entra em curto. Geralmente, a inépcia do governo está por trás dos problemas. Em 2001, faltou água para as hidrelétricas e, por inexistência de alternativas planejadas, o país enfrentou uma série de apagões e, na sequência, um racionamento.
Em 2012, o governo impôs uma redução de 20% nas tarifas — três grandes geradoras estaduais não aceitaram a condição e faltou energia para as distribuidoras, que tiveram de comprar no mercado de curto prazo, com o preço nas alturas. Como se não bastasse, em seguida, o país entrou em nova seca histórica. Na hora do aperto, usinas e linhas de transmissão com a construção atrasada fizeram falta.
A carência foi coberta com o acionamento de usinas termelétricas, uma fonte mais cara. O resultado de toda essa desorganização é uma conta de 120 bilhões de reais que os consumidores começaram a pagar em 2015 e deverão terminar só em 2019. A novidade agora é que está sobrando energia. Uma boa notícia? Na verdade, isso é um reflexo do drama maior do país.
A recessão econômica deve fazer com que o consumo de energia caia 3% desde o final de 2014 até o final de 2016. Por si só, isso já é grave o bastante, mas a queda veio justamente num momento em que usinas com obras em atraso estão entrando em operação — e podem ampliar ainda mais a sobreoferta.
Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), 9 400 megawatts de potência serão adicionados ao sistema neste ano. Um quinto dessa capacidade virá da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Com queda na demanda, de um lado, e excesso de oferta, do outro, os problemas alastram-se por todo o setor. Hoje a sobra prejudica principalmente as distribuidoras.
Pela forma como o sistema elétrico foi reorganizado em 2004, elas são as responsáveis por contratar (com até cinco anos de antecedência) a energia para atender os clientes — assim, dão lastro para as geradoras conseguirem financiamento para iniciar obras de usinas e expandir a oferta.
Os contratos das distribuidoras com as geradoras atualmente representam um volume de energia 13% maior do que os consumidores vão precisar em 2016. Isso corresponde a um excesso de 6 000 megawatts, suficiente para abastecer a Colômbia. A estimativa é que o excesso de oferta perdure pelo menos até 2021, quando o total acumulado das sobras alcançará 40 000 megawatts.
Acertar na mosca a quantidade de energia a ser consumida no futuro é praticamente impossível. Por isso, é comum faltar em algumas distribuidoras e sobrar em outras. “Dessa vez, o problema se tornou sistêmico: 80% das 51 empresas de distribuição estão com um excedente contratado”, diz Nelson Leite, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica.
Além da queda da atividade econômica, essas companhias perderam clientes de peso. No ano passado, o governo impôs um tarifaço para bancar a conta deixada pelo acionamento das térmicas desde 2012. Isso incentivou indústrias e shoppings a mudar para o mercado livre, porque ali a situação virou do avesso: agora os preços estão até 25% inferiores aos do ambiente regulado.
Estima-se que cerca de 1 300 empresas devam migrar para o mercado livre em 2016. Mesmo com a queda na demanda, as distribuidoras são obrigadas a honrar os contratos de energia — uma regra razoável, uma vez que o gerador gastou com a obra e precisa ter retorno.
O que está ocorrendo é que as distribuidoras estão pagando 150 reais o megawatt-hora às geradoras e revendendo a mesma energia que ainda será gerada a um terço do valor no mercado à vista. Os prejuízos, obviamente, estão se acumulando. A consultoria Thymos, especializada no setor elétrico, calcula que as perdas cheguem a 10 bilhões de reais até 2020.
Distribuidoras ouvidas por EXAME, no entanto, afirmam que a conta pode ser de 5 bilhões por ano — metade do lucro operacional do setor em 2015. O governo está correndo para tentar arrumar a bagunça. O Ministério de Minas e Energia estuda a venda de energia excedente para a Argentina e a revisão do cronograma de leilões para que as distribuidoras tenham mais tempo para se planejar.
Já a Aneel, agência reguladora do setor, passou a permitir uma negociação bilateral entre geradoras e distribuidoras para reduzir ou suspender a energia contratada por um período. Dessa forma, livra as usinas em construção de multas por atraso e reduz os excessos nas distribuidoras.
Em junho, a agência também aprovou a criação de um sistema para gerenciar déficits e sobras de energia e deu permissão às distribuidoras para descontar futuramente da energia contratada o montante perdido com a migração de clientes para o mercado livre. “A repactuação não é suficiente”, afirma João Carlos Mello, presidente da Thymos.
“Uma alternativa seria permitir que as distribuidoras pudessem negociar seus contratos no mercado livre.” A urgência em resolver o assunto é nítida: como estão acumulando perdas, as distribuidoras correm o risco de não ter capacidade financeira para comprar energia no futuro. E, por mais que haja sobra agora, o Brasil vai precisar de mais geração lá na frente.
Historicamente, o consumo cresce 3,5% ao ano. Segundo a consultoria carioca PSR, para atender à demanda até 2030, o país precisa de investimentos para que a oferta aumente 22 000 megawatts no final desse período.
“Num processo como esse, o resultado é que há menos capacidade de investimento para preparar o futuro”, diz Miguel Setas, presidente da EDP Energias do Brasil, grupo com uma distribuidora em São Paulo e outra no Espírito Santo. O cenário de sobra cria uma falsa sensação de segurança.
Dados do Instituto de Desenvolvimento do Setor Energético, do Rio de Janeiro, mostram que, se o consumo estivesse crescendo em ritmo normal, a demanda de energia em março estaria 7% acima do patamar atual. Os reservatórios das hidrelétricas seriam capazes de atender só um mês de consumo (considerando que não caísse mais nenhuma gota de chuva) — hoje a reserva dá para três meses.
“Um país que vai do risco de falta de energia à sobra em pouco tempo mostra que as regras estão falhas e que não sabe planejar num setor que precisa de previsibilidade”, afirma Roberto D’Araujo, diretor do instituto. A crise da vez se junta a problemas históricos no setor elétrico.
Na geração, há usinas que não ficam prontas conforme o planejado — desde 2008, 3 500 megawatts não foram entregues no prazo, a exemplo das seis térmicas do Grupo Bertin que deveriam ter sido inauguradas em 2013. Uma forma de evitar a situação seria exigir contrapartidas mais rígidas nos leilões, afastando assim possíveis aventureiros. Na transmissão, a questão é o retorno do investimento.
A competição no passado foi turbinada pela presença da estatal Eletrobras e da espanhola Abengoa (hoje em recuperação judicial), que ofereciam preços até 30% menores do que os das concorrentes.
Agora ambas estão mergulhadas em dívidas (o governo Temer nomeou Wilson Ferreira Júnior, ex-presidente da CPFL, uma das maiores empresas privadas do setor, para presidir a Eletrobras e cogita privatizar algumas distribuidoras da estatal para abater dívidas). Para atrair investidores na transmissão, o governo já elevou a taxa de retorno de 5,5% ao ano para 7,8%.
Com isso, conseguiu leiloar 14 das 24 linhas oferecidas em abril. Agora os investidores exigem mais de 10% ao ano. Pelo que se vê, o que sobra no setor elétrico não é só energia, mas um emaranhado de questões que precisam ser resolvidas.