Revista Exame

Fake news são a preocupação da vez das companhias

Sete das 50 notícias falsas mais populares no início de abril tinham como alvo empresas e seus produtos

Protesto contra tiroteio em escola na Flórida: empresas foram cobradas a cortar relações com a Associação Nacional de Rifles (Mickey Adair/Getty Images)

Protesto contra tiroteio em escola na Flórida: empresas foram cobradas a cortar relações com a Associação Nacional de Rifles (Mickey Adair/Getty Images)

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Letícia Toledo

Publicado em 12 de abril de 2018 às 06h02.

Última atualização em 19 de abril de 2018 às 10h48.

Desmentir boatos e notícias falsas não costuma ser tarefa de presidentes de grandes empresas. Ainda mais num evento como o 8o Fórum Mundial da Água, um dos principais sobre sustentabilidade do planeta, que a cada três anos reúne milhares de especialistas de dezenas de países. A edição de 2018 do evento foi realizada em março, em Brasília, e era uma grande oportunidade para Henrique Braun, presidente da fabricante de bebidas Coca-Cola no Brasil, divulgar as ações sustentáveis da companhia. Mas Braun precisou esclarecer em seu discurso um boato que havia se espalhado pela internet nos dias anteriores. Segundo a “notícia”, a Coca-Cola e a fabricante de alimentos Nestlé estariam negociando a concessão do Aquífero Guarani, um dos maiores reservatórios subterrâneos de água doce do planeta. (A Nestlé, recentemente, fez o oposto: anunciou a venda de seus negócios de água no Brasil.) As paredes da fábrica da Coca-Cola nos arredores de Brasília amanheceram pixadas com dizeres como “Coca-Cola, tire as mãos da nossa água”. Braun, educadamente, explicou que era uma mentira deslavada.

A agilidade na resposta foi possível graças a um trabalho iniciado há 12 meses pela multinacional no Brasil, quando criou uma área para monitorar as notícias na imprensa e nas redes sociais. No site da marca foi criada uma seção denominada #éboato para esclarecer confusões como: “A mistura de Coca-Cola com a bala Mentos faz mal?” e “O refrigerante causa câncer?” Pelo WhatsApp, funcionários podem mandar perguntas sobre o que ouviram e obter esclarecimentos da empresa. “Temos 70.000 colaboradores que podem ajudar a disseminar a verdade”, afirma Marina Peixoto, diretora de comunicação da Coca-Cola.

As notícias falsas, ou fake news, como ficaram conhecidas, são a preocupação da vez das companhias. Segundo o site americano Snopes, especializado em checar informações, sete das 50 notícias falsas mais populares no início de abril tinham como alvo empresas e seus produtos. Entre elas está uma fabricada pelo presidente Donald Trump, que usou sua conta no Twitter para afirmar que a varejista Amazon estaria falindo o sistema postal dos Estados Unidos.

No Brasil, os episódios têm se tornado mais comuns. Em 2017, a fabricante de cervejas Ambev teve de explicar que não havia triturado pombos nas bebidas. A montadora chinesa JAC Motors afirmou que “não, não deixaria o Brasil”. No fim do ano passado, espalhou-se um boato de que a fabricante de bebidas Pepsi lançaria latas homenageando o deputado federal Jair Bolsonaro, como uma resposta às latas da Coca-Cola homenageando a cantora Pabllo Vittar.

Companhias aéreas, bancos e varejistas precisam constantemente refutar a veracidade de promoções espalhadas nas redes sociais. “As fake news começaram na política, passaram pelas celebridades e chegaram às empresas”, afirma a pesquisadora Pollyana Ferrari, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que prepara um livro sobre o tema.

Fábrica da Philip Morris na Colômbia: 12% do faturamento da companhia vem de cigarros eletrônicos | Nicolo Filippo Rosso/Getty Images

O avanço das notícias falsas sobre as empresas é a ponta de lança de um momento de pressão. Companhias são cobradas por consumidores, funcionários, fornecedores e reguladores há gerações. Mas a virulência dos dias de hoje, proporcionada por Facebook, Twitter, Instagram etc., é inédita. Vivemos a era do ativismo, que derruba celebridades, influencia o resultado de eleições, faz com que famílias briguem entre si — e joga no colo das empresas a responsabilidade sobre temas inimagináveis até pouco tempo (muitos deles, inventados).

Os exemplos mais recentes vêm dos Estados Unidos. Após o ataque que deixou 17 mortos numa escola na Flórida, em fevereiro, dezenas de empresas anunciaram planos de cortar relações com a Associação Nacional de Rifles (NRA, na sigla em inglês) depois de sofrer pressão de grupos no Twitter e no Facebook pedindo boicotes a redes varejistas. O Walmart limitou a 21 anos a idade mínima para a compra de armas.

A Apple, fabricante do iPhone, virou alvo por um motivo sui generis. Em uma carta de seis páginas, divulgada em janeiro, a gestora de ativos Jana Partners e o CalSTRS, órgão que administra as pensões dos professores de escolas públicas californianas, afirmam que a Apple precisa se responsabilizar e responder pelo crescente número de crianças viciadas em seus smartphones. Juntos, eles detêm perto de 2 bilhões de dólares em ações da Apple. A empresa respondeu num comunicado que já vem desenvolvendo recursos para combater o vício.

Ignorar esse novo mundo pode colocar em risco a própria sustentabilidade do negócio — e, diriam os cínicos, jogar pela janela uma valiosa oportunidade de marketing. A quantidade de dinheiro em fundos que consideram temas sociais em seus investimentos passou de 13 trilhões de dólares, em 2012, para 23 trilhões, em 2016. O número de empresas pressionadas por investidores ativistas passou de 570, em 2013, para 805, no ano passado, segundo a organização Activist Insight.

Uma pesquisa da agência de relações públicas Weber Shandwick indica que 41% dos consumidores no mundo defendem que as empresas deveriam expressar opiniões ou tomar atitudes em questões controversas, ante 20% que acham que uma empresa não deve ter posição. Entre os brasileiros, 61% dizem que elas devem se posicionar, a segunda proporção no mundo, atrás dos indianos (65%). Outra pesquisa, da empresa de relações públicas Edelman, mostra que 57% dos consumidores compram ou boicotam marcas devido às posições que elas adotam.

Entre os millennials, geração nascida de 1980 a 1995, o ativismo é ainda mais forte: 60% dizem comprar com base em posições políticas, e 44% afirmam que são mais leais a empresas cujo presidente toma partido em temas controversos. “Empregados e consumidores esperam que os presidentes e as companhias sejam embaixadores dos valores que eles julgam ser importantes”, diz Micho Spring, responsável pela pesquisa da Weber Shandwick.

Fábrica da Coca-Cola no Brasil: a companhia virou alvo de um boato de que estaria negociando a concessão do Aquífero Guarani | Marcelo Correa

A pressão pode vir tanto de indivíduos quanto de grupos organizados. No início de fevereiro, uma série de mal-entendidos fez os consumidores acreditar que a fabricante de alimentos Pepsico estava lançando uma versão de seu salgadinho Doritos apenas para mulheres. Foi o suficiente para mais de 10.000 postagens no Facebook sobre o “Doritos para Mulheres”. A resposta da Pepsico veio no Twitter na noite da segunda-feira 5 de fevereiro: “Nós já temos Doritos para mulheres — eles se chamam Doritos”. Nos Estados Unidos, há grupos que cobram um ambiente menos hostil para negros nas empresas e até aqueles que mapeiam companhias que fazem doações a causas liberais (e instigam as pessoas a boicotá-las).

No Brasil, um dos pioneiros é o Moda Livre, um aplicativo para classificar mais de 100 marcas e varejistas de roupas sobre ações para conter o trabalho escravo. “Antes, espalhar o ativismo era caro e complicado. Com a internet, ser ouvido ficou muito mais fácil”, diz Brayden King, professor de gestão na escola de negócios americana Kellogg e pesquisador do Centro de Reputação Corporativa da universidade britânica Oxford.

Os consumidores têm conseguido, nessa toada, ser cada vez mais ouvidos também por governos, criando um caminho indireto de pressão. “Há uma tendência de o Estado entrar em questões que eram deixadas para a iniciativa privada”, diz Tércio Sampaio Ferraz, sócio da Sampaio Ferraz Advogados. O governo brasileiro estuda uma proposta de taxa sobre bebidas açucaradas, a exemplo das decisões em países como Hungria, África do Sul, Reino Unido, Irlanda e México.

Cidades alemãs, como Stuttgart, sede das montadoras Porsche e Mercedes, querem proibir a circulação de carros a diesel. O Chile vetou personagens infantis em caixas de cereais açucarados ou brinquedos vendidos com doces. É um cerco semelhante ao visto, há anos, pelas fabricantes de cigarros. Em dez anos, órgãos reguladores de 76 países adotaram restrições às companhias. As maiores fabricantes buscam alternativas menos, digamos, mortais.

A líder mundial Philip Morris investiu, nos últimos dez anos, mais de 3 bilhões de dólares no desenvolvimento de produtos e na abertura de um centro de pesquisa que reúne 430 pessoas de 40 países. A meta é que dois quintos da receita venham de produtos alternativos ao cigarro até 2025. Na concorrente British American Tobacco, dona da Souza Cruz, o investimento em produtos alternativos foi de 2,5 bilhões de dólares em seis anos. “Nos sentíamos o patinho feio ao sermos os únicos cobrados. Agora, empresas de diversos setores estão pressionadas”, diz Liel Miranda, presidente da Souza Cruz.

Loja da Apple no Japão: ativistas cobram ações para reduzir o vício dos clientes | Lucas Vallecillos/Agb Photo

Tanta patrulha levanta uma questão para as empresas: quando esnobar a pressão e seguir em frente? Um desafio está em como responder. Um exemplo do que não fazer foi dado no início de abril pelo empresário sul-africano Elon Musk, dono da montadora de carros elétricos Tesla. Em meio a um gigantesco recall de seus veículos e a uma onda de boatos sobre a falência da companhia, Musk tuitou que, sim, a Tesla estava quebrando, e depois escreveu que tinha tomado muita tequila.

Deixando a tequila de lado, um dos pontos-chave para combater os ataques vindos de todos os lados é a transparência. É isso o que tem levado a uma redução de notícias falsas contra uma das empresas mais patrulhadas do planeta, a rede de fast-food McDonald’s. Há décadas, de tempos em tempos, aparecem notícias como a de que o hambúrguer da rede é feito de carne de minhoca, de cachorro e até humana. Para a pesquisadora da Universidade Harvard, Aimee Rinehart, é importante impedir também que os boatos ganhem corpo. “As fake news se espalham mais rápido porque normalmente envolvem uma questão emocional. Nesse caso, é muito difícil fazer com que as pessoas mudem de opinião depois”, diz Rinehart, que faz parte do projeto de combate à desinformação First Draft.

Para impedir novos boatos, o McDonald’s criou o projeto Portas Abertas, que convida clientes que estão em seu restaurante, nutricionistas e pediatras para conhecer a cozinha e desmistificar as notícias sobre os sanduíches. Vídeos postados nas redes sociais também mostram a cozinha e falam sobre os mitos que cercam a empresa. “Até pouco tempo, abrir nossas cozinhas era algo impensável”, afirma David Grinberg, diretor de comunicação do McDonald’s no Brasil. O mundo está mesmo mais complexo — também para as empresas.

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