Londres: fora da União Europeia, a cidade correria o risco de perder o título de centro financeiro da Europa (Oli Scarff/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 27 de dezembro de 2012 às 08h36.
São Paulo - "Fortaleza que a Natureza para si construiu / Contra as doenças e os braços invasores; / Esta raça feliz, mundo pequeno, / Esta pedra preciosa, colocada num mar de prata / Que lhe faz as vezes de muro intransponível / Ou de fosso que lhe defende a casa"
As palavras acima são de João de Gaunt, personagem da peça Ricardo II, de William Shakespeare. Como acontece com quase toda a obra do maior autor da literatura inglesa, esse trecho escrito há mais de quatro séculos continua atualíssimo. A descrição da Inglaterra feita por João de Gaunt revela o orgulho de viver numa ilha protegida da Europa.
“Neblina no Canal da Mancha: continente isolado” é uma manchete de jornal publicada há muitos anos, mas até hoje repetida em tom de brincadeira. Mesmo antes do estouro da crise europeia há cerca de quatro anos, a Inglaterra era um dos únicos países da região onde pessoas respeitadas internamente defendiam a saída do bloco econômico.
Para elas, os 50 quilômetros que separam as cidades de Dover, na Inglaterra, e Calais, na França, são mais distantes do que os 5 000 quilômetros entre Londres e Nova York. Agora, a possibilidade que por muito tempo reinou apenas no campo das ideias tem alguma chance de se tornar real.
O governo do primeiro-ministro David Cameron se vê cada vez mais pressionado a renegociar o papel do país na União Europeia. A proposta de um plebiscito não está totalmente descartada — as pesquisas de opinião mostram que metade dos ingleses prefere bater em retirada do bloco europeu.
Uma parte relevante da pressão por um referendo vem de Nigel Farage, um inglês de 48 anos que se transformou em celebridade na cena política local. Ex-operador de commodities na City de Londres, ele é o líder do Partido da Independência do Reino Unido (Ukip). Fundado em 1993, o Ukip era uma legenda insignificante até conquistar 12 cadeiras no Parlamento Europeu em 2004.
As pesquisas de opinião mais recentes indicam que o partido tem o apoio de 13% do eleitorado, mais do que os liberais democratas — até então a única alternativa aos partidos Conservador e Trabalhista, que comandam o país há décadas. A cada manchete de jornal sobre a crise europeia, o Ukip ganha novos simpatizantes, todos contrários à ideia de que para sair da crise é preciso aprofundar a relação entre os países europeus.
“A Inglaterra se preocupa demais com o balanço de poder entre as nações europeias. Por isso, tem alergia a qualquer discussão que mencione a necessidade de haver maior união”, afirma Nicolaus Heinen, economista do Deutsche Bank, em Frankfurt.
Não por acaso, a Inglaterra sempre foi uma espécie de membro “pela metade” das iniciativas do continente. Embora tenha aderido à União Europeia, nunca chegou nem perto de abandonar a libra esterlina para adotar o euro (o que os ingleses festejam até hoje). A manutenção da moeda, aliás, é tida como uma das causas do recente boom do mercado imobiliário londrino.
Atraídos pelo “porto seguro” da Europa, investidores asiáticos despejaram quase 4 bilhões de dólares em escritórios e imóveis comerciais neste ano. O fato de os ingleses serem “contribuintes líquidos” do bloco — ou seja, injetarem mais dinheiro no orçamento do que recebem dele — não ajuda a causa europeia em Londres.
Na contramão
Com a continuidade da crise, cresce a impressão de que os interesses ingleses e as necessidades europeias são incompatíveis, apesar da dúvida sobre se o governo terá coragem de permitir um plebiscito. “Não acredito que os ingleses estejam na União Europeia daqui a cinco anos”, afirma Philip Whyte, pesquisador sênior do Centro para Reforma Europeia, instituição de pesquisa privada com sede em Londres.
O que pode virar a maré para o lado dos defensores da permanência do país no bloco é uma fria análise do potencial das perdas. De uma hora para outra, o país jogaria fora as vantagens de contar com o fluxo livre de bens, serviços, capitais e pessoas com os outros países europeus. “Metade de nossas exportações vai para a União Europeia. Do ponto de vista comercial, o melhor é ficar”, diz Christopher Howarth, analista do Open Europe, centro de estudos que reúne pesquisadores considerados críticos à União Europeia.
“O pior cenário é o país ser marginalizado”, afirma Howard Davies, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris e ex-presidente da Autoridade de Serviços Financeiros da Inglaterra. O maior temor é que Londres perca sua posição de centro financeiro da Europa caso a união bancária entre os países da zona do euro avance da teoria para a prática.
Diante desse risco, toda a gritaria contra “virar uma colônia da Alemanha” pode amainar. “Nós ganhamos a guerra, eles vão ganhar a paz” é uma frase comum entre críticos do bloco europeu na Inglaterra. Ao avaliar os prós e os contras, talvez os ingleses cheguem à conclusão de que é mesmo melhor se render à Europa — finalmente.