A Eretz.bio, incubadora de startups de saúde do Einstein, já avaliou mais de 2.500 empresas e acelerou 140 delas (Eretz.bio/Divulgação)
Jornalista colaborador
Publicado em 29 de outubro de 2024 às 06h00.
Última atualização em 30 de outubro de 2024 às 09h46.
Se o mercado de tecnologia em saúde no Brasil fosse um paciente, o prognóstico seria muito animador. As inovações implementadas nos últimos cinco anos, como telemedicina, inteligência artificial e preditiva, prontuários eletrônicos e sistemas integrados hospitalares, trazem boas esperanças para um futuro mais saudável para o país.
“O Brasil está muito bem no cenário de inovação em saúde”, diz o radiologista Gustavo Meirelles, fundador da Inovação em Saúde, comunidade de profissionais que debate os principais avanços desse setor. Num país dividido entre a saúde pública (atendendo a 75% da população), e a privada (os outros 25%), Meirelles se diz otimista com o potencial que temos adiante. “Há muitas frentes sendo desbravadas, aprimoradas. Além disso, o brasileiro é empreendedor, gosta de criar novidades. Há inúmeras startups brasileiras conquistando o mundo”, afirma. Levantamento feito pela Liga Ventures, a maior rede de inovação aberta da América Latina, em parceria com a Unimed Fesp, identificou 536 startups do setor de saúde ativas no país.
A Ionic Health saiu de São José dos Campos para conquistar o mundo. Fundada em 2019, no Parque Tecnológico da cidade do interior paulista, a startup criou soluções automatizadas para monitorar, acessar, educar e teleoperar sistemas de saúde de forma remota. “Diante da escassez de radiologistas e da crescente demanda por procedimentos de imagem, essa tecnologia facilita a colaboração entre locais e especialistas, melhorando a eficiência e o atendimento ao paciente”, explica Meirelles. Em 2023, a americana GE HealthCare selou um acordo com a Ionic Health para distribuir globalmente sua tecnologia.
Medicina na tela
A tragédia da pandemia de covid-19 acelerou investimentos e muitos avanços no setor da saúde. Em 2019, 14 bilhões de dólares eram investidos globalmente em inovação na saúde, de acordo com levantamento da americana StartUp Health. Em 2020 esse valor saltou para 22 bilhões de dólares e no ano seguinte atingiu 44 bilhões de dólares. Além da turbinada nos investimentos, a covid permitiu diversas mudanças regulatórias, como a regulamentação da telessaúde. Segundo a Global Market Insights, somente o mercado mundial de telemedicina deve bater 175,5 bilhões de dólares até 2026.
Caio Soares, Chief Medical Officer da Teladoc no Brasil, healthtech americana líder global em serviços médicos não presenciais, lembra que em 2018 sua equipe comemorou minguadas 50 teleconsultas realizadas num mês. Dois anos depois, durante a primeira onda da pandemia, esse número saltou para 600. Em junho de 2021, eram mais de 12.000 atendimentos num único dia. Hoje a Teladoc tem 6 milhões de vidas cobertas no Brasil e deve bater 1 milhão de consultas anuais até o fim de 2024. “Dos nossos casos, 90% são resolvidos logo na primeira interação”, explica Soares. “Isso é um impacto muito positivo para todo o sistema de saúde. Reduz deslocamentos, prioriza quem realmente precisa de algo urgente, salva vidas”, finaliza.
O executivo, que também é fundador da Saúde Digital Brasil, associação que reúne os maiores players de saúde digital do país, comemora os avanços da telemedicina no Brasil. No início do ano, durante uma expedição médica na terra indígena do Xingu da qual fez parte, viu uma jovem mãe de 22 anos prostrada no chão, com uma grande infecção no braço. Graças à tecnologia da telemedicina e dos satélites de comunicação, o médico se conectou a um especialista baseado em São Paulo para analisar o caso. “Ela estava em choque e precisaria ir para um hospital em até 24 horas, caso contrário morreria. Com ajuda do Exército, ela foi transferida e recebeu o atendimento necessário a tempo”, comemora.
Integração de dados
Pioneiro no uso de tecnologias de ponta — foi o primeiro hospital a ter uma máquina de ressonância magnética no Brasil, em 1986, e um robô cirúrgico, em 2008 —, o Hospital Israelita Albert Einstein tem hoje 458 colaboradores envolvidos diretamente com inovação. A corrida tecnológica extrapolou as fronteiras do hospital fundado no bairro do Morumbi, em São Paulo. No ano passado, foi inaugurado um novo centro de inovação em Goiânia, e no primeiro semestre de 2024, outro em Manaus.
No último ano, o Einstein investiu 240 milhões de reais (5% de sua receita) em inovações tecnológicas. A verba foi aplicada em startups, pesquisas clínicas, robótica, prontuário digital, transformação digital e em projetos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), aliança entre seis hospitais referência e o Ministério da Saúde.
“Pouca gente sabe que o Einstein cuida de mais gente no sistema público do que no sistema privado”, explica Rodrigo Demarch, diretor de inovação da instituição. Segundo o executivo, que também é médico geriatra, essa integração entre o sistema público e o privado tem um potencial de transformação gigante. “A construção de um sistema de saúde que seja, de fato, sustentável, que consiga entregar a maior qualidade possível de serviço para o maior número de pessoas só é possível com tecnologia”, diz.
Em julho, o time liderado por Demarch implementou, ainda em fase de testes, uma plataforma que usa IA e IA generativa à jornada clínica do paciente. Intitulada HStory, a ferramenta integra dados dos pacientes que estão espalhados por oito sistemas da instituição, como assistência hospitalar, diagnóstica, preventiva e ambulatorial. “Agora o médico pode entender exatamente o que já se passou com cada indivíduo. E ali já existem prompts predefinidos que permitem ao médico fazer determinadas perguntas relacionadas ao diagnóstico, ao possível prognóstico, às alternativas terapêuticas e diagnósticas. Funciona como um suporte à decisão clínica mesmo”, afirma Demarch.
Em 2017, o Einstein criou também uma incubadora de startups de saúde. Hoje, a Eretz.bio tornou-se um hub de inovação, fomentando o empreendedorismo do setor no Brasil. A iniciativa já avaliou mais de 2.500 empresas ao longo desses anos, das quais 140 foram aceleradas pela incubadora. Atualmente, 42 startups integram o ecossistema da Eretz.bio, divididas em saúde digital, dispositivos médicos, biotecnologia e edtech. Ao longo desses sete anos, o Einstein decidiu ser sócio de apenas 13 startups. A Anestech é uma delas.
Cockpit na sala cirúrgica
Desde menino o gaúcho Diógenes Silva foi um aficionado por tecnologia. Em 1982, aos 8 anos, começou a ler e programar. Quando fez 10, seu pai o apresentou um computador TK2000 — algo transformador em sua vida. Já na faculdade de medicina de Santa Maria (RS), Silva era um dos únicos alunos a levar consigo um computador e uma impressora matricial na mochila. Não era um laptop, mas um 286, desktop mesmo. “Lembro-me de quando fui à secretaria pedir para ter um e-mail da faculdade. Além de não conseguir, tive de escutar que um aluno de medicina jamais precisaria de um e-mail na vida”, diz Silva.
Já formado, o anestesista percebeu que os avanços tecnológicos das outras especialidades eram enormes, com exceção da sua. “Em 1894, o anestesista documentava a pressão, a frequência cardíaca e a temperatura do paciente. Tudo na mão, no pulso. Hoje o anestesista está na cabine de um Boeing, monitorizando a pressão do sangue venoso, sangue arterial, atividade cerebral. E tudo isso deve ser documentado de 5 em 5 minutos”, explica Silva.
Trocando em miúdos, o anestesista tem de ficar com uma caneta e um papel nas mãos para inserir os dados do paciente a cada 5 minutos. Como uma cópia fica com ele e a outra fica com o hospital, em muitos lugares ainda é usado o papel-carbono. Em uma cirurgia de 8 horas, são 96 anotações. “O pior de tudo é que não leva a análise alguma. Não melhora a economia do hospital nem a assistência ao paciente. Só dá retrabalho para o anestesista. Foi isso que a gente resolveu mudar”, diz.
Em 2012, a primeira versão da Anestech foi testada. Em 2015, Silva apresentou sua ideia ao Einstein, numa época em que o Eretz.bio nem havia começado. Com o apoio da incubadora do hospital, oito versões da ferramenta foram redesenhadas até que, em 2018, a novidade fosse lançada no mercado. “Em 12 anos de história, já conquistamos 121 clientes, 6.700 anestesiologistas usuários e 2,4 milhões de procedimentos registrados. Com a digitalização dos procedimentos, 17,2 toneladas de papel deixaram de ser consumidas”, celebra Silva. “Mas o melhor é saber que o médico anestesista foca seu tempo na coisa mais importante, que é o paciente”, conclui.
A solução integra prontuários eletrônicos de pacientes, monitores multiparâmetros e sistemas de gestão hospitalar, facilitando o acompanhamento do paciente desde a fase pré-anestésica até a recuperação. Com mais de 50 indicadores, permite a análise detalhada de procedimentos realizados, consumo de gases e fármacos, tempo de ocupação das salas cirúrgicas e destino dos pacientes pós-cirurgia, fornecendo insights valiosos para a gestão hospitalar.
Orquestra saudável
Na Prevent Senior, sistema de saúde verticalizado, a ideia é oferecer uma jornada completa para seus pacientes, desde o atendimento inicial até o acompanhamento pós-tratamento. Segundo Fabrício Próspero Machado, diretor de inovação e tecnologia da empresa, o objetivo da companhia é incorporar tecnologias que otimizem cada etapa do processo médico-paciente, equilibrando custos e qualidade.
Desde 2009, a Prevent Senior utiliza ferramentas de inteligência artificial para auxiliar nas tomadas de decisões. Esse sistema analisa exames de imagem, como radiografias e mamografias, indicando possíveis achados adicionais para médicos, especialmente em situações de pronto-socorro e junto com médicos não especialistas.
A equipe comandada por Machado, que é radiologista e pianista amador, lançou neste ano a Symfony — ferramenta que organiza e resume os prontuários médicos dos pacientes, desenvolvida internamente. Com isso, médicos conseguem visualizar de maneira simplificada o histórico completo do paciente antes da consulta. Isso permite que eles dediquem mais tempo às atividades que agregam maior valor ao paciente, como o diálogo e a compreensão das necessidades individuais. “Brincamos aqui que o médico faz a harmonia para o paciente fazer a melodia. É o que o Symfony propõe, orquestrar essa relação”, diz. Na esteira do que o Einstein já fez, o próximo passo é ter um sistema que separe os dados da história ambulatorial, hospitalar e diagnóstica de cada paciente.
Escala universal
Com 212.583.750 vidas em sua “carteira de clientes”, a totalidade dos habitantes do Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) é o maior sistema público de saúde do mundo. Pela Constituição, o SUS deve ser universal a todos os brasileiros, sem custo. Mais do que prover saúde universal, o desafio é também prover saúde digital.
Desde 2023, Ana Estela Haddad comanda a Secretaria de Informação e Saúde Digital (Seidigi), Secretaria do Ministério da Saúde que reuniu três departamentos que antes trabalhavam de forma separada: Departamento de Informação e Informática do SUS (Datasus), Departamento de Monitoramento, Avaliação e Disseminação de Informações Estratégicas em Saúde (Demas) e Departamento de Saúde Digital e Inovação (Desd). “O SUS faz cerca de 2,8 bilhões de atendimentos por ano. Esse é um exemplo da escala que temos por aqui”, afirma Haddad.
Para Ana Haddad, “escala” é a palavra-chave. Em março deste ano, ela lançou o programa SUS Digital, com foco na transformação digital do sistema, oferecendo ferramentas para os gestores e profissionais de saúde trabalharem. Somente neste ano, foram destinados 464 milhões de reais para sua implementação, dos quais 88% direcionados aos municípios de pequeno porte, com até 50.000 habitantes. É a primeira vez que o governo brasileiro tem um programa nacional com recursos para fomentar o ecossistema de saúde digital. “Tivemos a adesão de todos os 5.570 municípios brasileiros”, comemora.
Entre as principais metas do SUS Digital estão a ampliação do prontuário eletrônico, integração dos sistemas de informação, aumento do acesso do paciente a seus dados de saúde, extensão da telessaúde para populações indígenas e quilombolas, além do fortalecimento da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). “Tivemos um apagão de informações durante o último governo”, afirma a secretária, que também é professora titular do Departamento de Ortodontia da Universidade de São Paulo e criadora do pioneiro programa Telessaúde Brasil Redes, em 2006.
Na ponta dos usuários, a corrida digital também está aquecida. O novo app Meu SUS Digital já é o aplicativo de governo mais baixado do país. Com mais de 50 milhões de downloads e 4,5 milhões de usuários ativos, com ele é possível consultar o histórico clínico, acessar a carteira de vacinação digital, verificar resultados de exames laboratoriais, como os testes de covid-19, e até acompanhar a posição na fila do Sistema Nacional de Transplantes.
Ana Haddad vê a transformação digital não apenas como implementação de tecnologia, mas de ampliação de acesso. “Para combater os vazios assistenciais, levar saúde para quem precisa e ainda não tem, melhorar a qualidade do que a gente já oferece. Queremos prover um acompanhamento personalizado, principalmente aos pacientes crônicos, para que eles possam ter um telemonitoramento e ir à unidade somente quando realmente precisarem, levando maior conforto. Do ponto de vista da vigilância, poderemos ter cada vez mais predição e nos prepararmos para futuras emergências sanitárias”, finaliza.