Fábrica da Porsche em Leipzig: meio bilhão de euros investidos em carros híbridos | Krisztian Bocsi/Getty Images / (Krisztian Bocsi/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 30 de novembro de 2017 às 05h55.
Última atualização em 30 de novembro de 2017 às 05h55.
A primeira curva exige habilidade do motorista. Feita em uma subida, ela é similar à temida Saca-Rolha, do circuito americano de Laguna Seca. É preciso estar atento porque, poucos metros à frente, o motorista vai deparar com uma curva em formato de “S”, como a que desafiava os pilotos de Fórmula 1 no autódromo de Nürburgring, na Alemanha. A pista de testes da montadora Porsche, em Leipzig, é um templo para os fãs de carros. Com 11 seções do circuito retiradas de pistas famosas — incluindo a curva da vitória do finado autódromo de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro —, o lugar representa a essência da indústria automobilística dos últimos 100 anos: a primazia do motor de combustão interna, a alta velocidade e a necessidade de um piloto com as mãos constantemente ao volante. Esses três elementos, intimamente presentes na vida moderna e nos projetos das cidades e das estradas, passam agora por uma revisão completa. Em nome da sustentabilidade, governos incentivam o desenvolvimento e a adoção de carros elétricos. Para cada vez mais consumidores, a mobilidade é um valor maior do que a velocidade. E, se tudo sair como planejam grandes empresas de tecnologia, startups e montadoras, os motoristas serão dispensados antes de 2030.
Até mesmo a Porsche, marca famosa pelos carros de corrida, começa a vislumbrar esse futuro. É da linha de montagem em Leipzig, eleita a melhor na Europa no segmento de carros de luxo pela consultoria J.D. Power, que saem as versões híbridas do modelo Panamera. A empresa investiu 500 milhões de euros nos últimos dois anos para expandir a fábrica e garantir que toda a montagem do modelo seja feita no local. Ao combinar um motor elétrico com um de combustão, o híbrido da Porsche emite 71% menos C02 do que o modelo comum — e, mesmo assim, atinge 275 quilômetros por hora. A empresa também investe no desenvolvimento de um carro 100% elétrico na fábrica em -Stuttgart. O projeto Mission E, como é conhecido, receberá um investimento total de 1 bilhão de euros e o veículo deverá chegar ao mercado nos próximos dez anos. Uma mudança importante para a marca, pois vale lembrar que carros elétricos são silenciosos — portanto, o tradicional ronco do motor ficará para trás.
“Nós não estamos vendendo barulho. Estamos vendendo emoções”, afirma Joachim Lamla, diretor financeiro da Porsche em Leipzig. A empresa também tem uma abordagem similar quando se trata do carro autônomo. Para a Porsche, o motorista continuará ao volante em determinadas situações, mas poderá optar pelo piloto automático em momentos mais chatos da vida cotidiana. “Temos um carro que as pessoas querem experimentar e dirigir. Mas, por outro lado, há momentos em que a assistência é bem-vinda, como estacionar em locais estreitos ou enfrentar o congestionamento no caminho até o trabalho”, diz Lamla. A Porsche, inclusive, testa carros autônomos dentro de sua área de produção, como EXAME conferiu em Leipzig no mês de outubro. Nas cores amarelo e preto, o robozinho circulava pela fábrica no projeto piloto para aumentar a eficiência de suprimentos. A ideia é que o veículo leve as peças necessárias para a produção de cada carro do estoque até a linha de montagem.
Menos carros, mais mobilidade
Cerca de 430 quilômetros ao sul, a montadora BMW celebrou em outubro os 15 anos da inauguração de seu icônico centro de visitantes — o lugar também funciona como um misto de espaço de exposições e concessionária. Bem ao lado do Parque Olímpico de Munique e distante 50 metros da sede da empresa, o BMW Welt fervilhava com famílias que, entre um e outro –Weisswurst, a tradicional salsicha branca local, verificavam as últimas novidades da marca. Shows de música, autoramas e test-drives gratuitos também faziam parte da festa. A alta concentração de jovens na faixa dos 20 anos de idade surpreendia, sobretudo pelo fato de o número de jovens entre 18 e 24 anos com carteira de motorista ter caído na Alemanha. Hoje, 187 000 têm licença para dirigir, ante 354 000 em 2011.
A venda de veículos continuará sendo importante para as montadoras, mas os serviços de mobilidade representarão uma fatia maior do faturamento das empresas até 2030. Segundo a consultoria McKinsey, o faturamento desse segmento será multiplicado por 50 nos próximos 13 anos. É por isso que a BMW desenhou sua atuação futura em quatro pilares: carro autônomo, conectividade, eletrificação e serviços. Internamente, a estratégia é conhecida pela sigla Aces. O projeto que representa melhor esses quatro fundamentos é o DriveNow, um sistema de compartilhamento de carros presente em 13 cidades da Europa e com mais de 1 milhão de clientes. O modelo elétrico i3 corresponde a um quinto da frota de 6 000 veículos. Todo o processo de localizar o veículo e alugá-lo é realizado por meio de um app. É necessário apenas validar a carteira de motorista em algum posto de atendimento da BMW. A cobrança é feita por minutos de uso e, para encerrar a viagem, basta estacionar num local permitido da cidade. “A prioridade número 1 é a eletrificação. Em seguida, está a conectividade e a condução autônoma”, disse Harald Krüger, presidente do conselho de administração da BMW, em março deste ano.
“A geração mais nova está mais atenta a serviços flexíveis que são pagos por tempo de uso e também não está disposta a gastar boa parte de seus rendimentos em um carro próprio”, afirma Wolfgang Aichinger, especialista em mobilidade da Agora Verkehrswende, entidade alemã ligada à Fundação Europeia do Clima. Para ele, estamos no início do processo de transformação não apenas da indústria de automóveis mas também da sociedade como um todo. “É um movimento que vem com muitos benefícios, especialmente para as cidades, como ar mais limpo, menos congestionamento e espaço público mais atraente”, diz Aichinger.
Usar veículos elétricos dentro de frotas compartilhadas reduz a emissão de gases de efeito estufa e, ao mesmo tempo, aumenta a mobilidade urbana. É por isso que governos estão promovendo incentivos para carros elétricos — a Alemanha, por exemplo, dá um subsídio de até 4 000 euros ao comprador — e, ao mesmo tempo, anunciam que a produção de carros com motor a combustão interna tem data para acabar. A França e o Reino Unido estipularam como limite o ano de 2040. Na Alemanha, a data para isso é 2030.
O assunto ganhou força depois de a Volkswagen ter sido pega nos Estados Unidos e na Europa fraudando os testes de emissão de poluentes, num escândalo que ficou conhecido como Dieselgate em 2015. O caso prejudicou a imagem da montadora e provocou a saída de seu então presidente executivo, Martin Winterkorn. O preço da ação da empresa teve a maior queda em cinco anos, chegando a valer cerca de 92 euros, ante 253 euros registrados antes do escândalo. Por outro lado, a descoberta da fraude acabou acelerando mudanças internas. Em 17 de novembro, a montadora anunciou um plano de investimento de 40 bilhões de dólares em carros elétricos, carros autônomos e serviços de mobilidade até 2022. Matthias Müller, o novo presidente da Volkswagen, disse que a meta é ter pelo menos uma versão elétrica de todos os modelos do grupo até 2030.
A maior aposta da Volkswagen no mercado de mobilidade elétrica é a linha I.D., com início de venda previsto para 2020 na Alemanha. Em princípio, serão três versões: a compacta, uma similar à antiga Kombi e um SUV. Os modelos serão produzidos numa plataforma com baterias de alto rendimento dispostas ao longo do assoalho, liberando espaço dentro do veículo. “A próxima geração de carros elétricos terá preços tão atraentes quanto os carros a diesel”, afirma Tim Fronzek, responsável pela mobilidade elétrica na Volkswagen. “Os custos de manutenção ao longo do ciclo de vida dos carros elétricos são uma vantagem em comparação com os de carros convencionais.”
Autônomo daTesla: por ora, o motorista precisa estar atento a falhas | Andreas Arnold/Getty Images
Chegada de concorrentes
Assim como acontece com outros setores da economia, a indústria automotiva sofre um ataque de novos concorrentes de base tecnológica. O maior exemplo aqui é a Tesla, fundada nos Estados Unidos pelo sul-africano Elon Musk em 2003. Seu Model S foi o carro elétrico mais vendido do mundo em 2016, com 50 931 unidades entregues. O i3, da BMW, vendeu apenas metade disso. “Sem a Tesla, a adoção do carro elétrico não seria tão rápida”, afirma Ferdinand Dudenhöffer, professor na Universidade de Duisburg-Essen e consultor da indústria automotiva alemã há mais de 30 anos. “As grandes empresas começaram a voltar à briga.” A situação das montadoras tradicionais ficou mais equilibrada porque a Tesla enfrenta problemas para entregar o Model 3, encomendado por 500 000 pessoas. A empresa vem queimando caixa num ritmo alucinante. Nos últimos 12 meses foram gastos 8 000 dólares por minuto na tentativa de acelerar a produção. A meta é montar 5 000 veículos por semana até março de 2018 — até agora, apenas 260 carros foram finalizados.
“O que define uma montadora não é a capacidade de fazer um motor a combustão ou um chassi, e sim a habilidade de lidar com a complexidade de integrar diferentes parceiros para construir um veículo seguro”, afirma Frank Diermeyer, professor e líder de projetos de carros autônomos e elétricos na Universidade Técnica de Munique. “Claro, novas companhias vão surgir, mas não será a Apple nem o Google.” Uma dessas possíveis empresas é a Sono Motors, uma startup alemã que pretende colocar no mercado um carro movido a energia solar até 2019 (veja entrevista na pág. 50). Dois protótipos já foram feitos, mas, para poder fabricar os veículos em larga escala, a Sono fechou um acordo com uma fábrica terceirizada. A experiência sobre processos fabris e regulação conta a favor, pois o consumidor precisa de um produto físico, e não apenas de um software.
São as parcerias entre empresas antigas e novas que estão acelerando o desenvolvimento do carro autônomo. A BMW montou uma aliança global para o desenvolvimento de carros que possam andar sozinhos. A empresa de tecnologia Intel está no projeto, assim como sua subsidiária Mobileye, empresa israelense de inteligência artificial adquirida por 15,3 bilhões de dólares em março deste ano. Um serviço de carro autônomo é esperado como o próximo passo do DriveNow. De olho nesse mercado, que manterá a produção em alta nos próximos anos, a Fiat Chrysler se juntou à aliança em agosto. Paralelamente, a Fiat Chrysler e a Mobileye trabalham com a Waymo, subsidiária da Alphabet, no desenvolvimento de carros autônomos. Atualmente, 600 minivans híbridas da Chrysler são testadas em Phoenix, no Arizona, no nível mais alto da robotização dos carros (veja quadro ao lado).
Testes desse tipo mostram a velocidade com que a indústria está avançando. A BMW e a Tesla já vendem veículos semiautônomos, que assumem o controle em determinadas situações, mas exigem uma pessoa atenta capaz de assumir a direção caso o sistema venha a falhar — os testes feitos pela empresa de transporte Uber são da mesma categoria. Os especialistas consultados por EXAME são unânimes em dizer que carros desse tipo serão superados rapidamente por uma questão de segurança. Seres humanos, dizem, são uma péssima forma de salvaguarda: eles ficam cansados, com sono e se distraem. O melhor, e mais seguro, seria pular diretamente para os carros-robô, cuja produção em larga escala deverá ocorrer antes de 2025 — a meta da Fiat Chrysler, por exemplo, é 2021. Essa será uma revolução como poucas desde que Karl Benz saiu de casa com o primeiro carro movido a gasolina na noite de ano novo de 1878, na cidade de Mannheim. Até que o futuro não chegue, no entanto, ainda haverá espaço para quem adora dirigir. Dar uma volta pela pista da Porsche só será possível depois de março de 2018 — antes disso, todos os horários já estão reservados.