A viagem de Maria dos Anjos: Para fugir do congestionamento e chegar ao trabalho às 7 horas da manhã, a doméstica, que mora na zona sul e trabalha na zona leste de São Paulo, acorda às 4 horas e toma três ônibus (Manoel Marques/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h38.
Maria dos Anjos Pires da Silva abriu o portão de casa, no Jardim Vera Cruz, bairro pobre da zona sul de São Paulo, pontualmente às 4 horas e 20 minutos da sexta-feira 6 de agosto. Tinha o cabelo escovado, sem um fio fora do lugar, cachecol arrumado com cuidado ao pescoço e sapatilhas para caminhar. Além da bolsa, trazia pendurada ao pulso uma sacola de papel com alguns pertences. A partir de então, andou a passos ligeiros pela rua deserta e escura, não porque estivesse com medo, mas porque contava os minutos para não se atrasar. Aos 58 anos de idade, casada, com dois filhos, a mineira Maria dos Anjos se diz satisfeita com o que conseguiu na vida. A renda familiar de 1 500 reais faz dela uma representante da nova classe C, a locomotiva do consumo no país. Tem casa própria, equipada com todos os eletrodomésticos considerados básicos, incluindo uma máquina de lavar roupa.
Sua qualidade de vida, porém, melhoraria muito se Maria dos Anjos conseguisse chegar a seu local de trabalho e voltar para casa em condições minimamente civilizadas. Para boa parte dessa nova classe média brasileira, o ato de ir e vir nas grandes metrópoles é cada vez mais típico do Terceiro Mundo. Maria dos Anjos precisa de três ônibus para ir ao trabalho e de outros três para voltar. Pega o primeiro por volta das 4 e meia da manhã, num ponto de ônibus já lotado. Entre o espreme-empurra nos ônibus e os trajetos a pé, demora mais de 2 horas para cruzar 32 quilômetros e chegar antes das 7 horas na casa de família em que trabalha até as 13 horas, no Jardim Paulista, bairro nobre da cidade. À tarde encara mais 4 horas de filas, conduções lotadas e congestionamentos na volta. Ao todo perde diariamente quase 7 horas no trânsito para trabalhar 6. Sete horas sem ganhar ou produzir absolutamente nada. Segundo o Google Maps, o trajeto entre a casa de Maria dos Anjos e a de seus patrões deveria ser feito em 47 minutos. “Quando comecei a trabalhar lá, há 20 anos, demorava pouco mais de 1 hora para chegar”, diz ela. “Hoje, se eu não sair de madrugada, perco a hora.”
O problema no caminho de Maria dos Anjos e de 75 milhões de brasileiros que vivem nas maiores cidades do país é a falta de planejamento urbano. Anos de políticas públicas ineficientes sucatearam o transporte público e incentivaram o uso do carro particular. Quase 50 milhões de pessoas ainda andam de ônibus, mas, à medida que a renda de um passageiro sobe, ele troca o coletivo por um automóvel, na esperança de escapar do inferno da condução. O número de passageiros caiu 37% nos últimos 15 anos. Só no ano passado, 3 milhões de automóveis novos ganharam as ruas. A solução individual agravou o problema coletivo. Em todas as regiões metropolitanas, a mobilidade se transformou em imobilidade. A situação é evidente quando se analisa o tempo que seus habitantes, como Maria dos Anjos, levam para ir de casa ao trabalho e vice-versa. Em São Paulo, a média de tempo gasto no trânsito é de 2 horas e 43 minutos por dia. No Rio, quase 1 hora e meia. Em Salvador, dependendo do local, fica-se em pé na calçada por até 1 hora à espera de um ônibus. Segundo Maurício Pereira, do Movimento Nossa São Paulo, ONG que defende o resgate da qualidade de vida na capital paulista, projetos para modernizar o transporte público são raros e oscilam ao sabor da política. “O transporte público hoje é uma nau sem rumo”, diz ele.
Como se não bastasse todo o atraso acumulado, quem fica enroscado no trânsito assiste a mais um anúncio de que o seu problema não é visto como prioridade por quem manda no país. Nos últimos meses, o governo elegeu um trem de alta velocidade ligando São Paulo ao Rio de Janeiro como uma de suas grandes bandeiras eleitorais. O trembala — que até agora não passa de uma ideia — seria capaz de trafegar a até 300 quilômetros por hora, numa extensão de 511 quilômetros, e transportar 35 milhões de passageiros por ano. A previsão é que a viagem dure 1 hora e 30 minutos e concorra com a ponte aérea. A obra está avaliada em 34 bilhões de reais (cerca de 20 bilhões de dólares). Tudo, claro, pode mudar quando — e se — o projeto de engenharia existir. O impacto ambiental é desconhecido. Todo o estardalhaço em torno do trem, visto como símbolo máximo do desenvolvimento do Brasil, é feito sem que se tenha sequer conseguido fixar gastos com desapropriações e construção de túneis e viadutos. Os 34 bilhões de reais podem virar 50 bilhões, já que o orçamento é uma peça de ficção. De todo modo, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) já garantiu aos eventuais construtores um empréstimo de 19 bilhões de reais a um juro real camarada: 3% ao ano. Para estimular os investidores, o governo entra no projeto com mais 2 bilhões de reais, coloca outro bilhão na criação da companhia que vai gerenciar o trem e oferece cerca de 6 bilhões de reais em isenção de impostos. Ou seja, a maior parte dos investimentos e do custeio será arcada pelos cofres públicos.
Segundo Bernardo Figueiredo, diretor-geral da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o projeto tem muitas vantagens. “Primeiro, há o fato de o trem incentivar a desconcentração urbana”, diz ele. “As pessoas poderão morar no interior e trabalhar no Rio ou em São Paulo.” A proposta também é aliviar a malha aérea, transferindo para Viracopos, em Campinas, parte dos passageiros dos aeroportos das capitais. Haveria ainda o benefício ambiental: “O trem de alta velocidade, por ser elétrico, é a melhor opção no momento em que o mundo pede a redução de emissões de gases de efeito estufa e tende a restringir o uso do carro e do avião”.
Ninguém se opõe à modernização da infraestrutura e à adoção de novas tecnologias. Mas, num país como o Brasil, on de os recursos são escassos, é preciso avaliar as prioridades. “Precisamos entender qual é o objetivo estratégico de li gar centros urbanos bem atendidos por aviões, mas cujas ruas estão à beira da paralisia”, diz Marcos Bicalho, superintendente da Associação Nacional de Trans portes Públicos. Os estudiosos da área garantem que as prioridades são outras. “Quem pegar esse trem-bala apenas vai chegar mais rápido ao caos que tomou conta das ruas de São Paulo e do Rio”, diz Paulo Resende, professor da Fundação Dom Cabral e especialista em transportes. “Precisamos urgentemente investir em transporte público eficiente nas regiões metropolitanas.” Figueiredo, da ANTT, concorda que há urgência em de sa fogar as cidades, mas diz que a paralisia urbana não é responsabilidade da União. “Cabe às prefeituras cuidar do transporte nos municípios, e aos governos do estado, nas regiões metropolitanas”, diz. “O governo federal está fazendo sua parte para modernizar o transporte.”
No mundo inteiro, o trem-bala é alvo de controvérsia. Uma análise a respeito se encontra no artigo “Trens de alta velocidade: experiência internacional”, publicado em junho de 2008 na revista do próprio BNDES. O texto é assinado pelo economista Sander Lacerda, que na época trabalhava na área de investimentos em transporte e hoje é assessor da diretoria. Lacerda mostrou que os projetos de trem-bala se concentram em países desenvolvidos, com renda elevada, que já investiram em boas rodovias, aeroportos e transporte urbano, como metrô — o que não é o caso do Brasil. Isso ocorre porque essa alternativa tem altos custos de implantação e riscos financeiros. Mesmo atendendo grande número de passageiros, o trem-bala não é capaz de recuperar os custos de construção e, na maioria dos projetos em outros países, precisou de investimento público a fundo perdido. Nos Estados Unidos, a maior economia do mundo, as linhas existentes são curtas e quase experimentais. O único país de baixa renda per capita que optou pelo trem-bala foi a China. Mas a China é uma máquina de obras, porque dispõe das maiores reservas do mundo: 2,5 trilhões de dólares. Constrói de tudo ao mesmo tempo. Novamente, esse não é o caso do Brasil.
Para ilustrar os riscos do trem-bala, o trabalho de Lacerda cita deslizes de nações reconhecidas por sua eficiência. O ja ponês Shinkansen, precursor dessa tecnologia, sempre foi um sucesso de público. Mas, para colocá-lo em operação, a Rede Ferroviária Japonesa, responsável pela obra, assumiu uma dívida estimada em 200 bilhões de dólares e teve de ser reestruturada para não falir. Os mecanismos financeiros evoluíram, mas não reduziram os riscos. O expresso sob o Canal da Mancha, entre França e Inglaterra, construído com recursos privados na década de 90, durante anos não gerou receita nem sequer para o pagamento dos juros dos financiamentos. Por que no Brasil a história seria diferente? “Existe muita incerteza em relação a esse tipo de transporte”, diz Richard Dubois, consultor de infraestrutura da PricewaterhouseCoopers. “É por isso que se veem os fabricantes de equipamentos brigando para entrar no projeto e nenhuma animaçãoentre os investidores.” Figueiredo, da ANTT, diz que falta aos críticos ler o projeto. “A modelagem financeira é inovadora e vai servir de parâmetro”, diz. “Os juros baixos do BNDES mais os subsídios e as vendas de passagem vão, sim, garantir retorno aos investidores.” Existe até um valor fixado: 9% ao ano.
A pergunta que fica é se vale a pena investir tanta energia e capital num projeto com benefícios incertos, quando há centenas de obras, com resultados bem mais previsíveis, à espera de dinheiro. Todos os especialistas ouvidos por EXAME concordam que os recursos seriam mais úteis em outras áreas. Com uma fração desse dinheiro, Maria dos Anjos não precisaria passar um terço de seu dia nos ônibus. Seu maior problema é percorrer a Estrada do M’Boi Mirim, avenida estreita da zona sul paulistana. O trecho mais movimentado, com 10 quilômetros, atende uma população de 600 000 habitantes. O trânsito tornou-se caótico a ponto de paralisar a rotina da região e incitar protestos de moradores indignados com engarrafamentos que duram o dia todo. Em M’Boi Mirim não existe hora do rush. Do estado, os moradores reivindicam o metrô, mas o plano de expansão não contemplou a área. Da prefeitura, esperam a duplicação da estrada. Mas, segundo a própria administração municipal, a duplicação (hoje paralisada) restringe-se a uma pequena faixa na frente do hospital local. Na tentativa de aplacar os protestos, técnicos do município e do estado apresentaram o projeto de um monotrilho (espécie de minimetrô que corre sobre um minhocão). Consultores independentes consideram o monotrilho insuficiente para atender a região, e os moradores ainda protestam. “Precisamos de mais ônibus, mais metrô”, disse Maria dos Anjos na manhã em que a reportagem de EXAME a acompanhou pelas ruas de São Paulo. “Eu até sinto orgulho de saber que o Brasil pode ter novas tecnologias, como o trem-bala, mas quem decide para onde vai o dinheiro precisa lembrar que nós existimos. Por que eu tenho de andar nisso aqui?”