Revista Exame

Queda da bolsa pôs em xeque a política econômica chinesa

A queda brusca da bolsa chinesa mostra como será difícil mudar o modelo econômico do país, como pretende o governo


	Investidor chinês: a bolsa de Xangai caiu 32% em 17 dias
 (Reuters/Aly Song)

Investidor chinês: a bolsa de Xangai caiu 32% em 17 dias (Reuters/Aly Song)

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Da Redação

Publicado em 23 de julho de 2015 às 05h56.

São Paulo - "Quando eu era pequeno, meus pais costumavam dizer: ‘Ter­mine seu jantar. Os chineses estão passando fome’. Gostaria de dizer às minhas filhas: ‘Termine sua lição de casa. Os chineses estão atrás de seu emprego’.” A frase foi escrita pelo Prêmio Nobel de Economia Milton Friedman em 2004, quando a China já crescia no ritmo que a transformaria na segunda maior economia do mundo.

Nas últimas duas décadas, o país colocou em prática um modelo próprio de capitalismo — em que o Estado decide quanto, como e onde investir — que produziu resultados invejáveis. Cidades inteiras foram construídas do zero e algumas das maiores obras de infraestrutura do mundo foram erguidas ali. O crescimento médio do PIB foi de 10% ao ano, e a participação da China na economia global triplicou.

Aos poucos, mesmo os céticos passaram a dar algum crédito ao capitalismo chinês. Até que o governo decidiu replicar o modelo no mercado de capitais, incentivando tanto o lançamento de ações de empresas chinesas quanto a compra de papéis por parte do cidadão comum — e, dessa vez, o resultado é uma confusão dos diabos. 

A bolsa chinesa oscilou mais do que qualquer outro mercado de ações relevante no último ano. Depois de subir 150% em 12 meses até o começo de junho deste ano, o principal índice da bolsa de Xangai caiu 32% em apenas 17 dias. Com isso, as empresas abertas chegaram a perder 3,5 trilhões de dólares em valor de mercado — o equivalente à soma do valor de mercado de todas as companhias listadas nas bolsas de Brasil, México, Índia e Rússia.

No meio da baixa, pelo menos 1 300 empresas, que representam 72% do mercado, simplesmente suspenderam a negociação de suas ações (cerca de 350 delas voltaram aos pregões dias mais tarde, mas a maioria continua fora do mercado, e não há prazo para a situação se normalizar, o que significa que os acionistas não podem mexer no dinheiro investido nesses papéis).

“Uma alta tão expressiva da bolsa não condizia com a situação atual da economia, que está em desaceleração. A queda era esperada. Só que o governo incentivou demais a compra de ações, inclusive via campanhas, e agora precisa se explicar”, diz Gabriela Santos, estrategista global do banco JP Morgan.

O governo chinês, bem a seu estilo, fez de tudo para controlar o preço das ações — claro, para que o preço subisse. O grande combustível para a valorização da bolsa foram os estímulos dados pelo Estado, que, em 2014, permitiu o aumento da participação de investidores estrangeiros no mercado e a tomada de empréstimos bancários para a compra de ações.

O resultado imediato foi uma euforia sem precedentes. Apenas no primeiro semestre deste ano, 192 empresas abriram o capital, um recorde para o país. Num único mês, em maio, 15 milhões de chineses chegaram a abrir contas para comprar e vender ações. Quando as cotações começaram a cair, a reação de Pequim foi anunciar um pacote bizarro de medidas emergenciais.

Proibiu novos lançamentos de ações e arrancou um acordo com 21 corretoras, que concordaram em criar um fundo de 19 bilhões de dólares para investir na bolsa. Essas corretoras também se comprometeram a não vender papéis até o principal índice da bolsa de Xangai voltar ao patamar de 4 500 pontos (hoje, está em cerca de 3 900 pontos, mas chegou a 5 166 em 12 de junho, o maior nível histórico).

Entre o anúncio das medidas, no começo de julho, e o fechamento desta edição, a bolsa voltou a subir, mas a maioria dos analistas continuava em dúvida sobre o potencial do mercado. “Uma bolha se formou com a conivência do governo e dos reguladores chineses. Ela está estourando e ainda é cedo para dizer se o pior já passou”, afirma Stephen Roach, professor na escola de administração da Universidade Yale, especialista em Ásia.

Mercado restrito

Ainda que os números impressionem, o impacto da derrocada das ações na economia chinesa — e mesmo no mercado mundial — foi reduzido. Como a participação de estrangeiros na bolsa de Xangai é pequena, boa parte das perdas dos grandes fundos globais com a desvalorização recente ficou restrita às empresas que também são listadas nos mercados de Nova York e Hong Kong.

Além disso, o tamanho da bolsa em relação à economia da China é pequeno: o valor de mercado das companhias abertas responde por pouco mais de um terço do PIB. Por último, embora tenham poucas alternativas de investimento à mão, os chineses aplicam pouco em ações. Menos de 10% da população tem ações — e, de acordo com um relatório do banco Credit Suisse, na média eles só deixam 9,4% do patrimônio na bolsa.

Apesar de ainda pequena, não é à toa que o governo chinês se preocupou tanto com a ziquizira na bolsa. Tornar o mercado de ações mais robusto é parte do plano de transformar a economia chinesa, hoje executado pelo presidente Xi Jinping. Depois de duas décadas de crescimento baseado em pesados investimentos e exportações, a China formou uma pequena coleção de obras inúteis, como cidades sem moradores e trens de altíssima velocidade sem passageiros, e convive com poluição alta e uma enorme desigualdade de renda.

O objetivo central do novo plano é aumentar o consumo das famílias e fazer com que ele responda por uma parcela maior do PIB, para tornar a economia chinesa mais equilibrada e, portanto, menos suscetível a um tombo. Faz parte desse esforço a adoção de políticas de aumento salarial e a criação de uma rede mínima de seguridade social, com a concessão de aposentadorias para trabalhadores rurais, por exemplo.

A estratégia trouxe alguns resultados. Em 2011, os segmentos de comércio e serviços ultrapassaram os investimentos em infraestrutura como os maiores responsáveis pelo crescimento chinês. Mas a fatia do consumo das famílias no PIB não aumentou como o esperado — em alguns setores, os gastos chegaram a diminuir.

Uma pesquisa da agência de notícias Xinhua, controlada pelo governo, mostrou que as despesas da população com itens supérfluos, como joias, estão em baixa neste ano. Além disso, em junho, a venda de carros caiu 3%, e o desempenho no acumulado de 2015 é o pior em seis anos. A consultoria suíça Pictet, especializada em mercados asiáticos, revisou para baixo a expectativa de crescimento do consumo chinês neste ano — de 11% para algo em torno de 8%.

Para a maioria dos especialistas, as dificuldades eram esperadas, porque é mais difícil mudar hábitos de consumo do que mobilizar recursos para fazer grandes investimentos em infraestrutura. Os chineses, tradicionalmente, investem muito e gastam pouco — em média, a taxa de poupança doméstica está em 50% do PIB.

Ainda que o governo tenha começado a criar uma rede de proteção social para convencer a população a consumir mais, não existem serviços básicos, como um sistema de saúde que atenda a maior parte da população, e benefícios como seguro-desemprego. A queda das ações só piorou esse cenário.

“O governo esperava que o mercado de capitais fosse uma alternativa rentável de investimento que contribuísse para aumentar a renda da população, mas o efeito positivo durou pouco”, diz o economista Adam Slater, da consultoria britânica Oxford Economics. Para a Oxford, é possível traçar um paralelo entre a situação da China hoje e a do Japão na década de 90.

A meta do governo japonês também era aumentar a participação do consumo na economia, na época bastante dependente das exportações. Deu incentivos ao mercado de capitais, mas a consequência foi a formação de uma bolha acionária que, quando estourou, reduziu o poder de compra e, principalmente, a confiança da população por décadas. (A diferença é que, no Japão, os investimentos em bolsa respondiam por uma parcela maior do PIB e da poupança das famílias.)

“No caso da China, ainda é cedo para saber se o que o governo está fazendo é realmente suficiente para aumentar o consumo no ritmo esperado”, diz Slater.

O consenso entre os especialistas é que a taxa de expansão do PIB chinês continuará diminuindo. A previsão do Fundo Monetário Internacional é que a média fique em torno de 6% até 2020, mas há economistas que esperam um percentual inferior a 5% — e isso deve acontecer mesmo que a mudança de modelo idea­lizada pelo governo dê certo, porque uma economia baseada em consumo cresce menos do que uma impulsionada por gigantescos investimentos em infraestrutura.

Impactos para o Brasil

Para os demais países, o desafio é tentar se antecipar às mudanças para vender mais — ou vender produtos diferentes — para a China. O Banco Mundial prevê que a participação do país nas importações globais de produtos agrícolas, como grãos e carnes, aumentará de forma expressiva, de 14% para 41%, até 2030.

É um cenário que beneficia o Brasil, que está entre os maiores exportadores de soja para a China e pode aumentar os embarques de carnes. “Mas só conseguiremos vender produtos de maior valor agregado se nossa produção ficar mais eficiente, o que parece pouco provável no curto prazo”, diz Marcos Troyjo, diretor do BRICLab, um centro de estudos sobre mercados emergentes da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos.

Apesar de os chineses estarem ganhando mais, o custo de um trabalhador na China ainda é 70% menor do que o custo aqui. “Também não avançamos em acordos internacionais, que tornariam o Brasil mais competitivo”, diz Troyjo. A expectativa dos analistas é que os maiores beneficiados pela mudança do modelo chinês sejam os países ricos.

De acordo com o Banco Mundial, as exportações de serviços dos Estados Unidos e do Japão para a China devem crescer a uma taxa de 10% ao ano até 2030. A evolução do mercado de capitais pode acelerar essas mudanças — ou levantar mais dúvidas sobre o futuro da economia chinesa.

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