Revista Exame

Concessão de trens e metrô avança e já atinge maioria das linhas do Brasil

País precisa de 285 bilhões de reais em investimentos para ampliar malha urbana, e parcerias privadas ajudam a levantar recursos

Linha 6-Laranja, em São Paulo: obras foram retomadas anos depois de o consórcio vencedor desistir do projeto (Germano Lüders/Exame)

Linha 6-Laranja, em São Paulo: obras foram retomadas anos depois de o consórcio vencedor desistir do projeto (Germano Lüders/Exame)

Publicado em 23 de maio de 2024 às 06h00.

Não importa a cor do trem, e sim que ele venha na hora, pensa qualquer passageiro que espere por um trem ou metrô. E as cores das composições vêm mudando cada vez mais. Na última década, avançou o número de concessões de transporte no país, com mais empresas privadas assumindo os serviços — e geralmente repintando os trens. A concessão da Linha 7-Rubi de São Paulo, em processo de assinatura de contrato, é um marco dessa transição: com ela, pela primeira vez, o Brasil terá mais trilhos de linhas de transporte público sob concessão (596 quilômetros) do que em controle estatal (513 quilômetros), mostra levantamento feito pela EXAME.

Uma das principais razões para essa mudança é a melhora nos contratos, o que aumentou o apetite das empresas privadas para investir, enquanto ampliou-se a falta de recursos para novos projetos do lado do Estado, por motivos como a crise econômica da década passada e as novas regras de controle fiscal. Uma linha de metrô custa alguns bilhões de reais e leva anos para ficar pronta. Cada carro de um trem de passageiros, por exemplo, não sai por menos de 1,5 milhão de dólares. No Brasil, seriam necessários 285 bilhões de reais em investimentos nas 15 principais regiões metropolitanas do país em projetos de transportes sobre trilhos, aponta um estudo da Tendências Consultoria feito com exclusividade para a EXAME.

Hoje, todos os projetos de concessão — considerando os em operação, licitação e estudo — somam investimentos previstos de 170,9 bilhões de reais para os próximos anos. Os projetos, porém, se concentram apenas em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Bahia e no Distrito Federal. Sem dinheiro, o país fica para trás até mesmo na comparação com a América Latina. A Cidade do México, por exemplo, tem 225 quilômetros de linhas de metrô, enquanto São Paulo, o maior metrô brasileiro, tem 104 quilômetros. Ambos começaram a ser construídos na mesma época, no fim dos anos 1960. “Atravessamos crises orçamentárias há décadas. Temos redes planejadas em várias cidades, mas não conseguimos executar porque não há recurso”, avalia Marcos Quintella, diretor da FGV Transportes.

Paulo Rodrigues, passageiro em São Paulo: chuva gera temor de falha nos trens (Germano Lüders/Exame)

O modelo de concessões deu a partida nos anos 1990, mas foi lento, como se tivesse de esperar a movimentação do trem à frente. Na onda de privatizações realizada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o governo federal repassou o controle de parte das linhas de trem de subúrbio para os estados. O Rio de Janeiro optou por privatizar os sistemas de trens de superfície e do metrô, em 1997 e 1998. Na época, São Paulo preferiu fortalecer a estatal Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), que assumiu os ramais federais. A primeira linha operada sob concessão no estado foi aberta somente em 2010, a 4-Amarela, do metrô, operada pela ViaQuatro, do grupo CCR. O ramal chamou a atenção por ser a primeira no país com trens que operam sem condutor, e também a primeira parceria público-privada (PPP) do Brasil, modelo em que o governo concede a operação e divide os investimentos a serem feitos. O governo ficou responsável por fazer as obras civis, e a ViaQuatro, em trazer sistemas e trens. O contrato da Linha 4 prevê 2 bilhões de dólares em investimentos privados ao longo de 30 anos, sendo que 500 milhões foram gastos na compra dos trens.

Nos anos seguintes, o modelo avançou para as Linhas 5-Lilás do metrô, concedida em 2018, e 8-Diamante e 9-Esmeralda da CPTM, repassadas ao controle privado em 2021. As três são operadas por subsidiárias da CCR. Em 2020, o governo federal incluiu as linhas da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) no programa de desestatização. Com isso, em 2022, o metrô de Belo Horizonte foi concedido para o grupo Comporte. No ano seguinte, em 2023, Tarcísio de Freitas assumiu o governo de São Paulo e prometeu conceder todas as linhas de trem e metrô ainda sob controle estatal. Seu plano é que a venda de linhas já prontas ajude a pagar pela construção de novos ramais. Assim, a concessão da Linha 7-Rubi integra um pacote que inclui um novo trem intercidades, para conectar São Paulo a Campinas.

Estação da Luz, em São Paulo: governo quer conceder todas as linhas da CPTM (NurPhoto/Getty Images)

Uma importante vantagem financeira é que as empresas privadas conseguem baixar o custo de operação ao adotarem uma série de medidas, como fazer compras de forma mais abrangente, sem depender de licitações, e pagar salários menores, mais alinhados ao mercado, do que os que recebem servidores públicos com anos de carreira e benefícios previstos em lei. De acordo com o governo paulista, o custo por passageiro, pago pelo Estado, na Linha 4-Amarela, sob concessão, gira em torno de 2 reais, enquanto nas linhas 1, 2 e 3, administradas pelo Metrô, chega a 3,20 reais. É esperado que a Linha 7-Rubi tenha uma redução de custo por passageiro de até 20%.

O governo paulista também vem mudando a forma como remunera as empresas. No contrato da Linha 7-rubi, o pagamento da tarifa técnica — valor que regula o subsídio do estado para as empresas — será por disponibilidade de trens, e não por número de passageiros, como hoje. O objetivo é diminuir a espera da população nas estações e a lotação a bordo. “Não dá para ficar 15 minutos esperando na estação. Esse instrumento incentiva o operador a colocar o máximo de trens possíveis”, afirma Rafael Benini, secretário de Parcerias em Investimentos de São Paulo, pasta que comanda as concessões no estado. Benini acrescenta que o novo contrato tem gatilhos para que as concessionárias não coloquem carros vazios para circular e que nas próximas concessões, das linhas 11, 12 e 13, a lógica de pagamento será mista, considerando o volume de passageiros e a oferta de trens.

As mudanças nos contratos ajudam a aumentar o interesse privado, inclusive do exterior. André de Angelo, diretor para o Brasil da espanhola Acciona, presenciou a evolução dos contratos. A empresa assinou um termo de concessão de rodovias em 2008 e, em 2020, assumiu as obras da Linha 6-Laranja do metrô de São Paulo, que estavam paralisadas. “Entre um contrato daquela época e um atual houve uma evolução muito grande. Os projetos de hoje tiveram assessoramento financeiro e técnico. Isso dá uma tranquilidade para o investidor. Hoje, a palavra da Acciona para o Brasil é ‘otimismo’”, diz.

Angelo recebeu a EXAME no canteiro da estação Santa Marina, parada da Linha 6 que está com as obras mais avançadas atualmente. A construção desse ramal foi iniciada em 2015 por outro consórcio, que incluía Odebrecht e Queiroz Galvão, abaladas pela Lava Jato. O grupo suspendeu as obras em 2016 e deixou o contrato. A Acciona assumiu as obras da Linha 6-Laranja de São Paulo em 2020, sob as mesmas condições anteriores. “O percentual de execução da obra ainda estava baixo, com apenas alguns canteiros mobilizados, então foi mais um ‘-green field’ do que um ‘brown field’”, comenta Angelo. A previsão é que a nova linha seja entregue parcialmente em 2026, com o trecho entre Brasilândia e Perdizes.

Uma das mudanças trazidas pelos novos contratos é a ampliação das garantias financeiras, para cobrir gastos imprevistos, como uma queda abrupta de demanda. “São contratos de 30 anos, com vários riscos econômicos. Você não sabe como vai ser a instabilidade econômica e política do país. Tem de confiar no Estado. O privado tem de recuperar seu investimento na operação, remunerar o investidor e dar lucro. A tarifa sozinha não vai dar isso, mas pagar subsídio é muito mais barato do que o Estado operar todo o sistema”, afirma Quintella, da FGV. Ao mesmo tempo, há mais indicadores de qualidade nos serviços, para garantir um serviço melhor, com qualidade. “Você tem de ter indicadores de qualidade que garantam que o concessionário vai prestar o serviço com qualidade, mas se colocar itens impossíveis de atingir afasta o investidor”, diz Joubert Flores, presidente da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos).

Boa parte desses avanços é fruto de aprendizados com casos de concessões que enfrentaram problemas. O mais grave deles ocorre no Rio e, até a conclusão desta reportagem, continuava sem solução. A SuperVia, que opera os trens de subúrbio, teve várias trocas de dono. O vencedor do leilão inicial, em 1998, foi um consórcio com os bancos Prosper e Pactual e as empresas espanholas Renfe e CAF. Em 2010, a Odebrecht assumiu o controle depois de comprar 61% das ações do consórcio, mas saiu do negócio em 2018, em meio aos desdobramentos da Lava Jato. A japonesa Mitsui passou a controlar a SuperVia em 2019, em um cenário complexo, com envelhecimento de frota e falhas constantes. A empresa chegou a ser multada pela Justiça do Rio de Janeiro, em 2018, em 50.000 reais diários, pela falta de qualidade do sistema.

“A SuperVia passa por mais de 100 comunidades, e em muitas delas há presença do tráfico e da milícia. Se fazem um buraco no muro, as pessoas entram sem pagar, e, se você for tentar fechar, o ‘dono’ da região não vai deixar. Aí tem uma perda de receita absurda”, comenta Flores. A situação piorou com a pandemia, que derrubou o total de passageiros de 13 milhões para 4 milhões por mês, no auge da crise. Em 2021, a -SuperVia entrou em recuperação judicial e, no ano seguinte, foi alvo de uma CPI na Alerj. No começo de 2023, os controladores buscaram o governo do estado para devolver a concessão, mas ainda não conseguiram. As conversas se arrastam há mais de um ano e, no começo de maio, a empresa entrou na Justiça para cobrar o governo fluminense por pendências que superam 1 bilhão de reais. “A falência tornou-se um risco concreto para a SuperVia caso não seja possível obter as soluções necessárias com o governo”, disse a empresa, em nota. A EXAME pediu entrevista para a SuperVia, mas não obteve resposta.

André de Angelo, diretor da Acciona: empresa está otimista em investir no Brasil (Germano Lüders/Exame)

Em São Paulo, a transição das Linhas 8 e 9 da CPTM para a ViaMobilidade, em 2022, teve alguns problemas, incluindo a batida de um trem na estação Júlio Prestes, incêndios e descarrilamentos. “Os trens estão mais cheios do que antes da pandemia, mesmo fora do horário de pico. Pegar o trem no começo da linha e não conseguir ir sentado é frustrante”, lamenta o designer Paulo Rodrigues, de 31 anos, que mora no Grajaú e usa a Linha 9 para ir trabalhar. “Quando tem previsão de chuva à tarde, tento acabar o trabalho antes e sair mais cedo, porque a linha tem risco de parar. Temo ficar preso”, diz ele.

Francisco Pierrini, diretor de operações da CCR Mobilidade, afirma que um dos problemas na transição foi que a linha usava sistemas antigos, da década de 1970, o que fez com que a adaptação dos operadores fosse mais longa. “Um dos pontos de aprendizado foi a importância do nível de transparência sobre a situação real dos ativos para uma melhor compreensão dos riscos da licitação”, comenta. Outra lição foi aumentar o tempo de transição. Na Linha 7-rubi, por exemplo, a nova operadora só assumirá a operação após um ano e meio da assinatura do contrato. Em novos negócios, o governo de São Paulo promete que existirá a previsão de que a CPTM possa prestar serviço ou alugar peças para o privado. “A dificuldade do privado muitas vezes está em ter acesso a peças para manutenção, e a CPTM tem toda a expertise”, explica Benini.

André Paiva, economista da Tendências, salienta que cada contrato deve se adaptar à realidade local e destaca a importância da fiscalização do Estado. “Cada um tem especificidades que influenciam a decisão sobre a participação menor ou maior dos estados. O Estado ainda tem o papel vital que é monitorar para que o privado preste o serviço da maneira adequada”, conclui.

Para os próximos anos, além da concessão das linhas restantes do metrô e da CPTM em São Paulo, há a expectativa pelo leilão dos serviços da CBTU, como o metrô de Recife, com certame previsto para 2026. “A mobilidade urbana no Brasil tem um potencial significativo de investimento”, diz Pierrin, da CCR. Ele afirma que a empresa manterá uma “postura seletiva” para decidir entrar em novos projetos no país, mas já mapeou pelo menos 50 bilhões de reais em oportunidades de novos projetos no setor. Esse dinheiro, se bem aplicado, ajudará a mobilidade a avançar e reduzirá o tempo de viagem até chegar em casa — será uma vitória de milhões de brasileiros. 


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