Revista Exame

Esta cidade antecipa o que a China quer ser em 20 anos

Shenzhen é um caso indiscutível de sucesso econômico e serve de inspiração para postulantes à metrópole do século 21

Milagre chinês: há 40 anos, a área era apenas uma aldeia de pescadores | Getty Images /

Milagre chinês: há 40 anos, a área era apenas uma aldeia de pescadores | Getty Images /

LA

Lucas Amorim

Publicado em 5 de outubro de 2017 às 06h00.

Última atualização em 5 de outubro de 2017 às 06h00.

Em Shenzhen,  a quarta maior cidade da China, com 11 milhões de habitantes, a preocupação com sustentabilidade não demora a ser percebida. Logo ao desembarcar, nota-se que os táxis que atendem o aeroporto têm placas verdes, indicando que são movidos a energia elétrica, e não a gasolina. São cerca de 8.500 espalhados pela cidade. Shenzhen também tem 16.000 ônibus elétricos e uma das maiores frotas de carros particulares elétricos do planeta. Eles contam com vagas especiais, descontos nos impostos e direito a faixas exclusivas.

A cidade era uma antiga colônia de pescadores até que, em 1979, foi escolhida por Deng Xiaoping — o maestro da virada da China pós Mao Tsé-tung — como a primeira zona especial de desenvolvimento do país. Nas palavras do ex-presidente Hu Jintao, é uma metrópole que simboliza o “milagre econômico chinês”. Hoje, é sede de gigantes de tecnologia como a Huawei, que fabrica de cabos a smartphones, e a Tencent, dona do mais popular aplicativo do país, o WeChat, e também de novatas como a DJI, a maior fabricante de drones do planeta.

Em alguns bairros, a renda média chega a 50.000 dólares por ano, cinco vezes a média chinesa. A cidade tem 125 empresas de tecnologia listadas em bolsa, com valor de mercado somado na ordem de 400 bilhões de dólares.

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Shenzhen é um dos principais exemplos de cidades planejadas, e inteligentes, que brotam mundo afora. São áreas escolhidas a dedo pelos países para que sirvam como modelo de desenvolvimento nas mais diversas frentes, notadamente em inovação e sustentabilidade. A receita é sempre parecida. Escolha uma região com dificuldades econômicas, faça pesados investimentos em infraestrutura urbana e de telecomunicações, dê incentivos financeiros e tributários para atrair empresas, crie centros de pesquisa e inovação. Se tudo der certo, as cidades conseguirão caminhar com as próprias pernas em alguns anos ou décadas. Se tudo der muito certo, estenderão sua influência por dezenas de quilômetros, criando um polo de desenvolvimento. No melhor dos cenários, o sucesso dessas cidades servirá como laboratório para oxigenar o ambiente de negócios e as políticas de desenvolvimento do país, e ainda se transformar numa peça de propaganda global. “Em Shenzhen, o governo é muito inovador e agressivo na adotação de novas tecnologias. A chave é tomar as decisões e apoiar os investimentos da iniciativa privada”, diz Tom Zhao, diretor da divisão de energia solar da BYD, maior fabricante de carros elétricos do planeta, instalada em Shenzhen.

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Cidades construídas do zero serviram para defesa, para embelezar impérios, para expandir territórios. O Brasil tem seus exemplos, como a construção de Brasília, inaugurada em 1960 para acentuar o desenvolvimento do interior. Hoje, boa parte das novas metrópoles serve para teste de projetos de energias renováveis, carros autônomos, conexões de alta velocidade.

A Coreia do Sul está investindo 40 bilhões de dólares na construção de um distrito financeiro para 80.000 pessoas nos arredores de Seul, batizado de Songdo. Na Árabia Saudita, está em construção a cidade autossustentável de Gidá. Os Emirados Árabes estão investindo 20 bilhões de dólares na construção de Masdar, uma cidade planejada abastecida a energia solar e pensada para ser um polo de empresas sustentáveis no meio do deserto. Por trás do projeto, está um estudo do governo dos Emirados que estimou que as reservas de petróleo do país durarão apenas 150 anos e que, por isso, é preciso diversificar a economia com turismo, tecnologia e energias verdes.

“O grande desafio dessas novas cidades é projetar um futuro mais sustentável. Ainda estamos testando as tecnologias que serão usadas em nossas cidades nas próximas décadas. São experimentações, e experimentações tomam tempo”, diz Mary Teagarden, professora na escola de negócios americana Thunderbird e especialista no desenvolvimento de cidades.

Entre a ambição e a realidade há uma enorme distância. Os novos projetos se concentram nos países onde os desafios da urbanização são mais urgentes, principalmente na África e na Ásia. São lugares com problemas demais a resolver e, muitas vezes, dinheiro de menos, e isso tem feito com que muitos projetos, como o parque tecnológico Hope City, em Gana, estejam atrasados.

Os projetos costumam receber a crítica de urbanistas por ser muito parecidos entre si, ignorando diferenças regionais. Songdo, na Coreia, terá uma réplica do Central Park, de Nova York, e outra dos canais de Veneza. Lavasa, na Índia, foi inspirada num balneário italiano. Gidá, na Arábia Saudita, pretende ter o maior arranha-céu do planeta, com 1 quilômetro de altura. Hope City, em Gana, planeja o edifício mais alto da África.

Também são pensados para a elite e para imigrantes, colocando a população local, normalmente menos capacitada, em segundo plano. “Cidades sustentáveis são muito, muito complexas. Esses projetos aspiram fazer algo que nunca foi feito antes. Construir o consenso requerido para seu sucesso nos diversos níveis de governo, sociedade e planejadores urbanos é muito difícil”, diz Mary Teagarden.

Na fronteira da tecnologia: Shenzhen e arredores respondem por 40% dos registros de patentes chinesas Tyrone Siu/Reuters

POLO GLOBAL

Esse é um dos motivos que facilitam o sucesso desses projetos ambiciosos em países ditatoriais, como a China — lá, o consenso é dispensável. Mas, apesar das críticas sobre sua concepção, Shenzhen é um caso indiscutível de sucesso econômico e serve de inspiração para postulantes à metrópole do século 21. Com o aumento dos salários e da idade média da população, a China se vê forçada a buscar competitividade em novas frentes.

Fazer experiências em regiões específicas, e controladas, com regras mais amigáveis ao livre mercado e mais abertas a investimento estrangeiro foi o caminho escolhido pelo governo central nas últimas décadas. Shenzhen é a joia da coroa. “A China não vai conseguir mais crescimento simplesmente construindo prédios e mais infraestrutura. Precisa permitir que suas cidades sejam mais inteligentes e que sejam locais em que especialização e inovação virem as principais fontes de crescimento”, escreve Arthur Kroeber, diretor da empresa de pesquisas Dragonomics em seu livro China’s Economy. “A China urbanizou os empregos. Falta urbanizar as pessoas, e esse vai ser um grande desafio para a próxima década.”

Shenzhen se beneficiou da maior migração urbana da história, que tirou 500 milhões de chineses da zona rural para as grandes cidades em 30 anos. Cerca de 6 milhões de habitantes, mais da metade da população, são trabalhadores migrantes. Eles normalmente dormem em edifícios perto das fábricas, como a montadora de carros elétricos BYD. Ao contrário do que ocorre no restante da província, em Shenzhen não se fala o cantonês, dialeto local, mas sim o mandarim, língua oficial da maioria das províncias da China, de onde vieram trabalhadores para povoar Shenzhen.

Os operários do chão de fábrica enviam boa parte do salário ao interior, para sustentar pais, avós, filhos. Mas executivos das grandes empresas e funcionários do mercado de tecnologia vêm ganhando cada vez mais dinheiro e fazem com que Shenzhen tenha uma das rendas per capita mais altas da China.

Verde no deserto: Masdar, nos Emirados Árabes, aposta em energia renovável | Iain Masterton/Getty Images

Sob muitos aspectos, Shenzhen e a região onde está localizada, o delta do Rio Pérola, antecipam o que a China quer ser em 20 anos — uma economia mais baseada em inovação e serviços do que em exportação de produtos baratos. A região tem crescido 12% ao ano ao longo da última década, bem mais do que a própria China, e fica atrás apenas dos Estados Unidos e da Alemanha como polo de comércio mundial. Há séculos é a mais globalizada da China, e sempre foi um entreposto de comércio com o sudeste da Ásia.

A abertura dos anos 80 e 90 transformou a área na principal exportadora de manufaturas, com mais de 10.000 fábricas, incluindo algumas da Foxconn, fabricante do iPhone. Aos poucos, o custo de mão de obra foi aumentando, levando fábricas a migrar para países vizinhos e forçando a região a se reinventar. A saída foi a inovação — Shenzhen responde sozinha por mais de 40% dos registros de patentes na China. Embora o delta do Rio Pérola represente menos de 1% do território chinês e tenha 5% da população, ele gera mais de 10% do PIB e um quarto das exportações.

O delta reúne nove cidades da província de Guangdong, incluindo Shenzhen, com 11,4 milhões de habitantes, e Guangzhou, com 13,5 milhões. As duas cidades figuram entre as quatro consideradas nível 1 pelo governo chinês, juntamente com Pequim e Xangai, e estão separadas por pouco mais de 100 quilômetros. Um conjunto de pontes e túneis está em construção para ligar Shenzhen e Hong Kong a Macau, 50 quilômetros distante, no outro lado do canal de Lingdingyang. A região tem 66 milhões de habitantes, mais do que a Itália, e superou Tóquio como a maior megalópole do mundo. A economia é dominada pela iniciativa privada.

Das 100 grandes estatais controladas pelo governo central, apenas quatro estão baseadas no delta. “A China era a fábrica do mundo, produzindo das coisas mais simples às mais complexas. Mas as fábricas começaram a ficar ociosas, e a região encontrou uma nova vocação na inovação, conectando o mundo físico ao digital. É o lugar para estar”, diz o francês Benjamin Joffe, coordenador da Hax, a maior aceleradora de startups de robótica do planeta, instalada no coração da cidade.

Nova capital: o presidente Xi Jinping está empenhado em mudar parte das funções de Pequim para a projetada Xiangon | Nicolas Asfouri/AFP Photo

PARA ALÉM DA CANETADA

O sucesso econômico de Shenzhen tem inspirado o governo central. Na China antiga, a troca de dinastias fatalmente levava à mudança da capital para novas regiões. Agora, o presidente Xi Jinping tem planos de mudar parte da capital de Pequim para 100 quilômetros ao sul. A nova cidade, conhecida como Xiangon, terá três vezes o tamanho de Nova York, e é considerada pelo governo um dos maiores projetos urbanos da história, juntamente com Shenzhen e Pudong, o distrito financeiro de Xangai.

O plano é que todos os serviços e negócios não diretamente ligados à administração pública sejam realocados para a nova cidade, reduzindo a poluição, o tráfego e o custo de vida crescentes de Pequim. Mesmo com a mão pesada do governo, a China tem um longo histórico de fracassos ao tentar repetir o modelo de Shenzhen, como Tianjin, no norte, e Caofeidian, uma cidade ecológica no golfo de Bohai, próximo a Pequim.

Em 2013, o primeiro-ministro Li Keqiang lançou a Zona Franca de Xangai, que até hoje não decolou. Mas, desta vez, analistas acham que o destino pode ser diferente por causa do envolvimento do presidente, Xi Jinping, que tem visitado pessoalmente as obras da área.

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Em certos aspectos, a sensação de viver dentro de uma maquete é inevitável nessas novas e exuberantes cidades. Visitada por EXAME, Shenzhen parece uma enorme Barra da Tijuca, o bairro com mais projetos imobiliários do Rio de Janeiro. Há vias largas, muitos condomínios residenciais, shoppings e mais shoppings. Carros luxuosos para lá e para cá, pouca gente nas calçadas. Eis um desafio dos projetos: transformar essas cidades utópicas em metrópoles com uma pujante cena urbana leva décadas, e não depende apenas da canetada do governo.

A necessidade de controle total e de impor restrição à voz dos críticos faz com que esses projetos sejam mais difíceis de ser replicados em democracias como o Brasil, os Estados Unidos ou os países da União Europeia — onde o maior desafio é adaptar metrópoles como Londres, Nova York ou São Paulo para as demandas do novo século. Nesse contexto, Masdar ou Shenzhen servem de inspiração para o que fazer — e para o que evitar. Mas uma coisa é certa: cidades e países que não mirarem um futuro mais inovador, e sustentável, perderão espaço para quem o fizer.

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