Protesto contra a corrupção em Brasília (DF) (Evaristo Sá/AFP)
Da Redação
Publicado em 4 de outubro de 2017 às 12h31.
Última atualização em 4 de outubro de 2017 às 20h06.
“Desde a queda do Estado Novo, em 1945, até nossos dias, o Brasil passou, em pouco mais de 72 anos, por três regimes políticos: o da Constituição de 1946, o dos militares (1964-1985) e o da Constituição de 1988. No primeiro deles, de 18 anos, apenas dois dos cinco presidentes (Dutra e Juscelino) começaram e terminaram o mandato nas datas previstas. Dos três outros, um se matou (Getúlio, 1954), o segundo renunciou (Jânio, 1961), e o terceiro foi deposto (Jango, 1964). Passemos por cima dos quase 21 anos do regime militar. Agora o atual regime político já passou dos 32 anos, quase o dobro do primeiro. Dos sete presidentes, um chegou ao fim do mandato só Deus sabe como (Sarney, 1990); dois sofreram impeachment (Collor, 1992; Dilma, 2016); dois cumpriram mandatos duplos (Fernando Henrique e Lula); um completou o termo de Collor (Itamar); e o outro (Temer) tenta fazer o mesmo com o de Dilma. A primeira e inescapável conclusão é que os governos não se tornaram mais estáveis. A taxa de instabilidade e ruptura continua intoleravelmente alta, ainda que agora os afastamentos sejam feitos não por golpes militares.
Debaixo da volatilidade política está uma enorme oscilação na economia. Desde os choques do petróleo e da crise da dívida externa dos anos 80, o Brasil perdeu a capacidade de crescer a taxas altas por períodos prolongados. Não foi possível garantir estabilidade de preços, crescimento e equilíbrio do orçamento e do balanço de pagamentos ao mesmo tempo. Quando se avançou num dos campos, quase sempre houve desequilíbrio nos outros, culminando, em 2015, com o pior dos mundos: recessão, inflação e um déficit alarmante no orçamento.
Há, no entanto, uma diferença para o passado: mesmo nas horas mais difíceis, não se perdeu por completo o controle da inflação e, desta vez, evitou-se o estrangulamento externo. Outro progresso no período foram o nível de consciência a respeito da dívida social e a adoção de políticas públicas eficazes para eliminar a indigência, reduzir a pobreza, diminuir a desigualdade, melhorar a saúde, a educação e o meio ambiente, emancipar as mulheres, combater o preconceito contra as diferenças de sexualidade, reconhecer e promover os direitos de negros e indígenas com ações afirmativas e corretivas, facilitar o acesso à terra, instituir o respeito aos direitos humanos. Resumindo: integrar à sociedade os que vivem à sua margem. O desafio no futuro será manter e ampliar os avanços em um círculo virtuoso pelo qual democracia, prosperidade e melhoria social reforcem uns aos outros.
Alguns cientistas políticos costumam afirmar que nada há de essencialmente errado com o sistema político brasileiro, que cumpriria sua função principal de produzir decisões. Nem o presidencialismo de coalizão nem a fragmentação partidária e outros vícios impediriam o Executivo de obter do Legislativo e do Judiciário as decisões necessárias para governar. Superficialmente, pode parecer verdade. Afinal, a Constituição de 1988 registra nada menos que 93 emendas em 29 anos desde a promulgação (5 de outubro de 1988) — a Constituição dos Estados Unidos ostenta 27 em 228 anos.
O que a análise dos números não mostra é a qualidade e o preço das decisões. Um dos defeitos de minimizar os problemas do sistema político reside em sua suposta neutralidade em matéria de valores. Outro consiste na miopia que leva a enxergar apenas o imediato, sem avistar as consequências mais distantes. Fotografa-se o funcionamento do sistema político num momento, sem assinalar que o sistema é dinâmico, e seus custos, cada vez mais altos em termos éticos e econômicos, terminam por torná-lo disfuncional.
A dinâmica do regime político brasileiro tem sido a mesma do câncer: cresce mediante a proliferação de células até ocasionar a sua morte. O aspecto que melhor ilustra isso (nem de longe o único) é a formação dos partidos. Na época de Geisel/Figueiredo, havia dois partidos, passando a cinco ou seis na abertura democrática. O número foi crescendo até atingir os atuais 35. Há outros 125 com pedidos de aprovação na Justiça Eleitoral! Fora do Brasil, qualquer pessoa que tomasse conhecimento das cifras pensaria que somos um país de insensatos. E, no entanto, em 2006, os sensatos membros do Supremo Tribunal julgaram a cláusula de barreira inconstitucional.
POLÍTICOS DE ALUGUEL
Cria-se um partido para ganhar acesso aos recursos do Fundo Partidário, convida-se um palhaço, uma estrela de TV, um craque de futebol a liderar a chapa de deputados e, com os votos, arrastam-se mais três, quatro ou cinco eleitos, graças ao quociente partidário. Forma-se um pequeno bloco na Câmara ou nas assembleias, e começa aí o ‘negócio da governabilidade’: a troca de votos por verbas, nomeações, propinas. Se, com seis partidos, o custo já é elevado, imagine-se com 30! Nos tempos da escandalosa corrupção política americana, na máquina democrata de Tammany Hall, que dominou a política municipal de Nova York de 1854 a 1934, o conceito de político honrado (honorable politician) era o de alguém que ‘uma vez comprado, permanecerá comprado’ (once bought will stay bought). O problema é que, hoje, alguns políticos já não se vendem mais; alugam-se a cada votação pelo melhor preço.
Juntando a negociação à fragmentação partidária e à impossibilidade de um só partido adquirir maioria própria, não há dinheiro que seja suficiente. O sistema político transformou-se em mecanismo insaciável da transferência de recursos da economia para os partidos, para os políticos e para uma multidão de intermediários. Até empresas riquíssimas como a Petrobras viram-se quase destruídas pela extorsão. Conquistas que, em circunstâncias normais, fortaleceriam a empresa, como as descobertas do pré-sal, serviram para mudar a escala da corrupção, que saltou dos milhões aos bilhões de dólares. A Operação Lava-Jato é, no fundo, a reação saudável do que resta do sistema imunológico da nação, demonstrando que a maioria dos cidadãos não aceita o intolerável custo ético do funcionamento de um regime político irremediavelmente corrompido.
Pode um tal regime sobreviver aos sinais de esgotamento? Só se for capaz de cortar na própria carne e levar avante uma reforma significativa das distorções escancaradas pela crise do impeachment e da Lava-Jato. Os vícios e as doenças do sistema estão diagnosticados e não existe mistério quanto à cura. As reformas indispensáveis têm sido exaustivamente debatidas e só não foram adotadas em razão da resistência dos interesses, não devido a uma insuperável (e falsa) complexidade das soluções. Sem as reformas cruciais, a ruptura se tornará, cedo ou tarde, inevitável. Os países que dão certo são aqueles onde as instituições se revelaram capazes de se autorreformar no grau necessário e na hora adequada. Estará o Brasil entre eles? A resposta vai depender não do fado ou das estrelas, e sim do que acontecer a partir de agora. Nada, nem o sucesso nem o fracasso, está predeterminado ou garantido.
Desenvolver-se é aprender a gerir a complexidade crescente da sociedade moderna. Ao dizer que a Dinamarca ou a Noruega são desenvolvidas, o que temos em mente não é só ou principalmente que os nórdicos são mais ricos, têm maior produtividade ou renda per capita. Significa que, graças à educação e à qualidade das instituições e dos recursos humanos, eles são também mais capazes do que nós de gerir bem as escolas primárias, as universidades, os parques e reservas ambientais, as prisões, os hospitais, a mobilidade urbana, a previdência social, os museus e laboratórios; em outras palavras, que sabem lidar com a complexidade dos desafios modernos, com pessoas formadas por uma educação de qualidade. O desenvolvimento é uma totalidade, e em tudo os países desenvolvidos se mostram mais capazes, inclusive em defesa. Em países como o nosso, existem, às vezes, ilhas de excelência isoladas por oceanos de incompetência ou corrupção. Enquanto permanecerem isoladas, quase como anomalias, essas ilhas — a Embrapa, a Embraer, a Petrobras, antes da recente dé-bâ-cle, a Secretaria da Receita Federal, a Secretaria do Tesouro do Ministério da Fazenda e o Itamaraty, entre outros — estarão sempre ameaçadas de ser afogadas pelo transbordamento da incompetência e pela corrupção que as circunda.
No plano internacional, a aspiração do Brasil em se tornar uma potência vem de longe. Mas o poder efetivo brota da aquisição do conhecimento pela educação e pesquisa, de sua aplicação à vida material, da capacidade de lidar com a totalidade dos desafios, da conquista de nível comparável ao dos avançados, não apenas em isolados setores de excelência mas também em todos os setores da sociedade brasileira, a começar pelo ambiental, pelo dos direitos humanos, da igualdade de gênero, social, racial, pela proteção dos membros mais frágeis e vulneráveis da comunidade. Estamos longe de alcançar o objetivo, mas chegamos até aqui com educação e instituições que não eram melhores do que as atuais. Ingressamos no século 20 com 17 milhões de brasileiros, dos quais 84% eram analfabetos, com uma expectativa de vida pouco inferior a 30 anos, como na Idade Média. É razoável pensar que estamos mais distantes do país da escravidão do qual partimos do que da meta de nação desenvolvida que almejamos atingir.”
Trecho adaptado do livro A Diplomacia na Construção do Brasil