Theresa May e Jean-Claude Juncker: as declarações do presidente da Comissão Europeia atrapalharam os planos da primeira-ministra britânica (Hannah Mckay/Reuters)
Raphaela Sereno
Publicado em 19 de junho de 2017 às 17h34.
São Paulo — Após o resultado eleitoral desastroso para o Partido Conservador no Reino Unido, o governo da primeira-ministra britânica, Theresa May, vive seu momento mais crítico. Justamente quando ela esperava chegar à mesa de negociações do Brexit contando com apoio incondicional dos britânicos, seu partido perdeu a posição majoritária no Parlamento e ficou enfraquecido — numa prova de que, nas disputas eleitorais, nenhum desfecho é garantido, por mais que as pesquisas digam o contrário. Theresa admitiu a culpa pelo desempenho ruim nas urnas e viu-se no centro de uma crise que ameaça a continuidade de seu governo: já há políticos de seu partido pedindo a renúncia dela. Para se manter na liderança do país, Theresa demitiu seus dois principais assessores, trocou ministros e firmou uma aliança com o nanico Partido Unionista Democrático, da Irlanda do Norte, para garantir o controle no Parlamento.
A instabilidade política coloca o Reino Unido em uma péssima posição nas negociações do Brexit — a saída do país do bloco europeu — com a União Europeia, previstas para começar neste mês. Por outro lado, ninguém sai tão fortalecido quanto Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, órgão que representa o poder executivo da União Europeia. Ex-primeiro-ministro de Luxemburgo, Juncker é um veterano político de 62 anos que costuma ser descrito como astuto, detalhista e incansável nas articulações de bastidores. Caberá a ele assinar o acordo para a saída do Reino Unido da União Europeia. O processo deve se arrastar por até dois anos, e Juncker vai recorrer a seu faro político para obter um acordo vantajoso para os europeus. É o que se espera dele, a julgar por sua trajetória de três décadas de vida pública.
Filho de um metalúrgico, Juncker entrou na política em 1984, quando foi eleito deputado pelo Parlamento de Luxemburgo — um grão-ducado de apenas 500 000 habitantes espremido entre a França e a Alemanha. O minúsculo país é detentor de alguns dos melhores indicadores sociais e econômicos da União Europeia graças a seu sistema financeiro, que oferece facilidades que atraem bancos de várias partes do continente. Juncker entrou no governo como ministro do Trabalho e, depois, das Finanças. Paralelamente, começou a participar de vários órgãos-chave europeus encarregados da criação do euro, a moeda única europeia, e do desenho político atual da União Europeia. Manteve ativa participação política na União Europeia mesmo depois de ser nomeado primeiro-ministro de Luxemburgo em 1995. Ocupou a chefia do governo ao longo de 17 anos (é o mais longevo dos líderes políticos europeus recentes), mas acabou atingido em 2013 por um escândalo de espionagem interna envolvendo o serviço secreto. Acusado de omissão, não resistiu à pressão e renunciou.
Sem espaço político em seu país, Juncker articulou a volta por cima em grande estilo, com a ajuda da extensa rede de contatos que amealhou em Bruxelas. A oportunidade surgiu no início de 2014, em meio a uma manobra dos partidos que atuam no Parlamento Europeu para alterar a forma de escolha do presidente da Comissão Europeia — até então feita a portas fechadas pelos líderes de governo dos 28 países do bloco. Sob a justificativa de democratizar o processo, os partidos sugeriram que a escolha fosse feita pelo voto indireto dos eleitores. A ideia era simples: cada partido ou coalizão indicaria um candidato a presidente da Comissão Europeia antes das eleições para o Parlamento Europeu. O nome escolhido pelo partido que obtivesse mais cadeiras seria referendado depois pelos líderes do bloco.
A proposta, no entanto, foi rejeitada pelo então primeiro-ministro britânico, David Cameron, que enxergou na manobra um atalho para a criação de um governo federal europeu — ideia polêmica à qual o Reino Unido sempre se opôs. Veio a eleição, e o Partido Popular Europeu, que havia indicado Juncker, obteve maioria. Irritado, Cameron tentou bloquear a confirmação de Juncker, buscando apoio de outros países. Não conseguiu.
Dois anos depois veio o Brexit, Cameron perdeu o cargo e Juncker seguiu firme na presidência executiva do bloco, agora com a missão de medir forças com Theresa May (ou um eventual sucessor). Na busca de culpados pelo desastre eleitoral da primeira-ministra, sobrou até para Juncker. Nos últimos meses, o presidente da Comissão Europeia aproveitou cada aparição pública para enviar recados diretos e indiretos a Londres. “Fora é fora”, passou a repetir, num tom de voz cada vez mais elevado, dando a entender que não fará concessões ao Reino Unido. Foi uma resposta aos políticos ingleses que passaram a sugerir um status especial ao Reino Unido na relação com o bloco europeu. Em março, durante um encontro de cúpula que reuniu os líderes dos 27 países remanescentes da União Europeia em Roma — a premiê britânica foi convidada, mas não apareceu —, Juncker lançou um documento com cenários possíveis para a União Europeia. “Precisamos olhar para o futuro”, afirmou.
Com final imprevisível, as negociações sobre o Brexit se darão em duas etapas. Na primeira, serão fixados os termos do divórcio, após 44 anos de convivência. A fase seguinte prevê a assinatura de um acordo final. No lado da União Europeia, o time já está escalado: Juncker designou uma equipe de 30 diplomatas, comandada pelo francês Michel Barnier, ex-ministro de Relações Exteriores e ex-comissário europeu. A agenda de discussão é extensa. A União Europeia quer cobrar uma fatura calculada em 60 bilhões de euros, relativa a obrigações financeiras assumidas pelo Reino Unido como membro do bloco. Theresa May deve contestar a cobrança. Ela também deve buscar um acordo para aliviar a carga tributária equivalente a 7,2 bilhões de euros anuais que será imposta aos produtos britânicos vendidos à União Europeia — o mercado comum é destino de 43% das exportações britânicas. Outras pendências devem gerar discussões, entre elas a situação da fronteira entre a Irlanda do Norte (que faz parte do Reino Unido) e a República da Irlanda (membro da União Europeia). Há também a preocupação com o destino dos 3 milhões de cidadãos dos 27 países-membros que vivem no Reino Unido e do 1,5 milhão de britânicos residentes na União Europeia.
O vazamento de uma conversa entre Juncker e Theresa num jantar em maio em Londres, no qual os termos do Brexit foram abordados informalmente, deu uma ideia do nível de tensão que deve prevalecer nas negociações. Segundo revelou o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung, a britânica demonstrou “expectativas irreais” sobre a negociação. Juncker chegou a adverti-la que “a União Europeia não é um clube de golfe”, onde um sócio se desliga “sem pagar ou dar satisfação”. No dia seguinte, Juncker telefonou para a chanceler alemã, Angela Merkel, para reclamar que “Theresa May vive em outra galáxia”. Como apenas quatro pessoas participaram do jantar, incluindo um assessor de cada lado, o vazamento foi atribuído a Juncker.
O episódio arranhou a imagem de Theresa May em plena campanha eleitoral. Coincidência ou não, a vantagem dos conservadores nas pesquisas começou a despencar depois do “jantar desastroso”, como os tabloides britânicos definiram o encontro. May atribuiu o vazamento “aos fofoqueiros de Bruxelas”. Juncker lamentou a exposição da colega britânica, com quem disse se dar “muito bem”. Como se vê, a novela do Brexit promete ter capítulos emocionantes até o final.