Revista Exame

Precisamos falar de água

A humanidade sabe, há décadas, que a falta d’água é um risco global não precificado. Mesmo assim, demorou mais de 40 anos para a ONU levar o tema a uma de suas reuniões. Entre previsões e alertas, o setor privado toma a dianteira para resolver um problema histórico: a falta de saneamento

A Marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo: a poluição dos rios, resultado da falta de saneamento, é um dos principais motivos para a insegurança hídrica  (Leandro Fonseca/Exame)

A Marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo: a poluição dos rios, resultado da falta de saneamento, é um dos principais motivos para a insegurança hídrica (Leandro Fonseca/Exame)

Rodrigo Caetano
Rodrigo Caetano

Editor ESG

Publicado em 20 de abril de 2023 às 06h00.

A fila em frente ao escritório de credenciamento da ONU, na Rua 45, a poucos metros da sede das Nações Unidas em Nova York, se estendia por cerca de 10 metros quando a reportagem da EXAME chegou para buscar suas credenciais.

Era uma terça-feira, no final de março. Uma hora e 45 minutos depois, tempo que demorou para completar o processo (e isso contando que a foto já estava no sistema), a multidão de diplomatas, ativistas e jornalistas aguardando para entrar nas dependências alcançava a Segunda Avenida, serpenteando por quase um quarteirão nova-iorquino, e dos grandes. A fila em frente ao escritório de credenciamento da ONU, na Rua 45, a poucos metros da sede das Nações Unidas em Nova York, se estendia por cerca de 10 metros quando a reportagem da EXAME chegou para buscar suas credenciais. 

No dia seguinte, teria início a Water Conference, o primeiro fórum de águas organizado pela entidade desde 1977. Durante três dias, o mundo se reuniu para debater um dos assuntos mais urgentes e negligenciados entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o de número 6: água e saneamento.

(Arte/Exame)

O cenário não é nada animador. Dos 11 indicadores estabelecidos para acompanhar as metas do ODS 6, cinco nem sequer contam com dados efetivos. E alguns precisam quadruplicar o desempenho se o mundo quiser resolver o problema. Segundo a ONU, 26% da população mundial, o equivalente a 2 bilhões de pessoas, não conta com acesso seguro a água potável. Quando se trata de saneamento, a situação é ainda pior: mais de 3,6 bilhões de pessoas, quase metade dos humanos no planeta, carecem de tratamento adequado de seus excrementos, o que agrava outro problema urgente em se tratando de água — a poluição, um dos catalisadores da endemia de falta d’água.

Para Gilbert F. Houngbo, presidente do conselho da UN Water e diretor-geral da Organização Mundial do Trabalho, o tempo não está do lado da humanidade nesse caso. “Devemos ser ambiciosos e acelerar as ações”, disse Houngbo.

A boa notícia nessa enxurrada de negatividade é que a eficiência no uso da água aumentou 9% no período pesquisado (entre 2015 e 2018). O melhor resultado veio da indústria, que elevou a eficiência em 15%, seguida do setor de agricultura, com 8%. É um sinal claro da importância do setor privado para o avanço do ODS 6.

Mesmo com o avanço, a ONU espera que a população sujeita à escassez hídrica dobre até 2050, o que deve gerar prejuízos bilionários. Desde a última Conferência das Águas, estima-se que a economia global tenha perdido 700 bilhões de dólares em virtude de crises hídricas.

Sede da ONU, em Nova York: a Conferência das Águas, realizada neste ano, não acontecia no palco das Nações Unidas desde 1977 (Leandro Fonseca/Exame)

Orçamento de guerra

“Há diversas maneiras de fazer capitalismo.” A frase, jogada despretensiosamente como se fosse óbvia, inicia uma linha de pensamento que conecta as estruturas de financiamento de projetos público-privados a estupros em Serra Leoa. Dita por Mariana Mazzucato, uma das economistas mais influentes do mundo, também resume o trabalho de ativistas e pensadores que buscam usar as finanças para resolver os grandes problemas da humanidade, como a endêmica falta d’água, realidade vivida por 2 bilhões de pessoas globalmente, de acordo com a ONU.

Mazzucato, professora da College University, em Londres, está sentada ao lado de dois homens de terno. À sua esquerda, de gravata, está Tharman Shanmugaratnam­, membro do parlamento de Singapura, que já serviu como vice-primeiro-ministro e atualmente é conselheiro econômico do governo; à esquerda, sem gravata, Johan Rockström, professor da Universidade de Potsdam (que já deu as caras por aqui). Os três participam de uma conferência de imprensa na sede da ONU, em Nova York, durante a Conferência das Águas.

A economista Mariana Mazzucato: para resolver problemas socioambientais endêmicos, os governos deveriam usar a mesma lógica de orçamento das guerras (David Levenson/Getty Images)

A dúvida se referia a números divulgados pela ONU na manhã da quarta-feira 22. Os dados mostram que o acesso precário à água, condição que afeta 26% da população global, tem dois grandes motivadores: o aumento da demanda em razão do desenvolvimento econômico, estimado em 1% ao ano, e a poluição, resultado direto da pobreza. Ao mesmo tempo, entre 2015 e 2018 foi verificado um incremento de 9% em eficiência no uso da água, puxado principalmente pela indústria, que melhorou o indicador em 15%.

Diante dos fatos, não seria o caso de focar o debate na redução da pobreza e da desigualdade, e destravar os mecanismos de transferência de recursos dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento? Ao que parece, a humanidade sabe como gerenciar o recurso; a dificuldade está em democratizar o bem-estar e a qualidade de vida.

“Todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável têm ligação com a água, não apenas os óbvios”, afirmou Mazzucato. “Eles estão conectados. Inclusive o ODS 5, que trata da equidade de gênero.” Como exemplo, ela cita uma realidade enfrentada por mulheres em Serra Leoa, na África, que precisam deixar a segurança de suas casas para buscar água, às vezes por longas distâncias, e no caminho são estupradas.

O termo “economia real” ganhou força recentemente, muito em razão do momento turbulento na geopolítica, com a guerra na Europa e a pandemia. Ele é usado para resumir o motivo pelo qual políticas macroeconômicas, frequentemente, dão pouco resultado “na ponta”, ou seja, não mudam em nada a vida do ser humano comum, que é quem lida com as consequências práticas dos apertos de juros e das escaladas inflacionárias. Dar nome ao boi, no entanto, não faz dele um economista.

(Arte/Exame)

Para Mazzucato, a questão é como aplicar os recursos financeiros na solução do problema, o que pode parecer óbvio, mas, assim como há diversas maneiras de fazer capitalismo, há diversas maneiras de financiar a infraestrutura social de um país. Um cenário ruim é o que ela chama de preguiça e inércia no espaço público-privado, resultado de subsídios problemáticos e garantias mal definidas.

Uma solução para isso é tratar o desafio de resolver problemas sociais como se faz com a guerra. Em períodos de conflito, diz Mazzucato, recursos financeiros são alocados com a velocidade e o volume adequados para superar o inimigo — e geralmente, no caso dos perdedores, ultrapassam a capacidade­ de gastos da nação. Por que não fazer isso, em menor escala, para situações como crises de violência nas cidades e falta de saneamento?

“O Brasil tem um exemplo de outcome oriented budgeting em Porto Alegre”, diz ela, em referência ao modelo de orçamento focado em resultados, que foi utilizado pela capital gaúcha. Nesse modelo, os gastos e investimentos são organizados em torno de um problema específico, e não em setores generalistas, e a liberação dos recursos depende dos resultados alcançados. “A solução, como Shanmugaratnam vinha dizendo, é transformar o financiamento por concessão em financiamento por condição, em que o investimento na transformação dos setores é uma condição para as parcerias público-privadas.”

Como os bancos públicos podem beneficiar o Brasil

Antes de Mazzucato, Shanmugaratnam já havia ressaltado que o Brasil, com todos os seus problemas, também oferece soluções e serve de modelo. Entre elas está a atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Bancos públicos, se bem utilizados, ajudam a evitar a preguiça e a inércia que acomete, frequentemente, o espaço público-privado.

Faltava apenas uma parte da pergunta a ser respondida: a melhora da eficiência no uso da água pode evitar que o planeta entre em crise pela falta desse bem tão valioso? “Nossos dados são claros ao mostrar que a eficiência, sozinha, não resolve”, disse Johan Rockström. Ao que parece, a humanidade — e o capitalismo — não vão se salvar sem aprender a compartilhar os bônus do crescimento econômico.

Privatizar ou não, eis a questão

Imagine não poder receber pessoas em casa. André Salcedo, diretor-presidente da ­Sabesp, enxerga nessas pequenas dificuldades o drama de quem não possui saneamento. “A pessoa não consegue reunir os parentes e amigos porque passa um esgoto a céu aberto na rua. É uma falta de dignidade e cidadania”, explica Salcedo. 

O executivo viajou aos Estados Unidos para participar da Conferência das Águas da ONU, fórum de discussões que não era realizado desde 1977 — esses 46 anos, por sinal, coincidem com o tempo de vida de Salcedo. “Muita coisa aconteceu nesse período, com a expansão das cidades, a favelização etc.”, afirma. “E esquecemos da água, até que ela ficou escassa.”

(Arte/Exame)

Hoje, diz o presidente da Sabesp, a água é um recurso escasso, e é fundamental que todos os elos da cadeia estejam conscientes disso. Por elos da cadeia, entenda-se basicamente todas as empresas, governo, sociedade e qualquer stakeholder que dependam da água para viver, ou seja, tudo no planeta. A partir dessa constatação, Salcedo determina a grande meta da companhia, responsável por levar água a mais de 28 milhões de pessoas em 375 municípios. “O importante é o resultado para a sociedade, o que independe da estrutura de controle”, afirma. 

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, se elegeu com uma plataforma econômica liberal, prometendo eficiência e um governo enxuto. Sua ascensão política aconteceu a partir de seu trabalho no Ministério da Infraestrutura do governo de Jair Bolsonaro, elogiado por diversas instâncias do setor privado pela celeridade com que conduziu obras e concessões.

Com esse background, era de esperar certa pressão por privatizações, especialmente de uma companhia de economia mista em um setor aquecido, como a Sabesp. “Acredito que é uma operação que pode transcorrer no ano que vem”, afirmou Freitas ao ser questionado sobre o prazo para a privatização da empresa de saneamento, no início de abril. No final de fevereiro, o governador autorizou a contratação de estudos sobre a viabilidade financeira da desestatização.

Operação da Sabesp: para o CEO da empresa, André Salcedo, a companhia pode ser pública ou privada, só não pode negligenciar a qualidade dos serviços para a população (Sabesp/Divulgação)

Salcedo não se preocupa com essa questão. Ao assumir a Sabesp, garante o executivo, recebeu do governador autonomia para gerir a companhia, juntamente com a missão de elevar o nível de eficiência das operações. “Esse é meu papel. A decisão sobre privatizar cabe a quem tem as ações”, diz ele. O que não o impede de opinar sobre o papel do Estado. “O desafio do saneamento é tão grande que demanda uma combinação entre o público e o privado. Em alguns lugares, onde não há viabilidade econômica para o setor privado, o Estado terá de atuar”, explica.

O presidente da Sabesp compara o saneamento a outras infraestruturas básicas, como saúde, segurança e educação, que também demandam grandes investimentos de longo prazo. E sugere ao poder vigente um olhar estruturado para a expansão das cidades, para estabelecer um plano abrangente de segurança hídrica, que direcione os recursos financeiros disponíveis ao que realmente importa: o bem-estar da população.  

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