Produção do KC-390: o avião militar é um dos trunfos no novo ciclo da Embraer (Alexandre Battibugli/Exame)
Da Redação
Publicado em 15 de agosto de 2019 às 05h26.
Última atualização em 15 de agosto de 2019 às 14h14.
Com 50 anos completados em agosto, a Embraer está de mudança. Da Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São José dos Campos, no interior paulista, onde nasceu e ergueu o primeiro complexo manufatureiro, prepara-se para transferir a sede para o bairro Eugênio de Melo, na mesma cidade, a 20 quilômetros de distância. Lá, em meio a galpões industriais e edifícios de treinamento, há um canteiro de obras de 100 milhões de reais. Circundando um espelho d’água, estão erguendo quatro prédios que vão abrigar o novo centro administrativo, de engenharia e tecnologia. Com área para trabalho ao ar livre e decoração colorida e moderna como as de startups, o campus é o símbolo de uma guinada da fabricante brasileira de aviões. Guinada que veio da necessidade, é verdade.
Depois de decidir vender sua divisão mais lucrativa e líder mundial no segmento — a de jatos comerciais de até 150 lugares — à americana Boeing, em meio a um acirramento da concorrência que poderia tirá-la do jogo, a Embraer corre para se reinventar. Além de dar novo impulso às divisões que ficaram de fora da parceria — a de jatos executivos e a de defesa —, está aumentando a aposta na prestação de assistência técnica a aeronaves e em negócios disruptivos, que vão de satélites e carros voadores a aplicativos que conectam fornecedores às companhias aéreas. Nas últimas semanas, EXAME entrevistou duas dezenas de executivos, funcionários, investidores e especialistas e visitou as três fábricas paulistas e algumas das subsidiárias que permanecerão com a Embraer para contar como será o futuro da companhia.
Na transação com a Boeing, a divisão de jatos comerciais — englobando o complexo da Faria Lima, o centro logístico de Taubaté, a subsidiária de equipamentos Eleb e a fábrica de peças em Évora, Portugal — vai ser transferida para uma sociedade chamada Boeing Brasil-Commercial, na qual a americana terá 80% de participação e a Embraer 20%. Outra sociedade será estabelecida para a comercialização do cargueiro militar KC-390, lançado neste ano, com participação de 51% da brasileira e 49% da Boeing. Em 2018, a divisão de jatos comerciais teve receita de 8,7 bilhões de reais e as demais de 10 bilhões (o primeiro KC-390 será entregue até o fim deste ano). A Boeing vai pagar 4,2 bilhões de dólares por 80% da operação de jatos comerciais. Excluindo impostos, a dívida de 4,3 bilhões de reais da Embraer que a americana vai assumir e 1,6 bilhão de dólares em dividendos extraordinários que serão pagos aos acionistas, sobrará 1 bilhão de dólares em caixa para ajudar a financiar os novos projetos. A expectativa do mercado financeiro é que, em cinco anos, a Embraer que ficou de fora da transação esteja faturando cerca de 16 bilhões de reais (em 2018, a empresa inteira faturou 19 bilhões). “Fizemos o necessário para garantir a perpetuação da Embraer, unindo forças com a maior do mundo”, afirma Nelson Salgado, diretor financeiro da empresa.
A venda para a Boeing e o novo começo têm sido tratados internamente como o início do terceiro ciclo da Embraer. A companhia foi criada pelo Ministério da Aeronáutica, em 1969, para transformar o projeto do avião turboélice Bandeirante em realidade. A missão foi confiada ao então major da Força Aérea Brasileira Ozires Silva, que permaneceu como presidente da empresa até 1986. Nos primeiros 20 anos, a Embraer produziu também turboélices para uso executivo e para a aviação comercial regional. Comprou a linha de aeronaves agrícolas Ipanema de uma rival menor. A maior parte de seu quadro de engenheiros vinha do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), uma universidade pública criada em 1950 pelo ministério, com a qual a fabricante foi instalada no terreno da Faria Lima. Esse foi o primeiro ciclo da Embraer.
Durante a forte recessão que o país sofreu no início da década de 90, a Embraer quase quebrou. Ozires Silva foi chamado de volta e comandou a privatização em 1994. Os investidores que colocaram dinheiro na companhia acreditaram nas perspectivas de um novo modelo que estava sendo gestado e se tornou a grande esperança para recolocar a Embraer no rumo certo: o ERJ-145 (Embraer Regional Jet), um bimotor a jato. Foi um sucesso. No início dos anos 2000, com um novo programa de jatos comerciais de médio porte, os E-Jets, e o lançamento de três famílias de aviões executivos (Legacy, Phenom e Lineage), a Embraer tornou-se a terceira maior fabricante do mundo, atrás apenas da Boeing e da francesa Airbus — no ano passado, entregou 181 jatos. A fabricante brasileira também ultrapassou a principal concorrente no segmento de aviões médios, a canadense Bombardier. Nos últimos dez anos, a receita da Embraer cresceu 59%, para quase 19 bilhões de reais. No entanto, uma série de mudanças no mercado global de aviação fez a empresa estudar uma guinada estratégica que marcaria o fim do segundo ciclo.
QUEM SALVA QUEM?
Uma parceria com a Boeing era discutida nos corredores da Embraer havia anos, de olho numa concentração crescente do mercado. Diversas empresas foram saindo do jogo, como a holandesa Fokker, que faliu em 1996. Na aviação comercial, a competição passou a se resumir a Embraer e Bombardier no segmento de jatos médios (de 50 a 150 lugares) e a Boeing e Airbus no de grandes aviões (com mais de 150 lugares). Entretanto, cada vez mais a Boeing e a Airbus convenciam as companhias aéreas regionais a comprar seus modelos menores, apelando para os sonhos de crescimento dessas empresas. Em outubro de 2017, a Airbus anunciou a compra por 1 dólar da linha C Series de aviões de médio porte da Bombardier, que estava na corda bamba com a competição crescente. A Embraer, com margem em queda, não viu saída a não ser unir forças com a Boeing, com a qual mantinha parcerias comerciais havia muitos anos. “Era uma oportunidade que a Embraer não podia perder. A Boeing reconheceu a qualidade da engenharia aeronáutica brasileira”, diz Ozires Silva.
Enquanto um acordo era costurado, a Boeing desceu ao inferno das fabricantes de avião. Dois exemplares de um lançamento, o 737 Max, caíram na Indonésia e na Etiópia, matando todos os 346 passageiros a bordo. O regulador americano do setor proibiu a aeronave de voar. No total, 387 unidades do modelo estão recolhidas esperando conserto, incluindo sete da brasileira Gol. Neste mês, a Boeing começou a fazer testes com os aviões que tiveram o sistema de comando reparado, e espera até o fim do ano conseguir a liberação para o modelo voltar a voar. Enquanto isso, sangra. De abril a junho, teve prejuízo de quase 3 bilhões de dólares, o pior trimestral em 103 anos de história.
Se era inevitável, o negócio com a Boeing exigiu uma costura difícil. Preocupações com a área de defesa atrasaram a aprovação por parte do governo federal, que mantém o poder de veto de algumas transações da Embraer. Depois de ajustes para excluir completamente a divisão militar, o acordo foi autorizado em janeiro pelo presidente Jair Bolsonaro. Em fevereiro, os acionistas da brasileira — os maiores são os fundos americanos Brandes e Mondrian e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social — aprovaram a venda com uma votação de 97%.
Os descontentes entraram na Justiça contra o negócio, mas o processo foi extinto. “Querem destruir a Embraer para salvar a Boeing, com a bênção do governo. Querem manter o Brasil como colônia econômica”, diz Aurélio Valporto, presidente da Associação Brasileira de Investidores, autora do processo contra o negócio. Agora falta apenas a aprovação dos órgãos reguladores no Brasil e nos Estados Unidos. A expectativa é que no começo de 2020 todos os trâmites estejam concluídos. Enquanto isso, a nova Embraer não pode nascer. Mas, como a aprovação é dada como certa por especialistas, já está a 100 por hora.
O engenheiro Francisco Gomes Neto deixou a presidência da fabricante de ônibus gaúcha Marcopolo em abril para assumir o mesmo cargo na Embraer que fica (por enquanto, ele segue respondendo também pelo braço comercial, que será repassado à Boeing). Na nova estrutura, fábricas da Embraer continuarão fornecendo partes à Boeing Brasil-Commercial, e as duas empresas também podem comprar conjuntamente insumos. A Boeing comprometeu-se a manter a fábrica de São José dos Campos e os empregos. Os 18.000 funcionários serão divididos meio a meio, com uma preocupação de equilibrar nos dois lados as mesmas capacidades de engenharia para criar projetos. “A parceria foi feita para combinar o melhor das duas empresas”, diz Donna Hrinak, presidente da Boeing para a América Latina (leia entrevista abaixo).
VIDA APÓS A VENDA
O calendário tende a jogar a favor da nova empresa. A Embraer começa seu terceiro ciclo com lançamentos nas divisões de aeronaves executiva e militar. São projetos que nos últimos anos consumiram investimentos, contribuindo para o declínio das margens de lucro, mas agora tendem a engordar o faturamento. O esperado aumento das vendas e o envelhecimento dos aviões em operação devem acelerar a expansão da área de assistência técnica, um negócio que respondeu por 20% da receita no ano passado. Com 80 centros de serviços próprios ou autorizados no mundo, a Embraer oferece reparos de aviões de qualquer tipo e marca. “Frequentemente vista como um mal necessário, a obrigação de dar assistência para o comprador é uma vantagem competitiva para nós. Percebemos que a satisfação do cliente vem com o pós-venda”, afirma Johann Bordais, diretor de serviços e suporte, que ficará no cargo na nova Embraer após a conclusão do negócio.
Na aviação executiva, a grande novidade é o jato Praetor, lançado no fim do ano passado em duas versões. A maior comporta até 12 passageiros e tem alcance intercontinental de 7 223 quilômetros, o suficiente para ligar Nova York a Londres. Custa 21 milhões de dólares. Considerando todos os modelos, a Embraer entregou 36 aeronaves executivas no primeiro semestre de 2019, ante 31 no mesmo período de 2018. Prevê entregar de 90 a 110 neste ano, um aumento anual de até 21%. A estratégia de venda também mudou para mirar o aumento das margens em vez da ampliação da participação de mercado, atualmente em 13% das aeronaves de aviação executiva entregues no mundo. Na reestruturação das operações, parte da linha de montagem desses jatos está sendo transferida de São José dos Campos para a fábrica da cidade paulista de Gavião Peixoto, onde já são montados os aviões militares, incluindo os caças Gripen, parceria com a sueca Saab. Nessa fábrica, até os robôs da linha de montagem são projetados pela Embraer. O cargueiro militar KC-390 vai ter o primeiro de 28 exemplares entregues à Força Aérea Brasileira em 2019, depois de 12 anos de desenvolvimento e 4,5 bilhões de reais de investimentos por parte da Aeronáutica.
A Embraer espera ampliar o mercado a partir de agora com a influência da Boeing nas nações aliadas dos Estados Unidos. Portugal já anunciou que comprará cinco KC-390 por 3,4 bilhões de reais. Com a aquisição, anunciada em julho, o país pode inspirar outros membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte a reforçar sua frota militar com o cargueiro brasileiro. O aumento das tensões geopolíticas deve impulsionar a demanda também pelo Super Tucano, avião desenhado para missões de ataque leve e contrainsurgência. É um nicho de mercado que deve ficar mais concorrido — e politizado — com a China e a Rússia buscando aumentar sua área de influência.
Um trunfo da Embraer tende a ser uma venda combinada com seu sistema de radares e monitoramento de fronteiras, a exemplo do Sisfron, implementado por sua subsidiária Savis no Brasil. Aproveitando a experiência no segmento de sistemas de comando e controle para veículos de guerra aéreos e terrestres, a Embraer vai desenvolver e integrar os programas operacionais das corvetas Tamandaré, da Marinha do Brasil. A fabricante de aviões faz parte do consórcio que venceu em março a licitação para a construção de quatro navios, por um preço total de 1,6 bilhão de dólares. “A Embraer vai sair mais forte e mais ágil desse processo de redesenho de operações, ampliando a atuação em segmentos que já existiam e abraçando novas áreas”, diz Jackson Schneider, diretor da divisão de defesa.
Para além da segurança, a nova Embraer deve investir pesadamente em negócios ligados a cidades inteligentes e internet das coisas. “Enxergamos avenidas interessantes de crescimento para a Embraer nos próximos anos. Mesmo com a parceria, a empresa continua tendo condições de desenvolver tecnologias no Brasil”, diz Victor Mizusaki, analista do banco de investimentos Bradesco BBI. A companhia anunciou em maio um acordo com a fabricante de motores WEG para desenvolver uma versão do Ipanema, avião agrícola com propulsão elétrica. O primeiro protótipo deverá decolar em 2020. Em junho, a subsidiária de mobilidade urbana EmbraerX apresentou, junto com a empresa de transporte compartilhado americana Uber, o eVTOL (veículo de decolagem e aterrissagem vertical, na sigla em inglês), que pode ganhar os ares das cidades em cinco anos como uma espécie de carro voador. Para controlar essa nova modalidade de tráfego aéreo, outra subsidiária da Embraer, a Atech, está desenvolvendo um sistema de monitoramento com base em seus programas que já gerenciam o trânsito de aviões convencionais civis e militares no Brasil.
Muitos dos programas criados com objetivo militar estão sendo adaptados para uso civil, abrindo novas frentes de negócio para a empresa. Os que monitoram e conectam veículos podem servir às empresas que gerem frotas. Ou para fazer os aparelhos eletrônicos de uma casa se comunicar. É a chamada internet das coisas. As tecnologias de monitoramento podem ter uso na segurança pública. A subsidiária Visiona, uma parceria com a Telebras que já desenvolveu um satélite de defesa e comunicações brasileiro lançado em 2017, agora trabalha para colocar em órbita no início do ano que vem o primeiro de pelo menos nove nanossatélites. Com câmeras voltadas para o Brasil, eles vão coletar dados para agricultura e monitoramento de barragens. É a senha para embarcar no promissor mercado espacial, que reúne empresas como a Space-X, do americano Elon Musk, dono da montadora Tesla.
“A Embraer se orgulha de viver grandes desafios desde o começo”, diz Carlos Alberto Griner, diretor de recursos humanos e sustentabilidade. Em seu novo ciclo, a empresa deve encarar a concorrência de chineses e russos na área militar, de israelenses e americanos em monitoramento e transporte. Lidará, ainda, com as incertezas da guerra comercial e com os problemas da nova parceira, a Boeing. Desde o anúncio do negócio com a americana, o valor de mercado da Embraer está praticamente estável, na casa dos 3,6 bilhões de dólares. A nova Embraer nasce com o benefício da dúvida por parte dos investidores. Agora é mostrar que, apesar de ter perdido 50% da receita, a Embraer que fica é a empresa certa, na hora certa.
Para Donna Hrinak, ex-embaixadora dos Estados Unidos no Brasil e executiva da Boeing, há ganhos em economia e segurança
A negociação da parceria entre a Boeing e a Embraer, que envolve interesses comerciais e de defesa do Brasil e dos Estados Unidos, foi tarefa para diplomata. Donna Hrinak, embaixadora americana no Brasil de 2000 a 2004 e presidente da Boeing para a América Latina desde 2011, considera essa a sua mais importante missão. A executiva falou a EXAME de seu escritório em Miami.
Quando a Boeing percebeu que se unir à Embraer faria sentido?
Foi como o amor. Não um amor à primeira vista, mas que foi crescendo aos poucos. Estabelecemos diversas parcerias e pudemos nos conhecer melhor ao longo do tempo. O mercado está mudando muito, novos concorrentes estão despontando, como a China. Sentimos que tomamos uma decisão importante para nosso futuro.
O que a Embraer agrega à Boeing?
A Embraer tem uma engenharia fantástica, capaz de desenvolver alguns produtos mais rapidamente. Pelo tamanho menor, ela consegue ser mais eficiente. Queremos aprender com essas capacidades.
Existe também a vantagem de os custos de produção serem mais baixos no Brasil? Os salários dos engenheiros são menores?
Eu imagino que sim, mas não é uma questão de salário, e sim de competência. Os engenheiros do ITA competem em igualdade com os engenheiros do Massachusetts Institute of Technology. Aliás, na Boeing, trabalha uma engenheira de Recife que foi estudar no MIT porque, antigamente, o ITA não aceitava mulheres. Que bom que o mundo mudou. Hoje temos mulheres em postos de comando nas duas empresas.
Qual vai ser a estratégia da Boeing para vender os jatos comerciais de médio porte da Embraer?
Os jatos regionais podem ser uma porta de entrada para as companhias aéreas de baixo custo, que estão crescendo no mundo todo. A Boeing Brasil-Commercial vai ser um centro de excelência para o desenvolvimento dos aviões de médio porte.
A estratégia de vendas do KC-390 vai seguir as diretrizes militares dos Estados Unidos?
Nos últimos anos, a relação das -áreas de defesa e segurança do Brasil e dos Estados Unidos tem se fortalecido muito, com os dois países discutindo como podem colaborar. Com o avião KC-390 essa relação fica mais forte.
Pessoalmente para a senhora, o que essa parceria significa?
Fui ao Brasil pela primeira vez em 1984, ainda durante o regime militar. Tenho 30 anos de trabalho tentando fortalecer a relação entre o Brasil e os Estados Unidos. A combinação entre as duas empresas é minha missão mais importante, considerando tanto a segurança quanto a economia dos dois países.