Ela pede, ele faz?: a percepção de falta de autonomia do Banco Central dificulta a gestão da economia (André Dusek/Estadão Conteúdo)
Da Redação
Publicado em 1 de fevereiro de 2016 às 09h36.
São Paulo — Poucos foram os ministros a esquentar a cadeira desde que Dilma Rousseff assumiu o governo em 2011. A presidente já trocou seguidas vezes os principais nomes da equipe: está em seu terceiro ministro da Fazenda, no quarto da Casa Civil e no quinto da Educação. Uma figura-chave a escapar dessa inconstância é Alexandre Tombini, presidente do Banco Central.
Discreto e reservado, Tombini construiu uma relação próxima com Dilma, incluindo desde o início do governo o atendimento a chamados de última hora ao Palácio do Planalto. Ainda assim, ele sempre tentou manter uma distância calculada em relação à Presidência, resguardando uma suposta autonomia do Banco Central. Nos últimos dias, ficou mais difícil sustentar essa aparência.
Desde que o Comitê de Política Monetária anunciou, na reunião de 20 de janeiro, que a taxa básica de juro, a Selic, permaneceria em 14,25% ao ano, a reputação do BC foi abalada. Na leitura feita pela maioria dos investidores e analistas, certo ou errado, a Selic ficou onde estava porque Dilma quis.
Tombini, que havia se reunido com a presidente dois dias antes da decisão, usou a recente revisão dos prognósticos para o Brasil, feita pelo Fundo Monetário Internacional (de uma recessão de -1% em 2016 para um tombo de -3,5% ), para justificar por que o BC resolveu contrariar subitamente suas indicações anteriores de um aumento de juros para tentar controlar a inflação.
Se tudo foi feito a propósito de melhorar o cenário da economia brasileira, o resultado, infelizmente, pode ser o contrário. Mais inflação, mais juros e mais endividamento público é o que se pode esperar. No campo da inflação, após o índice ter fechado o ano em 10,7% — o pior número desde 2002 —, a promessa de alcançar a meta de 4,5% em 2017 ficou mais difícil.
Já é dado como certo que, neste ano, a taxa de evolução dos preços vai superar novamente o teto da meta, de 6,5%. No caso dos juros, mesmo com a Selic contida, a resposta imediata dos investidores em títulos do governo foi pedir mais para o financiamento da dívida pública. Não é de hoje que as escolhas feitas pelo Planalto e pelo BC têm se conjugado de uma maneira explosiva para as contas do governo.
De acordo com a consultoria RC, de 31 dezembro de 2013 até o final de 2015 a dívida bruta da União cresceu 12 pontos percentuais, para 61% do produto interno bruto. Somando o que devem estados e municípios, a conta sobe para 65% do PIB, algo como 3,8 trilhões de reais. E a situação deverá piorar: até 2018, poderá passar de 82% do PIB.
Segundo a agência de classificação de risco Fitch, os países comparáveis ao Brasil em média têm dívida de 44% do PIB. “A piora brasileira tem sido muito rápida, com o endividamento caminhando para o maior patamar da história recente do país”, afirma Shelly Shetty, chefe de ratings soberanos para a América Latina da Fitch.
O governo gastou demais, as contas públicas se deterioraram e a economia do país está encolhendo. Desde 2011, as despesas da administração federal aumentaram 46%, enquanto as receitas subiram 27%. O governo Dilma também passou do superávit primário nas contas públicas para um déficit.
Em 2015, pelo segundo ano consecutivo, o esforço fiscal acordado não foi cumprido: em vez de uma economia de 1,2% do PIB, o que se concretizou foi um déficit de 0,9%. Isso acabou favorecendo a alta da inflação e, por consequência, da conta de juros para tentar segurar os preços.
A estratégia ainda não surtiu efeito nos índices de inflação — provavelmente porque o Planalto não fez sua parte —, mas elevou consideravelmente o custo da dívida. Em 2015, o governo arcou com uma conta de 503 bilhões de reais no pagamento de juros — isso equivale a dez vezes o investimento público em infraestrutura.
Em 2016, a estimativa para o custo da dívida é de 620 bilhões de reais. São números que evidenciam uma política econômica errática — e sem coerência interna. Com sua conta salgada de juros, o Brasil consegue rivalizar com nações à beira de um colapso.
Num grupo de 40 países acompanhados pela gestora Infinity, o Brasil tem o maior juro real — acima de economias extremamente endividadas como Itália e Grécia, que passam por uma profunda crise e tiveram de recorrer a ajuda.
“No Brasil, os investidores exigem um retorno maior devido ao histórico de calote e às regras que mudam o tempo todo”, diz o economista Mansueto Almeida, especialista em finanças públicas. “Além disso, há muito crédito subsidiado e a inflação cresce de forma inercial, o que exige uma política monetária mais restritiva.”
O perfil da dívida também contribui. Quatro em dez papéis no mercado estão sujeitos a alterações no juro básico, enquanto o restante varia conforme o câmbio ou a inflação. Cada alta de um ponto no juro básico causa um gasto adicional com a dívida de cerca de 20 bilhões de reais ao ano.
Em tese, a manutenção da taxa Selic poderia significar um alívio, ainda que momentâneo, na conta de juros. Mas, após os sinais de que o BC está cedendo às pressões do Planalto e da base esquerdista do governo, os investidores passaram a comprar títulos de prazo mais curto e pedem agora um retorno maior para os papéis com vencimento mais distante.
Num leilão realizado em 21 de janeiro, um dia após a divulgação da nova taxa de juro, dois terços dos títulos vendidos pelo Tesouro tinham prazo de até um ano ou eram pós-fixados. Quando os investidores buscam por papéis que vencem logo ou que variam conforme a Selic, estão sinalizando menos confiança de que o governo conseguirá conter a expansão da dívida.
No final das contas, o BC criou uma armadilha para si mesmo. Segundo o banco de investimento americano Brown Brothers Harriman, o BC terá de elevar o juro em breve para reduzir os danos à sua credibilidade — e assim causará mais recessão. As atuações do Banco Central para manter as reservas cambiais, hoje de 360 bilhões de dólares, e tentar frear a desvalorização do real também alimentam a dívida.
Quando o BC compra dólares, é obrigado a emitir títulos públicos para não causar inflação. Ao final de 2015, a carteira de títulos do BC no mercado era de 924 bilhões de reais — um volume que quase triplicou em quatro anos. A maioria desses títulos vence em três meses. “O problema da dívida, então, é maior do que parece”, diz o economista Marcos Mendes, consultor legislativo do Senado.
Procurado, o Ministério da Fazenda respondeu em nota que os riscos das operações são monitorados frequentemente. Vários estudos internacionais indicam o patamar de dívida que compromete o crescimento dos países. Artigos recentes do FMI relatam que o sinal amarelo acende quando a dívida ultrapassa 50% do PIB e sobe rapidamente — foi o que ocorreu com o Brasil nos últimos dois anos.
Os economistas concordam cada vez mais que é a trajetória que faz a diferença. Isso porque, quanto mais a dívida cresce, mais difícil fica trazê-la para patamares saudáveis. A dinâmica é a de uma bola de neve. Segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas, o esforço fiscal requerido do Brasil em 2014 para manter a dívida estável era da ordem de 2,5% do PIB.
O que houve na realidade foi um déficit de 0,6%. Isso, junto com a carga pesada dos juros, aumentou o tamanho da dívida e elevou automaticamente a necessidade de poupar que deveria ser feita no ano seguinte. Como o governo repetiu o déficit em 2015, a bola cresceu mais um pouco, exigindo uma economia ainda maior.
Na estimativa da FGV, para conseguir, em 2016, que a dívida mantenha o nível de 2015, o esforço fiscal deverá ser de 7,2% — obviamente uma tarefa impossível. Como resolver a questão? Uma boa estratégia é olhar o que fizeram países que também enfrentaram uma trajetória explosiva da dívida com ajuste fiscal e mudanças estruturais.
O Canadá fez reformas na década de 90 que permitiram uma queda de 30 pontos na dívida em apenas uma década — de 100% do PIB em 1995 para 71% em 2005. O governo eliminou 50 000 empregos públicos e cortou seus gastos em 10%. Agora o país se vê às voltas com essa discussão novamente, o que mostra que é preciso sempre estar vigilante.
No final dos anos 2000, foi a vez da Alemanha e dos Estados Unidos passarem por ajustes. Os governos abriram os cofres após a crise de 2008 e depois tiveram de fazer um esforço de recuperação. Nesses casos, foram adotadas medidas mais rigorosas de controle do orçamento público. O governo da chanceler alemã Angela Merkel colocou um limite para o déficit fiscal em 0,35% do PIB.
Os americanos, que já estavam no teto estipulado para a dívida, da ordem de 14 trilhões de dólares, aprovaram um projeto ambicioso para que ela caia em 2,1 trilhões de dólares até 2021. Caso isso não aconteça, o governo será proibido de gastar e algumas despesas serão cortadas automaticamente, como ocorreu em 2013. Há quem duvide que o plano será cumprido.
“O envelhecimento da população americana deverá voltar a pressionar a dívida, mas como sempre os políticos estão focados no curto prazo”, diz o economista Jeffrey Frankel, professor da Universidade Harvard. No Brasil, a Constituição prevê um valor máximo para a dívida pública. A cada ano, o Orçamento da União apresenta uma previsão — para 2016, o valor poderá ir até 3,3 trilhões de reais.
No ano passado, o senador José Serra apresentou uma proposta para a dívida bruta cair dos atuais 5,8 para quatro vezes a receita corrente líquida em 15 anos — o projeto está parado no Congresso.
“Se o governo adotar medidas para limitar a dívida, indicaria que ela pode ser estabilizada, mesmo que no longo prazo”, diz o economista José Roberto Afonso, da FGV. “Mas é preciso vontade política e capacidade técnica para conseguir isso.” Na gestão Dilma Rousseff, parecem faltar as duas coisas.