Há uma enorme discussão sobre os impactos da guerra na transição energética. Para o CEO global da fabricante de caminhões Scania, todos os países vão examinar suas dependências energéticas e, no longo prazo, a eletrificação nos transportes será caminho sem volta (Leandro Fonseca/Exame)
Rodrigo Caetano
Publicado em 19 de maio de 2022 às 05h59.
O sueco Christian Levin foi anunciado como novo CEO global da Scania, fabricante de caminhões, em fevereiro do ano passado. Dias depois, a segunda onda da pandemia provocaria uma nova onda de lockdowns. Em fevereiro deste ano, já empossado, estourou a guerra na Ucrânia, que provocou uma crise sem precedentes no setor de energia. Pode não parecer o cenário ideal para assumir uma função estratégica em uma das indústrias mais globalizadas do planeta, mas Levin se considera um otimista.
Seu maior desafio não mudou com os entreveros. Ele segue perseguindo a eletrificação do setor de logística, incluindo o transporte de longa distância por caminhões pesados. Na Europa, essa realidade está próxima, graças a investimentos da indústria na construção da infraestrutura de recarga. No resto do mundo, diz o executivo, os biocombustíveis desempenharão um papel importante nessa transição, que deverá culminar, em algumas dezenas de anos, na robotização dos caminhões. Quando esse tempo chegar, talvez o cliente da Scania seja diferente do atual, assim como o modelo de negócios. Já o Brasil deverá ganhar importância com a regionalização das cadeias de suprimentos. Levin conversou com a EXAME no escritório da fábrica da companhia no ABC paulista.
O senhor assumiu o cargo durante a pandemia e tendo de enfrentar, logo em seguida, uma guerra na Europa. Tempos difíceis?
Tempos difíceis para nós, como companhia, e para o mundo. Mas há muitas oportunidades.
A transição para uma matriz energética limpa, apesar da pandemia e da guerra na Ucrânia, parece que não vai parar. Como a Scania encara esse processo?
Há uma enorme discussão sobre os impactos da guerra na transição energética. Provavelmente, o Ocidente tentará reduzir a dependência do gás russo mais rapidamente. Por outro lado, há dependência de metais e outras matérias-primas oriundas da mesma região. Eu estou no campo dos otimistas. O que vai acontecer será todos os países examinarem suas dependências energéticas. Nos transportes, no longo prazo, haverá a eletrificação. No curto prazo, teremos de usar motores a combustão e biocombustíveis, como etanol, biodiesel e biometano. Para muitos países, esse será o caminho.
Há também uma tendência de tornar as cadeias logísticas mais locais e menos globais. Como isso afeta o mercado de transportes?
A indústria automotiva é a mais global que eu conheço. Essa era a maneira de ser mais eficiente e de aumentar a qualidade. Aprendemos com a pandemia, no entanto, que as vulnerabilidades são maiores do que os ganhos. Não penso que devemos ser completamente locais, mas definitivamente mais regionais. A dificuldade é manter a qualidade dos componentes usados nos caminhões. A conclusão a que chegamos é de que nossos fornecedores terão de nos seguir.
A fábrica da Scania no Brasil é a segunda maior do grupo, atrás apenas da Suécia. Isso significa mais investimentos e empregos por aqui?
Brasil e Argentina serão os polos de produção para a América Latina. Estamos na segunda fase do nosso plano de investimentos para o país, que prevê o dispêndio de 1,4 bilhão de dólares. Essa nova ordem é uma boa notícia para o Brasil.
Nessa tendência de regionalização, ainda há espaço para produtos globais?
Acreditamos que há, sim, espaço para produtos globais. Não pensamos em ter produtos novos para alguns mercados e antigos para outros. Porém, não é possível desenvolver os veículos em todos os mercados ao mesmo tempo. Precisamos de um ambiente controlado. Por isso lançamos primeiro na Europa e depois na América Latina, com um intervalo de seis ou nove meses. De qualquer forma, a plataforma é a mesma, e é possível usar uma cabine produzida no Brasil em um caminhão feito na Suécia.
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Olhando para esse desenvolvimento de produtos, como será o caminhão do futuro?
O futuro será o caminhão elétrico a bateria, inclusive os pesados. Na Europa estamos fabricando veículos de dois e de três eixos de até 28 toneladas. A autonomia está em 240 quilômetros, o que possibilita cerca de 4 horas e meia de viagem, em linha com as regras de descanso para os caminhoneiros. Isso significa que há entre 700 e 800 quilowatts-hora de energia disponível nas baterias, volume que pode ser carregado em 45 minutos, exatamente o tempo de descanso obrigatório dos motoristas. Nos Estados Unidos é um pouco mais difícil, uma vez que a legislação permite 6 horas de viagem com 30 minutos de descanso. Mas, no fim das contas, o que conta para essa transição é o custo total de operação. O elétrico precisa ser mais barato. Isso vai acontecer com incentivos ou com a taxação do carbono.
A questão é que o Brasil é muito maior do que a Europa. A frota brasileira também é muito mais antiga do que a europeia. Há outra solução na mesa?
O hidrogênio é uma solução interessante. O peso é menor do que o das baterias e o tempo de carregamento é rápido. Porém, há uma enorme desvantagem, que muita gente não sabe: no processo de gerar eletricidade a partir do hidrogênio e transformá-la em energia cinética para as rodas, há uma perda de eficiência de 75%. Num motor a combustão moderno, esse valor é de 50%; e nas baterias, perto de 20%. Com esse nível de perda, a energia precisaria ser gratuita, já que é preciso muita energia para produzir hidrogênio. Minha visão é que outras indústrias vão se beneficiar mais dessa solução do que a de transportes. Então, voltamos aos motores a combustão, nos quais é possível queimar diversos tipos de combustíveis.
A alternativa seriam os biocombustíveis?
Temos problemas com muitos políticos quando dizemos que o uso de biocombustíveis daria uma boa transição. Eles pensam que estamos fazendo lobby contra a eletrificação. Não é verdade. Investimos mais da metade do nosso orçamento de pesquisa e desenvolvimento nos elétricos, porém acabamos de lançar o motor a combustão mais eficiente da história. Para os lugares onde a energia não está totalmente disponível, acredito que os biocombustíveis sejam a única solução. Não a ideal, pois eles ainda emitem carbono, mas é a segunda melhor alternativa. Na Suécia, 40% de nossos clientes já rodam com diferentes biocombustíveis, e a eletrificação está avançando.
Em relação à infraestrutura de recarga, ou seja, à rede elétrica necessária para viabilizar viagens de longa distância, qual é a dificuldade de implantação? Não dá para instalar pontos de recarga em postos de gasolina, por exemplo?
É uma boa pergunta. É necessário um cabo de energia grosso o suficiente parguentar a carga. Em nossa cabeça, basta instalar esse cabo; porém, também precisamos de autorização dos donos dos imóveis por onde ele vai passar, de licenças ambientais, já que será necessário cavar para enterrá-lo etc. No Porto de Gotemburgo, o maior da Suécia, falta 1,4 quilômetro de cabos para eletrificar e permitir que nossos caminhões recarreguem as baterias. Em nossa sociedade, isso levará dez anos. Quando eu converso com nossos líderes políticos, eles dizem que estão trabalhando. Mas precisam aumentar a velocidade.
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Não é o caso de a própria indústria automotiva assumir essa tarefa?
Fizemos uma série de joint ventures, com a Volvo inclusive, para eletrificar a Europa. Serão instalados mais de 2.000 pontos de recarga. Há muitos stakeholders interessados nisso, como empresas de energia e fundos de pensão. Quando a tecnologia muda, os modelos de negócios são desafiados.
Se a Scania provê o caminhão e a energia, por que não oferecer o serviço logístico completo?
Não vendemos mais hardware sem serviços. Oferecemos financiamento, manutenção, treinamento, sempre com o viés de reduzir o custo total de operação. O próximo passo pode ser o carregamento. Em relação à logística, se considerarmos que, no futuro, talvez os caminhões sejam robotizados, operados por máquinas, podemos pensar que nosso cliente mudará do transportador para o cliente do transportador. Seremos parte desse sistema, mas isso levará muitos anos.