Salman Khan: "O professor do futuro será como um treinador: ele vai ajudar o estudante a alcançar a meta traçada" (Divulgação)
Da Redação
Publicado em 22 de setembro de 2015 às 05h56.
São Paulo — O americano Salman Khan, de 38 anos, é hoje a figura mais influente do mundo em tecnologia da educação. Ex-analista de fundo de hedge, ele criou, em 2008, a Khan Academy, uma ONG que produz e distribui vídeos educacionais pela internet. Sua plataforma já permitiu mais de 400 milhões de visualizações de aulas — de disciplinas que vão de matemática básica a história da arte.
Entre os fãs da iniciativa estão alguns dos maiores bilionários do mundo: o americano Bill Gates (da empresa de tecnologia Microsoft), o mexicano Carlos Slim (da operadora de telecomunicações América Móvil) e o brasileiro Jorge Paulo Lemann (da cervejaria AB InBev).
Khan, que estudou em algumas das melhores universidades do mundo, como o Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde cursou matemática e ciência da computação, e Harvard, onde fez MBA, defende um novo modelo educacional que valorize mais as habilidades práticas adquiridas pelos estudantes do que o prestígio conferido por um diploma de instituições tradicionais. De seu escritório no Vale do Silício, na Califórnia, Khan falou a EXAME CEO sobre suas ideias inovadoras na área de educação.
EXAME CEO - Como o modelo de educação atual está sendo impactado pela tecnologia?
Salman Khan - Quinhentos anos atrás, para um adolescente se tornar carpinteiro, ele tinha de trabalhar com um carpinteiro por muito tempo e aprender a atividade. E isso valia não apenas para carpinteiros e ferreiros mas também para médicos e advogados. Durante a maior parte da história, a educação se deu nesse modelo de mestre e aprendiz.
Poucas pessoas tinham acesso ao estudo acadêmico. Os que tinham estudavam com a ajuda de tutores. Era muito personalizado: os tutores sentavam com o aluno, o desafiavam, discutiam filosofia com ele, debatiam... E esse ainda é o padrão de excelência. Estudos recentes mostram que estudar com um instrutor, um a um, melhora dramaticamente o desempenho dos alunos.
Ocorre que, no fim do século 18 e no início do século 19, os países em industrialização decidiram educar a todos. Mas não havia tutores suficientes e também não seria possível pagar por isso. Então, esses países criaram o modelo em que muitos de nós crescemos: vamos para a classe, que tem 30, 40 alunos. Fazemos a lição de casa e provas. Mesmo que não tenha aprendido tudo, você recebe uma nota e é empurrado para a frente.
Em certo ponto, os estudantes começam a ser separados: os considerados mais inteligentes vão se tornar advogados, médicos, engenheiros. Já para os outros, talvez a universidade não seja o ideal. Tudo isso porque o método usado para a difusão da informação nos últimos 200 anos é a aula. Todos precisam aprender ao mesmo tempo para reduzir custos.
Mas, no mundo de hoje, com cursos online, você pode voltar a ter instruções personalizadas. As pessoas podem aprender no próprio ritmo. Se estiverem perdidas, podem ir para um nível mais básico. Se encontrarem alguma lacuna no aprendizado, podem preenchê-la.
O software pode dizer: “Você teve problemas com esse exercício. Por que não vê esse vídeo agora?” Isso libera tempo na sala de aula para maior interação, com os alunos ajudando uns aos outros e diálogos individuais com os professores. A tecnologia é o facilitador de tudo isso para tornar a aula mais humana e interativa.
EXAME CEO - Em sua opinião, como serão a escola e o professor do futuro?
Salman Khan - Acho que os alunos vão aprender em seu ritmo individual, utilizando ferramentas como as da Khan Academy. A aula vai ser mais interativa, os alunos farão mais perguntas, terão projetos, participarão de debates e workshops para aprender a escrever e a programar computadores.
Eles vão receber feedback uns dos outros. Vão construir seus portfólios para provar suas habilidades de forma concreta. As avaliações serão rigorosas. Serão não somente questões de múltipla escolha mas também exame oral e projetos para criar algo.
O papel do professor será mais importante ainda. Atualmente é ele quem dissemina informação, dá as aulas e as notas. No futuro, ele vai ser cada vez mais o mentor, o guia. Será como um treinador esportivo: o estudante tem uma meta e o professor o ajuda a chegar lá.
EXAME CEO - Pela sua experiência, que tipos de habilidade estão faltando para os estudantes que entram hoje no mercado de trabalho?
Salman Khan - Uma das principais habilidades que faltam é saber escrever. Isso tem a ver com a forma como essa técnica é ensinada. Claro que gramática é importante, mas escrever é mais do que isso: é uma jornada criativa. Portanto, escrever deveria ser ensinado em workshops, com os estudantes recebendo bastante feedback. É uma habilidade clássica, ainda mais importante hoje em dia.
As pessoas com mais chance de conseguir um emprego são as que sabem se expressar, planejar, escrever documentos e fazer marketing online de si mesmas. Outra habilidade exigida, relacionada a essa, é a comunicação oral, que está praticamente fora do sistema educacional comum. Fomos ensinados a sentar e a ficar quietos.
E uma nova habilidade que eu destacaria é a programação de computadores. Nem todo mundo vai se tornar programador, mas você pode fazer coisas poderosas usando um programa. Em um nível mais abstrato, eu destacaria a habilidade de aprender. Não basta aprender uma habilidade e aplicá-la por 40 anos. Se aparece algo novo, você precisa saber como tirar o conhecimento que está na internet e aplicá-lo sozinho.
EXAME CEO - Cursos online, como os da Khan Academy, auxiliam alunos e professores em vários países. Mas eles podem ir além? Seria possível receber certificados reconhecidos pelo mercado depois de concluir esses cursos?
Salman Khan - Sou um grande fã dos Moocs (massive open online courses, ou “cursos online abertos e massivos”). Nossa missão é promover uma educação de qualidade e de graça para qualquer pessoa em qualquer lugar, e eles também seguem essa missão. No entanto, é diferente do que nós fazemos.
Os Moocs tentam trazer aulas clássicas para o mundo virtual. Isso é bom porque o mundo todo pode ter acesso ao que se passa em universidades como Stanford e Harvard. Mas, se você não puder acompanhar o ritmo do MIT, que pena. Eles continuam mantendo o ritmo, mesmo que você ainda tenha problemas para resolver.
O que tentamos fazer na Khan Academy é desempacotar esse conteúdo para que uma pessoa possa aprender no próprio ritmo. Não nos consideramos um Mooc. Sobre a certificação, acho que isso vai acontecer. Só não sei se nós (da Khan Academy) vamos fazer. Sempre que encontro com um político, digo: “Crie um sistema em seu país em que uma pessoa possa provar que aprendeu”. Se essa certificação for respeitada universalmente, pode ser uma ferramenta poderosa.
EXAME CEO - Mas o senhor vê os políticos de algum país se movendo nessa direção?
Salman Khan - Acho que a indústria vai fazer isso antes. As empresas estão frustradas porque analisam o currículo de alunos de boas universidades e, mesmo assim, não conseguem medir o que o candidato realmente sabe. No Vale do Silício, os candidatos a empregos passam por quatro ou cinco rodadas de entrevista.
Esse processo deveria ser padronizado e feito apenas uma vez. Assim poderíamos saber, por exemplo: “Essa pessoa é de nível 5”. Então, o Google e o Facebook poderiam oferecer um trabalho condizente para uma pessoa “com nível 5”. Hoje, o Google consegue entrevistar uma fração das pessoas que se candidatam.
Eles escolhem os entrevistados por meio de critérios como ter frequentado boas escolas. Mas assim você deixa de fora talvez 99% da população, inclusive pessoas que poderiam ser melhores do que os alunos de Stanford ou de Harvard. Se houvesse uma certificação a que todos tivessem acesso, você poderia medir a capacidade de escrever e programar computadores, por exemplo. A Microsoft e a escola de negócios Insead lançaram uma certificação desse tipo. Acho que veremos muito disso nos próximos dez anos.
EXAME CEO - O diploma universitário ainda é visto como um tíquete para entrar na classe média — ou para ficar nela. Isso vai mudar no futuro?
Salman Khan - Em mercados em desenvolvimento, a universidade é algo para as elites e, para conseguir emprego, é ótimo ter diploma. Mas, nos Estados Unidos, quase todo mundo vai para a universidade. Antes, os alunos com pós-graduação conseguiam os melhores empregos, os com menos educação conseguiam os demais.
Mas, se mais gente vai para a universidade, isso não significa que, de repente, haja mais empregos com altos salários. Os pós-graduados passam a pegar o emprego daqueles com faculdade e os com diploma universitário pegam o emprego de pessoas com ensino médio. Você estuda economia achando que vai trabalhar no Federal Reserve (o banco central americano) e, de repente, tem de trabalhar numa cafeteria. Isso é um grande desperdício de recursos. Você passa quatro anos da vida apenas subsidiando essa indústria. Isso vai mudar.
Nos Estados Unidos, como as universidades são muito caras, as pessoas estão questionando o retorno de seu investimento e começam a surgir caminhos alternativos. No Vale do Silício, por exemplo, há uma escola, a App Academy, que ensina programação de computadores em alto nível por um ano e de graça. É o suficiente para conseguir um emprego no Google ou no Facebook.
Eles encontram um emprego para você e depois retêm 18% de seu primeiro salário anual. E os salários médios dos alunos estão em seis dígitos (por ano). Essa é uma ruptura. A maioria dos alunos são pessoas que já estudaram em universidades como Stanford ou Yale.
Eles gastaram 200 000 dólares em quatro anos, não conseguiram emprego e agora estudam um ano de graça para finalmente trabalhar. Por que não foram imediatamente para essa escola? Acho que isso vai começar a acontecer agora.
EXAME CEO - Então, há um abismo entre o que as universidades ensinam e o que o mercado precisa?
Salman Khan - Sim. No Vale do Silício, as pessoas altamente qualificadas já não precisam mais de diploma. Eu diria para meus filhos: “Ir para a universidade é uma boa experiência. Você vai morar num dormitório, discutir filosofia... mas é um luxo”. Francamente, acho que se aprende mais viajando pelo mundo. Se você quiser ter uma posição profissional com uma contribuição significativa para a sociedade, um diploma pode não ser necessário.
EXAME CEO - Países desenvolvidos enfrentam dificuldades para encontrar profissionais com nível de educação profissionalizante. Como o senhor vê isso?
Salman Khan - É o mercado enviando um forte sinal. Um CEO me disse que soldadores bem qualificados ganham 200 000 dólares por ano nos Estados Unidos. É mais do que um médico. Esses soldadores passam um ano fazendo um curso profissionalizante e depois aprendem com um mestre por alguns anos. Eles já fazem dinheiro enquanto estudam. Encanadores conseguem, facilmente, salários anuais de seis dígitos. O empreiteiro que reformou minha casa ganha muito dinheiro. Ele me disse que falta gente treinada.
EXAME CEO - O senhor acredita que as pessoas estão estudando demais atualmente?
Salman Khan - Como minha mulher é médica, vi o que fizeram com a escola de medicina. Oito anos de educação são desnecessários. E ainda há pessoas com MD-Ph.D. (doutorado para médicos interessados em pesquisa acadêmica), um nível ainda mais avançado. Ninguém retém tanta informação. É apenas um ritual.
Outros países têm um sistema mais racional, com um ano ou dois de academia e treinamento na área. Acho que um ano ou dois de academia, seguidos de trabalho no campo, em quase qualquer área, são o bastante. Não é preciso ficar na escola por 20 anos.
EXAME CEO - Com que idade os jovens poderiam começar a trabalhar?
Salman Khan - O que estou dizendo é audacioso, porque seria necessário reformar o ensino básico e o médio, mas acredito que muitos estudantes no final do ensino fundamental poderiam aprender como os atuais alunos de graduação. Com 21 anos de idade, as pessoas poderiam entrar no mercado de trabalho com um nível alto de qualificação.
Seria possível ter médicos, advogados e cientistas com essa idade. Já para pessoas que trabalham em um emprego tradicional de escritório, elas poderiam começar no fim da adolescência. Se fizéssemos isso, adicionaríamos produtividade à economia.
Esses são os anos mais produtivos e criativos das pessoas. Você não tem uma família, pode ficar acordado a noite toda e não gasta recursos para pagar mensalidades (ou o governo não gasta recursos). Hoje temos uma carreira de 40 anos, mas poderíamos estendê-la para 50, 55 anos.
EXAME CEO - A Khan Academy tem no Brasil um de seus maiores mercados. O que a tornou tão popular no país?
Salman Khan - A Khan Academy cresceu por meio da divulgação boca a boca tanto no Brasil como nos Estados Unidos. Mas, nos últimos três anos, o crescimento se deu com a ajuda da Fundação Lemann. O empresário Jorge Paulo Lemann fez da Khan Academy um dos principais focos de sua fundação no Brasil. Eles têm um projeto piloto com 70 000 estudantes em 44 cidades. No último ano, quase 5 milhões de brasileiros usaram a Khan Academy.
EXAME CEO - Como o senhor conheceu Jorge Paulo Lemann?
Salman Khan - Jorge Paulo veio ao nosso escritório uma vez, e eu não sabia quem ele era. Vi que era um cara inteligente, que fazia boas perguntas. Depois me perguntaram: “Sabe quem ele é?” Eu disse: “Sim, é um homem de negócios brasileiro”. Então me explicaram que ele é “o” homem de negócios brasileiro.
Hoje eu o vejo como um mentor. Ele é um cara fascinante, que conquistou muito nos negócios e em outras áreas, como no tênis (Lemann foi um dos melhores tenistas do Brasil nos anos 60 e chegou a disputar o tradicional torneio de Wimbledon).
EXAME CEO - Existe alguma particularidade do mercado brasileiro para a Khan Academy?
Salman Khan - O Brasil é um país em rápido desenvolvimento econômico. E, nesse processo, pode pular etapas pelas quais os países desenvolvidos tiveram de passar. A classe média brasileira está crescendo rapidamente e está faminta por esse tipo de recurso oferecido pela Khan Academy.
Há um veloz crescimento da conectividade, especialmente por meio de celulares. A dinâmica está lá, assim como pessoas visionárias, como Jorge Paulo Lemann, que perceberam que a educação é chave para o Brasil.