Fábrica de celulares na China, no começo dos anos 2000: no Brasil, a patente de um aparelho da Motorola demorou 16 anos para ser aprovada (Claro Cortes/Reuters)
Da Redação
Publicado em 26 de setembro de 2019 às 05h44.
Última atualização em 26 de setembro de 2019 às 09h51.
Em 1999, o mundo preocupava-se com o bug do milênio. O euro havia entrado em vigor em janeiro daquele ano como a moeda comum dos países da União Europeia. Em dezembro, foi anunciada a identificação da sequência do cromossomo 22, o que revolucionaria o estudo da genética. No Brasil, o presidente Fernando Henrique Cardoso iniciava o segundo mandato. Foi nesse ano que a americana Motorola, então uma potência da telefonia, dona de inovações que ajudaram a criar o mercado de aparelhos móveis, registrou no Brasil o pedido de patente do Startac, o celular dobrável — ou “flip”, como ficou popularizado — que havia sido lançado três anos antes nos Estados Unidos e se tornara um sucesso de vendas.
Passados 16 anos, o mundo estava mudado. Em 2015, a crise imigratória explodia na Europa. A sonda New Horizons, após quase uma década de viagem, chegava a Plutão, num marco da exploração espacial. No Brasil, Dilma Rousseff iniciava o segundo mandato na Presidência, em meio à crise política que a levaria ao impeachment. Foi no dia 25 de agosto de 2015 que a Motorola, finalmente, obteve o registro brasileiro da patente do Startac, quando smartphones com tela sensível ao toque já eram a tecnologia dominante. Ou seja, a patente do Startac só saiu no Brasil quando o aparelho nem era mais vendido no mercado — e havia vários anos.
A longa espera que a Motorola enfrentou não é um episódio isolado. É o que ainda ocorre com boa parte das empresas que querem registrar a propriedade intelectual de seus produtos no Brasil. O órgão responsável pela concessão de patentes é o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, conhecido como Inpi. O processo leva, em média, oito anos do início do trabalho ao parecer final — uma demora que, entre 94 países, só perde para a do Uruguai, que chega a 12 anos. No México o prazo é de cerca de três anos. Na China e na União Europeia, dois. E a demora leva à formação de uma fila.
No Brasil, o acúmulo de pedidos de registro de patentes é de 160 mil. O pico foi em 2016, com 180 mil. O volume é um entrave há anos. Saná-lo foi uma das missões mais críticas recebidas pela nova gestão do Inpi, empossada em janeiro pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e encabeçada por Cláudio Vilar Furtado, economista com doutorado pela Universidade de Chicago. “O reconhecimento da propriedade intelectual é essencial para haver inovação sustentável no mundo e na economia brasileira”, diz Furtado. “O Inpi precisa ser uma organização que atenda com agilidade, eficiência e segurança jurídica.” Em agosto, deu-se início a um plano de ataque para reduzir o estoque de pedidos, algo que envolve, na prática, o aumento da produtividade dos funcionários do órgão.
No mundo todo, uma patente de inovação só é concedida a algo inédito. O processo para obtê-la, porém, deve ser analisado em cada país, de acordo com as regras locais. Multinacionais são responsáveis por 80% das solicitações que aguardam resposta no Brasil. Na maioria dos casos, os pedidos já receberam pareceres, positivos ou negativos, em outros países. É esse contingente que deverá ser atacado nos próximos dois anos. A ideia é, em vez de partir do zero em cada caso, aproveitar avaliações feitas pelos maiores escritórios de patentes do mundo: o americano, o chinês, o japonês, o europeu e o coreano — que, juntos, receberam 84% dos pedidos de patentes em 2017.
O processo, testado num projeto piloto no ano passado, já está em andamento. Depois de incorporar os pareceres de outros países nas avaliações, o Inpi pedirá a manifestação das empresas solicitantes, que poderão revisar o pedido se necessário. Apenas quem se manifestar em 90 dias terá o pedido avaliado. O examinador, então, dará sequência, complementando a análise de acordo com as leis brasileiras para dar o parecer final. O restante será arquivado. A expectativa é fazer o estoque cair para 30 mil pedidos, que serão, sobretudo, os das empresas nacionais. Estas continuarão a receber uma análise completa, como sempre foi feito.
A ação é parte de um pacote mais amplo de mudanças. Inclui avançar na digitalização das atividades do órgão, como a adoção do pagamento pelos serviços com cartão de crédito ou débito — sim, o Inpi ainda está na era dos boletos. Também está no plano intensificar a proximidade com centros de inovação, que fazem parte de um grupo prioritário, assim como microempresários e desenvolvedores de tecnologias verdes. Para eles, o tempo médio de concessão de registros já está em oito meses.
Na Universidade Estadual de Campinas, o trabalho de registrar mais inovações tem rendido frutos: 71 patentes foram concedidas à universidade em 2018, o dobro de três anos antes. As novas ações do Inpi também devem aumentar a internacionalização de marcas brasileiras graças à redução da burocracia. Em outubro entrará em vigor a adesão do Brasil ao Protocolo de Madri, tratado criado há 30 anos pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual, das Nações Unidas. Antes era preciso solicitar o registro de uma marca a cada país em que se pretendia atuar. Agora o pedido será único, avaliado nos países escolhidos entre os 120 que fazem parte do acordo. O prazo para registrar marcas no Brasil já melhorou, caindo de dois anos em 2016 para dez meses, em média, hoje.
Como em muitas mudanças, o uso de pareceres de escritórios internacionais e os ajustes nas metas de produtividade dos examinadores encontraram resistência por parte de servidores do Inpi. Em agosto, duas associações de funcionários, a Afinpi e a Anpespi, e um sindicato local de servidores federais, o Sindisep/RJ, entraram com um mandado de segurança na Justiça Federal do Rio de Janeiro. O objetivo é impedir a nova metodologia. A alegação é que prejudica a independência e o rigor dos exames.
“O trabalho dos examinadores também cria conhecimento para fomentar a inovação e a competitividade no país, o que, com a nova abordagem, deve se perder”, diz Saulo Carvalho, presidente da Afinpi. Não há, segundo as entidades, solução sustentável que não passe por mais investimento na estrutura do instituto, inclusive com o aumento de seu corpo técnico, que hoje é composto de 330 examinadores. Sem novos concursos desde 2014, contratações já foram descartadas pelo governo federal com a atual crise nas contas públicas.
Entre os motivos que levaram à formação do estoque de pedidos também está a falta de estrutura. Só em 2017 o órgão começou a digitalização de processos e documentos — eliminando a papelada — e o aumento do acesso a bases de dados internacionais, além de melhorias nas condições técnicas de trabalho, com troca de equipamentos antigos e atualização de sistemas lentos. A modesta redução do estoque desde 2016 é resultado disso. “Não é exagero dizer que as equipes do Inpi fizeram mágica nos últimos anos”, diz um profissional familiarizado com o dia a dia na autarquia. Não precisava ser assim. O instituto é superavitário. Como está submetido às regras de contingenciamento previstas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, não se beneficia de sua alta geração de caixa, um entrave que limita os investimentos em infraestrutura e no corpo técnico.
Em 2018, o orçamento para manter as operações foi de 353 milhões de reais, valor ultrapassado em 29,3% pelas receitas. O excedente, de mais de 100 milhões, ficou no caixa da União. Por isso, foram liberados apenas 5,2 milhões de reais para melhorias naquele ano. Em 2019, o valor caiu para 4,5 milhões de reais. A Lei da Propriedade Industrial, de 1996, já previa a autonomia financeira do órgão. Para liberar o Inpi dessas amarras, tramita na Câmara dos Deputados um projeto do deputado Marcos Pereira (PRB-SP), ex-ministro da Indústria, Comércio Exterior e Serviços do governo Temer. O projeto, aprovado no final de agosto pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços da Câmara, ainda passará por outras duas comissões até chegar ao plenário e, se aprovado, será encaminhado ao Senado. Tendo ou não mais dinheiro no futuro, o Inpi dá sinais hoje de que a longa espera para a obtenção de uma patente no Brasil enfim começa a diminuir.