Margens do Rio Negro, no Amazonas: a região despertou o interesse de pesquisadores americanos nos anos 70 | Timothy Allen/GETTY IMAGES /
Da Redação
Publicado em 11 de abril de 2019 às 05h34.
Última atualização em 25 de julho de 2019 às 14h47.
Um relatório divulgado no início de abril pela ONG Imazon mostra que, de julho de 2016 a agosto de 2017, cerca de 60% da extração madeireira no estado do Pará ocorreu sem autorização do governo. Isso corresponde a cerca de 54.000 hectares, uma área maior do que a da cidade de Porto Alegre. A chamada extração seletiva de madeira — ou manejo florestal — é uma atividade permitida por lei, desde que sejam respeitadas as regras sobre a quantidade e a idade das árvores que podem ser derrubadas, de modo que a floresta tenha condições de se regenerar melhor. Mas, quando praticada sem o devido consentimento dos órgãos ambientais, abre caminho para a destruição completa de porções de floresta, além de inundar o mercado com madeira ilegal, mais barata e ambientalmente irresponsável. Os dados são do Sistema de Monitoramento da Exploração Madeireira (Simex), desenvolvido pelo Imazon em 2008 e que, há dez anos, fornece diagnósticos anuais do setor no norte do país.
Para chegar aos números mais recentes, os pesquisadores cruzaram as autorizações de extração emitidas pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente com imagens de satélite e dados públicos do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que registra o perímetro das propriedades, bem como suas áreas de produção e de vegetação preservada. Isso porque, há quatro anos, o governo do estado do Pará não oferece informações sobre as áreas concedidas à atividade madeireira.
A despeito da dificuldade de acesso a dados públicos, o Imazon consegue detectar uma série de inconsistências nesse processo. Entre as mais comuns está o conhecido esquema de “esquentar a madeira”: obtém-se autorização para extrair a matéria-prima de determinado lugar, mas as árvores são retiradas ilegalmente de outras áreas — que podem incluir unidades de conservação, como terras indígenas. Superestimar a quantidade disponível de árvores de madeira valiosa numa área, como o ipê, também é uma prática recorrente. Dessa maneira, é possível extrair árvores raras fora da área previamente autorizada. “Diante de brechas nos sistemas de controle e madeireiros mal-intencionados, uma análise independente permite que os erros sejam apontados”, afirma Dalton Cardoso, pesquisador do Imazon.
O monitoramento e a análise da dinâmica de extração de madeira na Amazônia são uma das mais importantes frentes de trabalho do Imazon. E foi justamente esse o ponto de partida do instituto, que começou a se delinear na década de 80 em Belém, no Pará. Ali, na foz do Rio Amazonas, o ecólogo e pesquisador americano Christopher Uhl, da Universidade da Pensilvânia, chegou guiado por uma questão tão profunda quanto abrangente: como seres humanos podem viver em harmonia uns com os outros e, sobretudo, com o planeta, e de maneira sustentável? “Aquele cenário de destruição me fez ter certeza de que era para o Brasil que eu deveria ir e tentar responder a essa pergunta”, diz Uhl (leia entrevista abaixo).
O pesquisador refere-se a um dos períodos de desmatamento mais intensos da Floresta Amazônica, na esteira de abertura da Transamazônica (BR-230), rodovia federal que começou a ser construída em 1972, durante a ditadura militar. Rapidamente, Uhl se deu conta de que não seria possível compreender o fenômeno somente da perspectiva de sua consequência mais visível: a do dano ambiental. Segundo o pesquisador, era necessário entender os aspectos econômicos que moviam aquela engrenagem. Para isso, seria preciso ciência — e uma boa dose de pé na lama.
Na época, em 1982, munido de um exíguo vocabulário em português, Uhl se pôs a convencer os jovens progressistas que encontrou no Pará a apoiar o que, como cientista que era, tencionava fazer: um centro de produção de conhecimento, fonte de dados empíricos e rigorosamente verificados sobre a exploração da floresta. “A ideia era ir além do ativismo e produzir informação para orientar as tomadas de decisão sobre o uso dos recursos naturais da Amazônia”, afirma Adalberto Veríssimo, pesquisador do Imazon. Então recém-saído de uma faculdade de agronomia na Bahia, Veríssimo foi o primeiro a atender ao chamado de Uhl.
Em vez de se entrincheirar no lado oposto aos madeireiros, o americano preferiu convencê-los de que havia uma maneira menos predatória de rentabilizar a floresta. Uma série de trabalhos sobre os impactos ecológicos da extração de madeira nos trópicos foi publicada por Uhl e seu grupo até fundarem oficialmente o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), em julho de 1990.
Nos anos que se seguiram, o instituto pôs em prática o primeiro projeto de manejo florestal em escala comercial do país. Em 250 hectares cedidos por uma serraria em Paragominas, município paraense que concentrava boa parte do mercado de madeira da região, o grupo de Uhl tocou dois projetos: um sob as regras do manejo sustentável, que limita a quantidade de árvores retiradas por hectare, privilegia o corte de árvores menores e abundantes e conserva espécies mais raras; e outro de extração tradicional, sem considerar critérios de conservação. “Medimos o tempo de derrubada das árvores, o gasto de combustível, o uso de máquinas, a produtividade e a segurança”, afirma Veríssimo. “Provamos que seria economicamente viável e vantajoso fazer dessa forma.”
Hoje, 6 milhões de hectares de floresta estão sob manejo sustentável no Brasil. De lá para cá, o Imazon ajudou a definir e a colocar em prática importantes blocos de unidades de conservação, barreiras ao desmatamento de áreas de alto valor econômico e ecológico. O instituto também desenvolveu um sistema de alerta de desmatamento mensal — hoje, a principal fonte alternativa aos dados divulgados anualmente pelo governo federal. Quase 30 anos depois, o Imazon ainda é o bastião de um raro modelo de ONG no Brasil: baseado na pesquisa que não se limita aos muros da academia — e consegue chegar a quem pode garantir a perpetuidade da maior floresta tropical do mundo.
Para Christopher Uhl, fundador do Imazon, informação é fundamental para a conservação do meio ambiente — mas não adianta buscar sustentabilidade sem mudar modelos mentais
Aos 70 anos, o americano Christopher Uhl continua a dar aulas para o que ele chama de “cabeças frescas” na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Também está terminando um livro sobre o conceito de propósito nas universidades. De seu escritório no distrito de State College, ele falou a EXAME sobre sua trajetória na Amazônia há quase 40 anos e analisou o que considera retrocesso no entendimento da questão ambiental no mundo.
De onde veio seu interesse pela Amazônia e pelo Brasil?
Cresci na Pensilvânia nos anos 50 e costumava acampar nos bosques. Anos depois, ganhei de uma namorada um livro sobre plantas comestíveis. E isso deixou de ser só uma curiosidade para se tornar um interesse profundo pelo mundo das plantas. Nos anos 60, o movimento ambientalista tomou força por aqui, principalmente por causa da poluição do ar. A sociedade começou a juntar os pontos: nosso bem-estar dependia do modelo de exploração ambiental. Já nos anos 70, ouvi falar da abertura da Transamazônica e pensei: esse lugar é gigantesco! E eu quis ir para lá.
Como foi chegar à Amazônia numa época tão conturbada?
Eu estava no meio de minha pesquisa de doutorado, sobre o Rio Negro [afluente do Rio Amazonas]. E o que me atraiu ali não foi a floresta virgem e intocada, mas as áreas gigantescas sendo destruídas, queimadas dia após dia. Elas teriam capacidade de se regenerar? Decidi ir para Belém e estudar a dinâmica de extração de madeira na Amazônia. Era 1981 e eu mal falava português. Precisava de ajuda para começar. Foi quando encontrei o Beto [Adalberto Veríssimo, que se tornaria pesquisador do Imazon]. Ele tinha 20 e poucos anos, era um garoto recém-formado e com interesse no que eu queria fazer. Em 1988, recebi de uma fundação americana 200 000 dólares para promover, de alguma forma, a conservação da Amazônia. Não era muito dinheiro, mas precisávamos usá-lo. O Beto me ajudou a recrutar pessoas interessadas e começamos o trabalho.
O senhor era um cientista com dinheiro para montar uma ONG. Como conciliou as duas coisas?
Eu era muito orientado pela pesquisa. E me perguntava se os gestores públicos e privados tinham acesso a informação de alta qualidade, rigorosa e verificável sobre o uso dos recursos naturais ali. Era o momento certo para trazer isso à tona. Havia muito ativismo, mas quase ninguém fazendo ciência, indo a campo medir o que estava ocorrendo — era um espaço imenso a ocupar. Juntei todas as pessoas dedicadas e brilhantes que encontrei, dei a elas a noção de mensuração e criamos uma espécie de programa de pós-graduação. Ainda estávamos definindo o que o Imazon seria. A estratégia foi ganhar o respeito das pessoas fazendo, e não só falando.
Houve críticas ao que estavam tentando fazer?
Fomos a primeira ONG desse tipo na Amazônia. Não havia precedente de gente com essa expertise lá. E as pessoas de outras partes do país olhavam para nós e diziam: “O que vocês pensam que estão fazendo? Ciência fora da universidade?”. Eu dizia aos garotos: “Vamos mostrar às pessoas o que podemos fazer”. Eu tinha o respeito deles, eles acreditavam em mim, estavam fascinados pela perspectiva de aprender e foi assim que nos firmamos. Fomos a campo juntos, levantamos dados juntos, fizemos e refizemos artigos mil vezes. Todo ano eu os convencia a ficar mais dois anos comigo [risadas]. E o que eles se tornaram foi extraordinário.
Desde 1997, o senhor não voltou ao Brasil. O que o fez ir embora?
Diante de tudo que eles tinham sido capazes de fazer, eu percebi que podia ir embora. A sensação era de dever cumprido. Não queria que o Imazon fosse uma ONG que dependesse de uma só pessoa para existir. Eu sabia que eles poderiam fazer mais e voltei para a Pensilvânia.
O ritmo de destruição da Amazônia diminuiu, mas voltou
a aumentar nos últimos anos. O senhor tem acompanhado isso?
Tenho acompanhado, e é muito triste ver que isso está acontecendo. Não só no Brasil mas ao redor de todo o mundo — e também aqui nos Estados Unidos — temos visto cada dia mais concentração de dinheiro em poucas mãos e o enfraquecimento da democracia. Em tempos difíceis como estes, em que as autoridades nem sequer acreditam na informação que vem da ciência, tenho tentado pensar que algo maior vai emergir. Só precisamos continuar fazendo o que estamos fazendo: ciência e trabalho.
Os Estados Unidos e o Brasil têm líderes que não acreditam em mudança climática. Como avançar sem apoio de governos?
Não estou exatamente esperançoso sobre isso agora. Como eu disse, estou triste pelo que está acontecendo aqui e no Brasil. Mas creio que esse processo de enfraquecimento das ideias vai nos levar a algum lugar. No caso da Amazônia, esse tipo de visão é incrivelmente perigoso. Estamos falando de um dos mais extraordinários estoques de carbono do mundo. Mas acredito no movimento da história — e que as pessoas vão acordar e tomar consciência efetiva disso.
Sua maneira de entender o tema da sustentabilidade mudou nestas quatro décadas?
A sustentabilidade surgiu como um jargão nos anos 90 e ainda tem uma interpretação rasa. Não adianta continuarmos a fazer o que fazemos, continuarmos a consumir da maneira que consumimos, crescer sob esse modelo e fazer alguns ajustes no meio do caminho para ser “sustentável”. Isso é fazer negócios do mesmo jeito. Essa é a razão máxima para estarmos no meio da bagunça em que estamos: fazer pequenos ajustes. É preciso mudar a maneira como pensamos, como nos relacionamos uns com os outros e com o meio ambiente. Natureza é fonte de saúde e de afeto. Enquanto acharmos que a banana vem da prateleira do supermercado ou da empresa que a vendeu ao supermercado, não avançaremos mais.