Consumidores na Europa: o aumento da população acima de 65 anos deve impulsionar novos mercados (Alamy/Fotoarena)
Da Redação
Publicado em 1 de agosto de 2019 às 05h30.
Última atualização em 1 de agosto de 2019 às 11h05.
Depois de décadas trabalhando em hospitais na França, o médico parisiense Charles Barbier, de 67 anos, decidiu mudar de rotina. Há dois anos, ele percebeu que era a hora de pendurar o jaleco e resolveu se aposentar de vez. Não porque sua saúde estivesse comprometida, mas porque ele já não se sentia confortável em exercer a medicina, uma área que mudou muito ao longo de sua vida profissional.
“Eu poderia até continuar trabalhando por mais alguns anos, mas acabaria me tornando um médico ruim. No sistema público de saúde da França, é preciso se manter num altíssimo nível de qualidade”, disse Barbier, ao conversar com a reportagem de EXAME na Porte de Saint-Cloud, uma praça no sudoeste de Paris, onde ele passeava de bicicleta.
Assim como o médico, toda uma geração nascida de 1946 a 1964 está chegando agora à idade da aposentadoria. São dezenas de milhões de europeus que nasceram durante o súbito aumento da natalidade ocorrido logo após a Segunda Guerra. Embora bem-vinda, a entrada desses baby-boomers na terceira idade tende a provocar um aumento substancial de idosos e uma mudança expressiva na estrutura etária da população.
Hoje, o número de pessoas acima de 65 anos na Europa já é maior do que a quantidade de jovens abaixo dos 15 anos. E a tendência é que essa diferença continue crescendo nas próximas décadas. Em 2050, quase 30% da população europeia será composta de pessoas com mais de 65 anos — atualmente, elas são 20%. E o número de idosos acima dos 80 anos deverá dobrar no mesmo período, segundo as projeções da União Europeia.
O envelhecimento da população é uma conquista da humanidade graças ao avanço da medicina e dos programas de saúde pública no mundo inteiro. No entanto, o ganho veio acompanhado de uma queda nas taxas de natalidade, uma mudança que reduziu a proporção das pessoas em idade de trabalho (de 15 a 64 anos) como um todo.
Com mais aposentados e menos gente trabalhando, o desafio de manter a economia em crescimento e as contas públicas equilibradas se torna ainda mais complexo. “Em essência, ainda será preciso produzir a mesma quantidade de bens e de serviços, mas teremos menos trabalhadores”, afirma o economista Axel Börsch-Supan, diretor do Centro de Economia do Envelhecimento da Universidade de Munique, na Alemanha.
É um obstáculo enfrentado por todas as grandes economias mundiais, incluindo o Brasil, que está prestes a aprovar a reforma da Previdência para lidar com o desequilíbrio entre o número de trabalhadores na ativa e o de aposentados. Mas em poucos lugares a queda da população em idade ativa será tão forte quanto na Europa, onde a quantidade de pessoas de 15 a 64 anos deverá diminuir dos atuais 66% para 57% dos europeus em 2050.
Na França, onde a queda será ainda maior, lidar com o envelhecimento é um desafio à parte. Hoje o país já é um dos que mais gastam com as aposentadorias e pensões entre as economias ricas. A despesa equivale a 15% do produto interno bruto, um nível que só fica abaixo dos registrados na Itália e na Grécia (no Brasil, os gastos somam 12,7% do PIB).
Com o envelhecimento da população, a tendência é que as aposentadorias consumam uma parcela cada vez maior do orçamento público. O déficit francês da Previdência, que foi de quase 3 bilhões de euros em 2018, caminha para triplicar de tamanho até 2022, atingindo 10 bilhões.
Parte do problema está no modelo das aposentadorias. No papel, a idade mínima para se aposentar é de 62 anos. Mas existem tantas exceções para diferentes categorias de funcionários públicos que, na prática, muitos franceses deixam de trabalhar bem antes disso.
Há nada menos que 42 regimes previdenciários diferentes no país. Quando assumiu o governo em 2017, o presidente Emmanuel Macron prometia acabar com essa distorção e criar um regime universal. Mas a proposta vinha sendo adiada por causa de seu potencial explosivo. As manifestações desde 2018 dos “coletes amarelos”, movimento de trabalhadores contrários ao governo, só complicaram os planos.
Agora, com o esvaziamento dos protestos e com a recuperação da popularidade de Macron, a reforma voltou a ganhar força. Em meados de julho, o alto comissário encarregado de elaborar um esboço do projeto, Jean-Paul Delevoye, concluiu seu relatório sobre a reforma. A proposta agora passará por audiências antes de virar um projeto de lei. A expectativa é que seja votado no ano que vem.
A idade mínima continuará sendo de 62 anos, mas a reforma introduz uma espécie de “idade de equilíbrio”, aos 64 anos. Apenas as pessoas nessa idade poderão receber a pensão integral. Quem se aposentar antes disso terá um desconto de 10% no valor. A ideia é estimular os franceses a trabalhar alguns anos extras para receber uma aposentadoria melhor.
Embora tenha feito reformas importantes e difíceis em 1993, 2003, 2010 e 2014, a França quer se alinhar aos demais países da União Europeia, que já estabelecem uma idade para aposentadoria em torno de 65 anos. É o caso da Espanha, da Hungria e do Reino Unido. Na Alemanha, na Grécia, na Itália e em Portugal ela chega a 67 anos. No Brasil, o texto aprovado em primeiro turno na Câmara estabelece a idade de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres.
Mudar as regras, no entanto, não é fácil. Muitos franceses ainda têm na memória a onda de protestos contra mudanças no sistema previdenciário que tomaram o país na segunda metade dos anos 90 e levaram à queda do então primeiro-ministro, Alain Juppé. Os sindicatos do país já estão organizando um grande protesto, no fim de setembro, contra a reforma de Macron.
Por mais impopular que seja a medida, exigir que as pessoas trabalhem um pouco mais é a única maneira de fazer com que o sistema de repartição da previdência seja sustentável. Para Duarte Nuno Semedo Leite, doutor em economia pela Universidade do Porto e professor no Instituto Max Planck, na Alemanha, o ideal seria que a idade de aposentadoria subisse conforme aumenta a expectativa de vida, para que as contas ficassem equilibradas.
“O tempo a mais de expectativa de vida deveria ser dividido entre o trabalho e o descanso. A única saída é explicar isso às pessoas”, diz Leite, que é especializado no tema. A boa notícia é que, como a população em média está mais saudável, uma parte dos idosos inclusive prefere seguir trabalhando, seja para garantir o padrão de vida a que está acostumada, seja para se manter ocupada.
Um deles é o engenheiro de telecomunicações Gennaro Trapani, de 70 anos, que mora em Paris. Ele parou de trabalhar aos 63, mas a vida mais tranquila não fazia seu estilo e ele logo voltou à ativa. Hoje é responsável pelas instalações de fibra óptica da empresa de telecomunicações Orange. “Fiquei um ano em casa e senti falta do contato com as pessoas e de sair,” diz Trapani. “Enquanto eu tiver boa saúde, continuarei trabalhando. Não tenho limite.”
Gente como o engenheiro Trapani faz parte de um novo e crescente mercado de consumo, que tende a demandar novos produtos e serviços. Entregas em domicílio, produtos que dão mais autonomia aos idosos, acessórios para apartamentos e casas são alguns exemplos. Essa nova “economia grisalha” é, portanto, cada vez mais uma nova fonte de oportunidades para empresas, trabalhadores e profissionais liberais.
Na França, onde a população acima de 60 anos já soma mais de 17 milhões de pessoas, com uma renda média anual de 26.000 euros (aproximadamente 110.000 reais), o mercado para essa faixa da população cresce 5% ao ano e deverá movimentar 130 bilhões de euros no ano que vem, segundo estimativas do governo francês, empregando cerca de 300.000 pessoas.
Segmentos como o de turismo e recreação devem ser estimulados, bem como os setores industriais. A forte demanda dos idosos ainda trará oportunidades nas áreas de assistência remota, vigilância por vídeo, robótica e dispositivos médicos. E os países que ainda têm mão de obra relativamente jovem, como o Brasil, podem ganhar produzindo e exportando produtos voltados para a terceira idade ou atraindo turistas.
Quando eram jovens, os baby-boomers foram responsáveis por um rápido aumento do consumo e por uma grande elevação dos padrões de vida no mundo rico. Se os países souberem aproveitar e fizerem as reformas necessárias, têm chance de se beneficiar novamente com essa geração, mas agora na terceira idade.