Vista aérea da cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais: entre os municípios mais afetados pela lama da Samarco (Picasa Web/Wikimedia Commons)
Da Redação
Publicado em 6 de julho de 2016 às 05h56.
São Paulo — A província de British Columbia, no Canadá, um dos mais importantes redutos da indústria mineradora do país, assistiu a um dos maiores desastres ambientais de sua história quando a barragem de rejeitos de Mount Polley, da mineradora Imperial Metals, rompeu-se há quase dois anos.
Cerca de 25 milhões de metros cúbicos de lama provenientes da extração de ouro e cobre na região foram despejados ao longo de 8 quilômetros e atingiram dois lagos e uma fonte de água potável.
Na época, uma comissão liderada por um dos maiores especialistas em engenharia geotécnica do país, o professor Norbert Morgenstern, trabalhou durante cinco meses até que um laudo revelasse uma falha de estrutura no projeto da barragem. No Brasil, oito meses se passaram desde o desastre ambiental que já é considerado o maior do país — o do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais.
O acidente deixou 19 mortos e despejou lama por uma extensão de mais de 600 quilômetros até o litoral do Espírito Santo. Mas, diferentemente do que se passou no Canadá, o que ainda impera por aqui é a incerteza.
Não só em relação às causas do desastre mas também no que diz respeito ao futuro da companhia que protagonizou a tragédia, a mineradora Samarco, e às mudanças que um acidente dessa magnitude poderá desencadear nas práticas do setor minerador e na legislação que o controla.
Em março, os moradores da região de Mariana participaram de simulações de emergência promovidas pela Samarco e pela Defesa Civil, já que outra barragem da empresa, a de Germano, continua intacta. Além disso, radares de precisão milimétrica, drones e até um sismógrafo estão sendo agora usados pela mineradora para monitorar a barragem.
Mas esse arsenal tecnológico não dá à companhia o direito de voltar a operar. Ela depende de um licenciamento ambiental da Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Em fevereiro, a Samarco apresentou ao órgão um projeto de disposição de rejeitos, mas ele foi negado. O aval agora está condicionado a um novo projeto, ainda não apresentado.
Se aprovado, ele terá de passar pelo crivo do Departamento Nacional de Produção Mineral, órgão que regula e fiscaliza a mineração no país. Hoje, analistas de mercado ouvidos por EXAME avaliam que a empresa voltará a operar no primeiro trimestre de 2017. O atual presidente da companhia, Roberto Carvalho, é mais otimista.
Segundo ele, a Samarco poderá retomar as atividades no último trimestre deste ano, mas com apenas 60% da capacidade produtiva. Isso porque, no curto prazo, a mineradora pretende depositar seus rejeitos numa de suas cavas em Mariana — cratera resultante do processo de extração mineral —, e é isso que ela comporta.
Para voltar a operar em plena capacidade, ainda não há solução. Em 2014, a Samarco faturou 2,6 bilhões de dólares e lucrou mais de 1 bilhão de dólares. No ano passado, o prejuízo chegou perto de 1,3 bilhão de dólares. As investigações sobre as causas do acidente ainda estão sendo conduzidas pelas controladoras da Samarco, a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton.
A Polícia Federal, no entanto, já concluiu um inquérito que aponta precariedade no monitoramento da barragem, redução de investimentos na área de geotecnia, falta de controle sobre o volume de rejeitos depositados na estrutura — inclusive os oriundos da Vale — e ineficácia do plano de emergência.
“Nem nós, nem outras empresas, nem os órgãos ambientais tinham a menor experiência de um acidente dessa dimensão”, diz Carvalho. No fim de junho, parte do relatório da PF com uma troca de mensagens entre executivos da Samarco veio à tona. Ela indica que o então presidente da empresa, Ricardo Vescovi, já havia sido alertado por diretores sobre problemas na barragem de fundão em 2014.
Agora o Ministério Público Federal pode apresentar uma denúncia à Justiça com base nesse material. Enquanto isso, a pressão pela volta das operações da Samarco é grande nas comunidades onde ela atuava. Em maio, quatro protestos foram realizados em Minas Gerais e no Espírito Santo por funcionários que estão afastados dos postos de trabalho desde o acidente.
Ao lado deles está Duarte Júnior, o prefeito de Mariana, cidade que perdeu um terço da arrecadação — cerca de 6 milhões de reais por mês — desde o acidente. De acordo com ele, a prefeitura está sendo obrigada a prover mais recursos para parte da população que antes trabalhava para as centenas de empresas terceirizadas da Samarco e que hoje está desempregada: nos últimos seis meses, a demanda por remédios gratuitos e os atendimentos nos postos de saúde dobraram.
“Em breve não teremos mais como manter serviços essenciais”, diz Duarte Júnior. Não menos urgente do que a retomada da arrecadação é a reparação dos danos causados pelo desastre. Em maio, um acordo foi enfim homologado entre a União, os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, a Samarco e suas controladoras.
O documento prevê que sejam destinados a isso pelo menos 20 bilhões de reais num prazo máximo de 15 anos — 4,4 bilhões serão gastos até 2018. A decisão, porém, não contou com o endosso do Ministério Público Federal, que pede 155 bilhões de reais às empresas. “Não há sustentação técnica que demonstre que essa quantia seja suficiente”, diz o procurador Eduardo Aguiar.
“É um valor baseado na capacidade financeira da Samarco, e não na tragédia que ela causou.” Para Aguiar e seus pares, o valor que a petroleira britânica BP aceitou pagar ao governo americano pelo derramamento de óleo no Golfo do México em 2010 — cerca de 20 bilhões de dólares — é um ponto de partida razoável.
Barragens como a da Samarco que misturam rejeitos de minério à água são comuns no Brasil e no mundo. Trata-se de uma tecnologia simples e de custo baixo para mineradoras que têm operações de grande porte. A prática, no entanto, vem sendo questionada por engenheiros da academia e ONGs.
Os estudos desses especialistas revelam que, a cada 30 anos, o volume de rejeitos gerados pela mineração aumenta dez vezes — o que demanda barragens cada vez maiores.
Falta uma base de dados precisa sobre acidentes com esse tipo de estrutura, mas uma pesquisa do Center for Science in Public Participation, ONG americana que monitora mineradoras, revelou que pelo menos 223 barragens de rejeitos de minério se romperam no mundo de 1910 a 2009. “É uma taxa inaceitavelmente alta”, diz David Williams, pesquisador na Universidade de Queensland, na Austrália.
O risco está, sobretudo, em barragens como a de Fundão, que se expandem para cima e são chamadas de “montante”. Esse tipo de projeto consiste em deixar secar os rejeitos mais próximos das bordas da barragem e, uma vez secos, usá-los como base para mais lama.
No caso da Samarco, considera-se a hipótese de que tenha havido o processo de liquefação, em que o excesso de água desfaz as bases da barragem. “O novo projeto da empresa deverá minimizar esse tipo de risco”, afirma Geraldo de Abreu, subsecretário de regularização ambiental da Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais.
Desde o começo do ano, o licenciamento desse tipo de barragem está suspenso no estado. No Chile, onde terremotos são comuns, ela é proibida. Há tecnologias alternativas, como sistemas de disposição seca de rejeitos. O problema é que elas podem custar até dez vezes mais do que as tradicionais barragens de lama, por causa do uso mais intenso de escavadeiras e de bombas para a retirada de água.
Em Bela Vista de Minas, Minas Gerais, a mineradora ArcelorMittal tem um sistema seco. Ele foi implantado em 2012, quando a barragem da companhia chegou ao limite. “Era melhor investir do que mitigar danos depois”, diz Sebastião Costa, presidente da ArcelorMittal Mineração no Brasil, que não revela os custos da obra.
Sabe-se que a produção de minério da empresa no país é de cerca de um quarto do produzido pela Samarco em Mariana. “Sistemas secos ainda não são economicamente viáveis para grandes empreendimentos no país”, afirma José Mendo, sócio da J.Mendo Consultoria. Um estudo feito por dois engenheiros canadenses mostra que o cuidado com segurança varia de acordo com os altos e baixos do setor.
Michael Davies e Todd Martin analisaram dados de acidentes de 1968 a 2009 e concluíram que a frequência dos vazamentos de rejeitos aumenta quando o preço das commodities cai. Não há uma comprovada relação de causa e efeito, mas os dados sugerem que os investimentos em segurança caem quando as margens do setor minguam.
Existe o consenso de que regras mais rígidas ajudariam a tornar constante a vigília. Há três anos, um novo marco regulatório para o setor está em discussão no Congresso brasileiro. Hoje, a lei não prevê planos de recuperação para os resíduos. Após a tragédia em Mariana, uma comissão foi criada no Senado para avaliar a legislação de barragens.
Em maio, o grupo sugeriu a aprovação de projetos de lei que aumentem a multa em caso de tragédias e endureçam as normas de prevenção de risco. O que se vê de fato até agora é um surto fiscalizador pós-tragédia. Das 662 barragens que hoje estão cadastradas no Departamento Nacional de Produção Mineral no Brasil, 185 apresentam um dano potencial alto em caso de rompimento.
Desde janeiro, seis delas — uma da própria Vale — foram interditadas por falta de um plano de ação de emergência, previsto na Lei de Segurança de Barragens, de 2010. A maioria das mineradoras fez revisões. É o caso da Votorantim Metais, dona de 21 barragens no país.
A empresa prevê a disposição seca dos resíduos numa operação em Mato Grosso que deverá operar em 2018. “Mudanças terão de ser consideradas, mas não virão de uma hora para a outra”, afirma Tito Martins, presidente da Votorantim Metais. Que elas aconteçam quanto antes.